Edição 516 | 04 Dezembro 2017

Educação Infantil não deve se submeter à ideia de compartimentação

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João Vitor Santos

Paulo Fochi critica a última versão da BNCC e diz que é preciso compreender que a relação entre ensino e aprendizagem tem outra lógica a ser seguida nessa primeira fase de educação básica

A Modernidade impôs uma lógica de fragmentação do conhecimento através da divisão em áreas. Isso chega até a escola, com seu processo de ensino e aprendizagem fatiado em disciplinas. Se por um lado tal perspectiva favorece a produção de conhecimento especializado e índices que podem mensurar a eficiência, por outro acaba reduzindo a fluidez da experiência no processo. Mesmo no Ensino Fundamental e Médio, há quem combata essa visão. Na Educação Infantil, os movimentos sociais e grande parte da comunidade científica não concorda com a compartimentação do conhecimento. Segundo o professor Paulo Fochi, essa última versão da Base Comum Curricular dá ênfase a separação do conhecimento a partir das simples alterações dos nomes dos campos de experiência e do modo como colocou os objetivos. “Na Educação Infantil o conhecimento compartimentado não interessa. Essa ideia de compartimentar o conhecimento é uma invenção de muitos séculos e que para as crianças não faz nenhum sentido. Diferentes autores já debateram sobre isso”, comenta. Fochi ainda explica que os bebês e as crianças pequenas “não constroem e elaboram o conhecimento a partir da compartimentação, mas sim a partir do todo”.

Fochi trabalhou nas duas primeiras versões da Base para Educação Infantil, e, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, critica as mudanças feitas na terceira versão. Segundo ele, o grupo que capitaneou o debate nessa fase deu mais ênfase ao letramento e ao numeramento das crianças. “Esse não é o debate da área da Educação Infantil, não entendemos que esses dois campos tenham que ter predomínio”, argumenta. Isso porque, segundo o professor, o grupo que assumiu a revisão da base na terceira e quarta versão “tem interesse em produzir avaliações de larga escala”, o que seria possível só através da ênfase na alfabetização e de indicadores mensuráveis. “A lógica de educação deles é essa lógica mensurável, que nós da área de Educação Infantil, incluindo o grupo que estuda avaliação para esta etapa rechaçamos. Nós não entendemos que uma avaliação desse nível possa afetar positivamente a vida das crianças”, acrescenta.

Paulo Sergio Fochi é doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, especialista em Educação Infantil pela Unisinos, especialista em Gestão e Organização de Escola e licenciado em Pedagogia pela Unopar. Atualmente, é professor do curso de Pedagogia, coordenador e professor do curso de especialização em Educação Infantil da Unisinos. Entre suas publicações, destacamos Afinal, o que os bebês fazem no berçário? (Porto Alegre: Penso, 2015) e Infância e Educação Infantil: linguagens (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2014).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor tem acompanhado os debates acerca da Base Nacional Comum Curricular - BNCC? Quais os avanços e limites da proposta?
Paulo Fochi – Em 2015, o Ministério da Educação nomeou 116 especialistas, com representantes de todos os estados, vindos de universidades públicas e algumas privadas, e também representantes de secretarias de Educação. Esses especialistas foram selecionados para discutir e constituir o documento da Base Nacional Comum Curricular para Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio. Desses 116 especialistas, quatro foram nomeados para a Educação Infantil: a professora Zilma Ramos de Oliveira , da Universidade de São Paulo, a professora Silvia Cruz , da Universidade Federal do Ceará, e a professora Maria Carmen Silveira Barbosa , da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e eu, da Unisinos.

Trabalhamos todo o ano de 2015 e início de 2016 em volta da primeira e da segunda versão desse documento. Nós, da Educação Infantil, fizemos mais de 100 reuniões em mais de 20 estados, discutindo com a área, com as escolas, com os fóruns de Educação Infantil e com as universidades as versões que fomos apresentando. Além disso, discutimos também com o grupo de especialistas que trabalhavam com a construção do documento do Ensino Fundamental, até para pensar questões de articulações entre Educação Infantil e Ensino Fundamental. Ou seja, fomos fazendo um documento que foi discutido com a área e, ao mesmo tempo, que este documento representasse o que nos últimos 15 ou 20 anos nós conseguimos construir em termos de conhecimento sobre a Educação Infantil no Brasil.

