Edição 516 | 04 Dezembro 2017

A mediocrização da educação pública

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João Vitor Santos

Daniel Cara destaca que a proposta da Base Comum não resolve os problemas do Brasil e ainda abre caminho para a perspectiva de privatização do ensino

O professor Daniel Cara reconhece a importância de se constituir uma base comum curricular, mas destaca que essa não dever vista como única alternativa para acabar com os déficits educacionais do país. “Há exageros na importância da Base Nacional Comum Curricular - BNCC, há quem ache que ela solucionará tudo. Mas ela não é a salvação da lavoura”, reitera. Além disso, pontua que essa última versão do projeto está muito aquém do que se espera de uma boa base. “O Governo Temer produziu uma péssima versão, orientada para responder às avaliações de larga escala e que vai colaborar com processos de privatização, já ensaiados por governos estaduais, especialmente o de Goiás, gerido pelo PSDB”, dispara.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Cara também denuncia que a proposta pode levar à derrocada da escola pública. “A política econômica de austeridade vai dizer que o povo não cabe no orçamento público brasileiro”, analisa. E acrescenta: “estou cansado de amadores pedagógicos falando sobre educação. Isso atrasa a área e nos afasta da solução dos problemas”. Para ele, tão importante quando a implementação da base é conceber melhor remuneração e condições de trabalho a professores. E, ainda, viabilizar estruturas que auxiliem o desenvolvimento das aulas, como bibliotecas, laboratórios de ciências e informática, internet banda larga, alimentação nutritiva e transporte escolar. “Sem isso, não adianta BNCC”, resume.

Daniel Tojeira Cara é doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Ciência Política e bacharel em Ciências Sociais pela mesma instituição. Atualmente é coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, membro titular do Fórum Nacional de Educação e do Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp. Entre suas publicações, destacamos Por que o Brasil precisa de um investimento público direto equivalente a 10% do PIB para a educação pública? (Universidade e Sociedade (Brasília), v. 50, p. 122-135, 2012) e Municípios no pacto federativo: fragilidades sobrepostas (Retratos da Escola, v. 6, p. 255-273, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que, num país de dimensões continentais e tão diverso como o Brasil, é necessário conceber uma Base Nacional Comum Curricular - BNCC?
Daniel Cara – Essa é a questão mais importante. O Brasil tem um extenso programa de distribuição de livros didáticos, o Programa Nacional do Livro Didático - PNLD. Na prática, o livro didático já expressa uma política curricular. Ou seja, não estamos saindo do zero, como muitos dizem.

Há exageros na importância da BNCC, há quem ache que ela solucionará tudo. Mas ela não é a salvação da lavoura. Eu diria até que é secundária diante das dívidas educacionais que temos. Nosso maior problema é o subfinanciamento da educação básica pública, e isso causa a desvalorização docente – o principal motivo para a baixa qualidade das nossas escolas.

Dito isso, uma boa BNCC colabora? Sim. Contudo, vale grifar: uma boa BNCC. E, sozinha, não resolve nada. A melhor BNCC com um professor desmotivado, sem condições adequadas de trabalho, terá resultado nulo. Não vamos melhorar nossa relação de ensino-aprendizagem.

IHU On-Line – Como avalia a última versão da BNCC?
Daniel Cara – Se uma boa BNCC não resolve, imagina uma ruim. O Governo Temer produziu uma péssima versão, orientada para responder às avaliações de larga escala e que vai colaborar com processos de privatização, já ensaiados por governos estaduais, especialmente o de Goiás, gerido pelo PSDB . A BNCC do jeito que está mediocrizará as escolas públicas.

IHU On-Line – Um dos pontos mais polêmicos da BNCC diz respeito a questões de gênero. Como o senhor tem visto esses debates?
Daniel Cara – Organizações ultraconservadoras, como o movimento 'Escola sem Partido' , buscam massificar sua posição promovendo o 'pânico moral'. Praticam a covardia, mergulham na irresponsabilidade. Vivem de cooptar e assustar pais, utilizando um conceito acusatório criado no seio das Igrejas Cristãs – e que na prática é inconsistente: a ideologia de gênero. Um absurdo intelectual. Mas, pior foi o Governo Temer apoiar o projeto e distribuir dois textos da BNCC: o primeiro para nós e para a imprensa em que consta "identidade de gênero" e "orientação sexual". Outro, oficial, foi entregue ao Conselho Nacional da Educação - CNE, que exclui ambos. Distribuir dois textos de um mesmo documento ou é incompetência ou má-fé. Até podem ser os dois. Tudo para não desagradar a base parlamentar ultraconservadora de Temer.