Em especial entre os anos de 1999 e 2009, quando se elabora a revisão das diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil, a área produziu e acumulou bastante conhecimento. Então, nós quatro sempre afirmamos que na base nós estávamos representando muito mais o fortalecimento de um campo do que ideias particulares. Nós entendemos que muitas das questões, ou pelo menos os conceitos básicos, que tínhamos que ali discutir já estavam expressas na Diretriz Curricular Nacional para Educação Infantil, que é um documento que nós entendemos que representa como um certo consenso da área.

Esse foi meu envolvimento na construção da primeira e da segunda versão da Base. Quando houve a mudança de governo e, com isso, mudanças no Ministério da Educação, a opção da atual gestão foi pegar essa segunda versão que já havia sido entrega ao Conselho Nacional de Educação e entregar para um grupo privado, que é o movimento Todos pela Base, um grupo financiando por bancos e empresas privadas.

Alfabetização e numeramento
Esse grupo não tem envolvimento com a área e, além disso, produziu uma discussão de forma fechada. Este grupo vinha assediando as versões da base que nós estávamos trabalhando desde o princípio, especialmente porque eles tinham – e ainda tem - interesse que fosse dado assento à alfabetização e ao numeramento. Esse não é o debate da área da Educação Infantil, não entendemos que esses dois campos tenham que ter predomínio. Sempre compreendemos que a alfabetização e o numeramento são parte da discussão da Educação Infantil, mas uma base não pode se reduzir a isso.

Quando esse grupo assumiu a terceira versão, de forma fechada e sem debate com a área, fizeram as alterações conforme a desejavam: colocar o assento nas questões de alfabetização e numeramento e escrever objetivos que facilmente se tornem em indicadores de avaliação. Esse grupo reúne outras ONGs e fundações que também são, na verdade, financiadas por empresas e bancos e tem interesse em produzir avaliações de larga escala.

Instrumentos quantitativos para avaliação

Criar indicadores externos para avaliar as crianças, ao final da Educação infantil, não contribui para a construção da qualidade e da equidade em educação, ao contrário, o que pode construir é desigualdade e fracasso. Criar indicadores para avaliar a qualidade da Educação Infantil é diferente de criar indicadores externos para avaliar as crianças na Educação Infantil. Sobre este tema, nós já temos um certo conhecimento acumulado inclusive em projeto financiado pelo MEC nos anos de 2015 e 2016 em convênio com a Universidade Federal do Paraná. Fazer avaliações externas (em larga escala) não afeta positivamente a vida das crianças, a vida da escola e a qualificação da educação como um todo. Mesmo países que já adotaram este tipo de avaliação em larga escala, por exemplo, Estados Unidos, não têm nada de muito interessante e positivo para mostrar, a não ser criar rankings em escolas para dizer “essa aqui é melhor” e “essa aqui não é a melhor”, sem proposta para melhorar aquela que não era boa. Aliás, quando pensamos em boas experiências educativas não lembramos dos Estados Unidos, lembramos de Finlândia, Itália. Estes países, por exemplo, não tem esse tipo de avaliação.

Desde que houve a alteração do grupo de trabalho na Base como um todo, os 116 especialistas não compuseram mais o debate. Nós, da Educação Infantil, a partir de nossa representação nos fóruns de Educação Infantil e da nossa militância na área, temos mesmo assim mobilizado, mesmo que por fora, esse debate. Escrevemos notas sugerindo mudanças sobre a terceira versão, que foi publicada há pouco tempo, posicionando quais eram as nossas questões.

Restrições do debate

A versão três e agora uma versão quatro, que parece que vai ter de sair, que está em negociação entre o Conselho Nacional e o Ministério da Educação, são versões que estão sendo feitas muito em grupos fechados, em que o acesso foi sempre muito restrito. O acompanhamento que temos conseguido fazer nos últimos tempos tem a ver com a divulgação da própria mídia e, no último caso (para a 3 versão), para as versões que foram enviadas para discussão nos conselhos estaduais de Educação.

IHU On-Line – A BNCC tem suscitado muitos debates acerca dos currículos do Ensino Fundamental e Médio. Entretanto, a Base deve também nortear os currículos e as propostas pedagógicas de escolas públicas e privadas de Educação Infantil. O que a BNCC prevê no que diz respeito à Educação Infantil?
Paulo Fochi – A estrutura do documento da Base como um todo era organizada por direitos de aprendizagem e objetivos de aprendizagem. Nós da Educação Infantil entendemos, quando construímos a primeira e a segunda versão, e se manteve na terceira, que não iríamos estruturar a organização curricular para a Educação Infantil em áreas de conhecimento. Isso porque na Educação Infantil o conhecimento especializado por áreas não interessa. Conseguir isso foi uma grande conquista. Essa ideia de compartimentar o conhecimento é uma invenção de muitos séculos e que para as crianças não faz nenhum sentido, porque elas não constroem e elaboram o conhecimento e o sentido do conhecimento a partir da compartimentação, mas sim a partir do todo.