IHU On-Line – Outro ponto da BNCC que tem gerado muito debate diz respeito ao Ensino Religioso. Qual é o papel do Ensino Religioso na formação escolar dos indivíduos? E como avalia a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF, que permitiu a instituição de Ensino Religioso confessional?
Daniela Cara – Primeiro, dizer que o Brasil é um Estado Laico é insistir em uma falácia. Segundo, o STF decidiu descumprir a Constituição Federal e os princípios dos Direitos Humanos.

IHU On-Line – Qual deve ser o impacto na escola pública se a BNCC fosse implementada hoje? E na rede privada?
Daniel Cara – Uma BNCC produzida pelo Governo Temer, que carece de legitimidade, orientada para a privatização e para as avaliações de larga escala, mesmo com o apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - Undime e do Conselho Nacional de Secretários de Educação - Consed, não chegará a lugar algum. Quando ficar pronta, vai gerar algum burburinho. Depois, morrerá. Até porque estão prometendo que ela será a solução da lavoura, gerando expectativas muito grandes. Na hora H será frustrante e desmobilizadora.

IHU On-Line – Quais os desafios na redução das desigualdades entre escolas públicas e privadas?
Daniel Cara – É preciso ter escolas que cumpram com o Custo Aluno-Qualidade Inicial - CAQI , garantindo padrões mínimos de qualidade para todas as escolas. Ou seja, todas devem ter professores bem remunerados, com política de carreira, formação continuada, salas de aula com número adequado de alunos por turma, além de bibliotecas, laboratórios de ciências e Informática, Internet banda larga, alimentação nutritiva e transporte escolar decente. Sem isso, não adianta BNCC.

IHU On-Line – Vivemos um tempo de pouca disposição ao diálogo e de avanço de ondas mais conservadoras. De que forma a ideia de reforma do Ensino Médio pode servir de instrumento para solidificação dessas perspectivas?
Daniel Cara – Se a educação fosse significativa e emancipadora, os ultraconservadores não teriam tanta força. Eles se alimentam da ignorância.

A Reforma do Ensino Médio reproduz a lógica de uma educação medíocre, orientada a cindir aqueles que vão para o mercado de trabalho, servindo como mão de obra barata, e aqueles que terão ensino propedêutico. É preciso reformar o ensino, mas não no espírito de precarização de Temer, mas no caminho do Plano Nacional de Educação - PNE.

IHU On-Line – Como conceber uma ideia de reforma da educação no Brasil, num contexto de imposição de limites orçamentários e sob a justificativa da austeridade?
Daniel Cara – Demonstrando que a austeridade é uma ideia econômica inaceitável e que a prioridade deve ser dedicar o orçamento público para a realização dos direitos e do desenvolvimento do país. A política econômica de austeridade vai dizer que o povo não cabe no orçamento público brasileiro. Ou seja, a riqueza produzida pelo povo não pode beneficiar o próprio povo. Isso é absurdo.

IHU On-Line – Em alguma medida, as questões de fundo das discussões da proposta de “escola sem partido” emergem no debate da BNCC? De que forma?
Daniel Cara – O Governo Temer é o governo da "Escola sem Partido", embora não tenha coragem de assumir. No Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP até censuraram um artigo científico. A BNCC desse governo é a BNCC do Escola sem Partido, sem abordar "identidade de gênero" e sem abordar "orientação sexual". É o governo do obscurantismo.

IHU On-Line – Quais os desafios para a formação docente no nosso tempo?
Daniel Cara – O principal é lutar pela valorização docente, por arrogar aos educadores o domínio do debate da educação. Estou cansado de amadores pedagógicos falando sobre educação. Isso atrasa a área e nos afasta da solução dos problemas. É preciso (e prudente) entregar a educação aos educadores.■

Leia mais

- O ensino a qualquer custo e a falta de compromisso com a educação brasileira. Entrevista especial com Daniel Cara, publicada em Notícias do Dia de 21-7-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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