Assim, optamos por estruturar o documento por campos de experiência. Essa ideia de campos de experiência - que é uma ideia originalmente da Itália e que fomos reelaborando a partir dessa experiência italiana que surgiu nos anos 1990 com a reforma pedagógica - está centrada na ação da criança. Entendemos que por ser essa a primeira vez que o Brasil elabora uma base comum curricular para a Educação Infantil, tínhamos que, ao mesmo tempo, fazer uma política formativamente indutora para os professores.

A ideia dos campos de experiência foi também para mobilizar a reflexão sobre a organização do currículo a respeito dessa outra possibilidade de constituir uma escola de Educação Infantil que respeite a especificidade das crianças que estão chegando nesse espaço institucional. Então, propusemos cinco campos de experiência, e nenhum deles se remetia à área de conhecimento. Na terceira versão da Base, o grupo do Movimento Todos pela Educação transformou dois dos campos de experiência em áreas relativas à linguagem oral e escrita e outra ao numeramento, o que desconstrói a lógica inicial dos campos de experiência.

Direitos de aprendizagem

Além desses cinco campos, nós propusemos seis direitos de aprendizagem. Esses direitos falam o que nós, a partir dos valores éticos, estéticos e políticos da Diretriz Curricular Nacional, conseguimos entender que é direito de toda criança que acessa uma escola de Educação Infantil no Brasil. Isso porque, ao mesmo tempo que estavam expressos de alguma forma nos princípios éticos, estéticos e políticos, eles também representam os modos como as crianças aprendem. Tais direitos são: o direito de conviver, de brincar, de explorar, de participar, de se expressar e de se conhecer. Assim, estruturamos a primeira e segunda versão apresentando os direitos e, depois, os campos de experiência, que, a princípio, não se remetiam às áreas de conhecimento e que davam uma ideia mais global de como o conhecimento poderia ser construído dentro da escola.

Cuidado e aprendizagem

Essa perspectiva revela como é importante compreender que o cuidado na Educação Infantil é uma modalidade de atividade das crianças. Aprender a se vestir é uma atividade e isso não se faz dizendo “agora, vamos todos sentar e nos vestir”, se faz no modo inicialmente como um professor veste uma criança e que assim está ensinando, no sentido etimológico da palavra, que é insignare, deixar marca, mostrando para ela como é que pode, aos poucos, ir se vestindo. E posso pensar a mesma coisa a respeito de limpar o nariz, de se alimentar, posso ainda pensar o mesmo com relação a se deslocar pela escola.

Então, não separamos as atividades de cuidado com as atividades que são de acesso e articulação com o patrimônio que a humanidade já sistematizou. Na Educação Infantil, nós não temos aulas. Não se organiza assim a escola, por isso que não se chama ensino infantil, e sim Educação Infantil, porque tem uma noção de educar que é maior do que apenas ensinar. Não temos alunos, temos crianças que frequentam a escola em que a jornada de aprendizagem é baseada nas experiências pedagógicas, diferente do que são aulas, separadas por áreas do conhecimento e que separam o que é cuidado e o que é educar.

Desde 1996, falamos da relação indissociável entre cuidar e educar; são coisas que andam juntas e uma produz a outra. Isso é importante entender para quando se pensa nesse arranjo curricular que fizemos sobre os campos de experiência. Nos campos de experiência também aparecem essas questões relativas ao que nós entendemos como cuidado, porque entendemos isso como um modo de aprender sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. A forma como nos alimentamos no Brasil, por exemplo, é uma forma particular de país que construiu essa noção de alimentação, que é diferente inclusive entre os estados, diferente também em relação a outras partes do mundo. Portanto a experiência da criança comer na escola envolve a participação e o pertencimento a uma dada cultura. Enfim, o modo como nos comportamos em diferentes situações é construído também culturalmente e, portanto, faz parte de um conhecimento para essas crianças que estão chegando ao mundo também construírem.

Nos campos de experiência, conseguimos também ter lugar para essas questões do cotidiano além do acesso ao patrimônio que a humanidade sistematizou. Ou seja, para nós não significa apenas atividades de cuidado para com as crianças, significa algo muito importante porque, inclusive, diz respeito à construção da identidade, do “eu” no mundo – como eu cuido de mim, como eu cuido do outro e como eu cuido do mundo.

IHU On-Line – Quais as especificidades da Educação Infantil com relação a outras etapas escolares? E quais os desafios para a formação profissional nessa área?
Paulo Fochi – De certa forma, já tratamos dessas questões anteriormente, quando falávamos dos objetivos, no sentido de que eles têm que ser constituídos não para serem mensurados, como acabou ficando na terceira versão, pois isso não ajuda na qualificação da escola. Precisamos construir políticas públicas que induzam o professor na busca de formas alternativas à lógica da mensuração. E com isso, também, entro um pouco na questão dos desafios da formação desse profissional.

Os nossos cursos de Pedagogia são cursos generalistas, que formam professores tanto para atuar na Educação Infantil como no Ensino Fundamental. Acontece que essa formação generalista, que é o único curso de formação docente que temos, não consegue tratar da especificidade da Educação Infantil, da especificidade do conhecimento praxiológico para atuar na Educação Infantil e tampouco no Ensino Fundamental. Temos, no Brasil, um problema de concepção sobre o curso de Pedagogia. A pedagogia é o único curso que forma professores para trabalhar na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, mas o curso não está direcionado à docência. É generalista e abarca diferentes possibilidades de atuação do Pedagogo. No entanto, sendo o único curso superior para formação docente, minha opinião é que deveria estar centrado na docência.

Portanto, nos últimos dez anos, todas as políticas que foram se concebendo no âmbito do Ministério da Educação foram também bastante indutivas. Essas políticas foram induzindo a um modo de atuar com as crianças ao mesmo tempo em que se normatizavam determinadas questões. E isso foi um avanço muito importante, a gente cresceu muito nos últimos anos na Educação Infantil no Brasil, tanto em termos de acesso como num âmbito de conhecimento específico dessa etapa. As políticas voltadas para a Educação Infantil que nós temos até então são muito indutivas para o professor aprender a atuar. Como já destaquei, a estrutura da Educação Infantil é muito diferente do Ensino Fundamental e de toda essa lógica que a gente conhece como aluno, que é de ter aulas divididas por períodos, um professor que ensina e um aluno que aprende. A Educação Infantil não é assim.

Então se imagina que um professor que vai atuar na Educação Infantil também tem que descobrir um modo de construir sua docência não da forma que ele conheceu como aluno por tantos anos e que a formação profissional dele não conseguiu desconstruir para construir uma forma alternativa de ser professor. Se por um lado temos que avançar em termos de formação para conseguir fazer essa desconstrução, por outro, em termos de política, foi-se conseguindo fazer isso pela forma que as próprias políticas induziram o professor a pensar sobre o seu lugar de docência para atender a especificidade da Educação Infantil.

Educação Infantil no âmbito da educação básica

Nesse sentido, pensar objetivos de aprendizagem não é pensar se aprendeu isso ou aquilo. Devem ser objetivos que garantam que todas as crianças que acessam a escola tenham direito de acessar um patrimônio que a humanidade já sistematizou, mas, sobretudo, com sentido. É nisso que consiste nossa defesa, de que essa questão de discutir esses pontos deveria estar dentro da Base. Como primeira etapa da Educação Básica, nós entendemos que discutir isso é também fortalecer a identidade da Educação Infantil no âmbito da educação básica.

É também discutir o direito de que todas as crianças têm de acessar uma escola laica, de qualidade e que ali ela possa ter excelentes oportunidades educativas com professores qualificados, que saibam entender a especificidade dessa faixa etária. Discutir uma base curricular para Educação Infantil, para além de discutir o que as crianças têm direito de ter acesso, é discutir a importância social, política e pedagógica que essa etapa tem numa sociedade.

Pedagogia com pouca pedagogia

Ainda sobre o curso de Pedagogia, temos um curso de Pedagogia que tem muito pouco de pedagogia. No Brasil me parece que não temos clara a diferença entre Ciência da Educação e Pedagogia, sendo essa última uma ciência praxiológica. Assim acabamos tendo um curso com um monte de disciplinas de História da Educação, Filosofia da Educação, Psicologia da Educação, Sociologia da Educação, e que são muito importantes, mas que não podem ser uma parte representativa em relação ao que é especificamente da pedagogia. De pedagogia, especificamente, temos cerca de 30 ou 40% do curso. É possível, por exemplo, imaginar um curso de Engenharia com 30% de assuntos específicos de engenharia? Não conseguimos, mas conseguimos imaginar e fazer um curso de Pedagogia desta forma. Existe um problema de compreender o que é pedagogia, de afirmar a pedagogia como aquele campo que vai afirmar os professores.

IHU On-Line – O que implica e quais as complexidades para se acolher uma criança pequena, especialmente um bebê, no ambiente de uma escola?
Paulo Fochi – Vai um pouco no âmbito de tudo que eu já vinha destacando. Partimos de uma outra lógica de Educação Infantil, de outro modo de fazer funcionar uma escola... A complexidade tem a ver, de um ponto de vista bem pragmático e organizacional, com uma infraestrutura que demanda acolher bebês, o que implica ter um lactário, fraldário, uma zona para as crianças terem uma circulação livre e um espaço satisfatório. Quer dizer, implica ter uma estrutura física e também de pessoal.

A relação adulto x criança, mesmo a estabelecida pela Diretriz Curricular, é muito difícil de dar conta, pois fala de oito bebês de zero a um ano por adulto, e isso é muito difícil do ponto de vista da atuação do professor. Sei que esse é um ponto em que os gestores, os municípios reclamam, porque acham que fica muito caro. Imagine se pensássemos pela lógica mesmo da necessidade, de que seriam cinco bebês por adulto, o quanto isso seria também bastante caro.

Do ponto de vista formativo, existe outra complexidade: pouco se fala sobre como acolher um bebê no âmbito da formação do professor. Nós temos pouquíssimas experiências brasileiras com boas práticas com bebês. É difícil que o próprio professor construa uma certa coleção de exemplos para entender como ele pode constituir seu modo de atuar com as crianças. É muito diferente ser professor de bebê de zero a dois anos e ser professor de criança de dois a quatro anos, porque nesses zero a dois anos há uma intensidade de acontecimentos e aprendizagens e há uma relação de dependência e independência dessas crianças com o adulto que é muito distinta da que vai se dar depois dos dois anos.

Uma relação para além da palavra

Existe, ainda, a complexidade do entendimento: como se constrói o conhecimento com aqueles que não falam, que são os bebês? Descobrir outras formas de relação e interação que não aquela pautada pela palavra é recuperar em nós mesmos uma linguagem que já esquecemos, que é uma linguagem do corpo, que se comunica pelo modo com que eu toco na criança. Uso sempre o exemplo da criança que está sentada no chão, com o nariz escorrendo, como acontece muito no inverno. O modo como interpelo essa criança é também construir uma noção de mundo com essa criança; é construir uma relação de realidade com essa criança, de interação para além da palavra. E recuperar isso no âmbito da docência, no âmbito da interação adulto e criança é muito difícil, porque nós estamos constituídos pela palavra, atravessamos e interpelamos pela palavra e temos uma ideia de construção de conhecimento que se dá pela palavra.

Entender uma possibilidade de construção de conhecimento pela não palavra, por outras vias, como dizia Malaguzzi , por outras 99 linguagens que não a palavra, é sim um grande desafio. Escrevi num texto há uns dois anos, que se chama A complexa sutileza de ser professor de bebês, que se constitui por uma série de sutis ações, de modos de interpelar, que ainda não cartografamos do ponto de vista pedagógico.

Relação com as famílias

Outra dimensão dessa questão de acolhimento de bebês na escola tem a ver também com as relações com a família. O que representa para uma família de periferia levar seu filho à escola; o que isso representa para uma família burguesa; como a escola cumpre seu papel, conforme está explicitado na lei, de corresponsável pela educação das crianças e que isso não significa para os pais terceirizar a educação para a escola. Não é duelar com a família, não é lugar de depósito, não é um lugar de “cuida-se” – no mau sentido da palavra, de assistência –, mas é um lugar de amplo cuidado, de construção do conhecimento, de não aceleração dos bebês, de respeito aos seus ritmos, de respeito aos seus tempos, de envolvimento da família para que olhe para esse bebê e o reconheça na sua potência. Ou seja, tem uma complexidade também na relação com as famílias, no sentido de que tem uma novidade em pensar isso desde um ponto de vista pedagógico e de uma pedagogia que respeita as crianças.

IHU On-Line – Como assegurar o desenvolvimento e aprendizagem das crianças na primeira infância sem sobrecarga e tampouco desenvolvendo apenas atividades relacionadas ao cuidado dessas crianças? E qual o papel da regulamentação legal para assegurar a Educação Infantil de qualidade?
Paulo Fochi – Já falamos bastante sobre cuidado e aprendizagem, mas gostaria de complementar lembrando que Freinet (isso lá nos anos 30) vai desenvolver uma série de técnicas dentro de sua pedagogia, pois se dá conta de que as crianças têm um monte de coisas para dizer. E ele se dá conta disso porque não tem um adulto dizendo o tempo inteiro o que ela tem que fazer. Hoje, a realidade das crianças é um adulto dizendo, o tempo inteiro, o que ela tem que fazer, e estão sempre assistidas por um adulto, se não é por um adulto é por uma câmera que o pai pode acessar pela internet. Se as crianças não tiverem espaços de “sozinhez”, elas não vão ter o que dizer, o que compartilhar.

Tem alguma coisa na dimensão do humano que se dá pelas vias das relações, e hoje, no excesso da virtualidade, construir uma noção real de interatividade é alguma coisa que precisamos começar a pensar seriamente. A escola tem um valor fundamental na vida das crianças por esse aspecto da cultura infantil, da interação criança com criança. Só que, para as crianças interagirem, tem que ter um adulto competente que crie espaços de interação em que não fique mediando e interpelando, o que não significa abandonar as crianças. É uma coisa muito sutil, que se consegue construir numa intervenção indireta, através de uma boa organização de espaços, seleção de materiais e gestão de tempo. É possível fazer com que as crianças tenham interações adequadas, de qualidade, sem excessos e tendo uma relação com o espaço de forma satisfatória, e que consiga distanciar o adulto para que as crianças consigam, entre elas, interagir, sem a presença constante desse adulto.

“Parem de enlouquecer as crianças”

Devemos desconstruir essa ideia de escola que enche as agendas das crianças com uma série de atividades. Escrevi certa vez para uma revista: “parem de enlouquecer as crianças”. Continuo dizendo isso cada vez mais. Parem de encher as crianças de atividades, elas já nascem cheias de deveres, têm que caminhar, falar, ter sucesso, ser felizes etc. Isso é demasiado para a vida delas, elas precisam ser bebês. Um bebê tem o direito de ser bebê, ter o seu ritmo respeitado, uma criança tem que ter o direito de ser criança.

Toda essa ideia que se veio constituindo de preparar as crianças para o futuro é uma besteira gigante. A nossa ideia de futuro é inimaginável, pois as coisas estão se transformando, então tudo que estamos aqui preparando para que depois usem pode já não servir mais. Todos esses aparatos tecnológicos já serão obsoletos quando as crianças forem usar. Além do mais, nesse mundo de incerteza líquida, como diz Bauman , precisamos começar a nos ocupar das coisas que são, de fato, concretas, que é o agora. O agora das crianças está demandando uma outra relação; elas precisam de um adulto responsável que ofereça uma possibilidade de estar no mundo desde um outro lugar que não é uma agenda cheia, que não é o tempo todo mediado por uma tela.

IHU On-Line – No Brasil, é comum, especialmente no contexto de periferias, ouvirmos falar em déficit no número de vagas na Educação Infantil – em muitos municípios do RS, inclusive, o Ministério Público cobra a ampliação de vagas através de Termos de Ajustamento de Conduta. Quais os desafios para assegurar escolas públicas de Educação Infantil de qualidade e com número suficiente de vagas?
Paulo Fochi – Temos um sério problema. Tenho falado com o pessoal do Ministério da Educação e hoje temos cerca de 15 milhões de crianças matriculadas, o que deve representar cerca de 50 ou 60% de crianças de zero a cinco anos matriculadas. Significa que temos 30 ou 40% de crianças sem vagas, o que representa alguns milhões de crianças. Crescemos muito, muito mesmo em termos de vaga com o programa Pró-Infância, criado pelo Governo Federal para auxiliar os municípios, já que a Educação Infantil é de responsabilidade dos municípios, mas estamos muito longe ainda de universalizar o acesso das crianças.

Por outro lado, não adianta só universalizar se não discutirmos a qualidade dessas escolas, porque se as escolas não forem boas para as crianças não é bom que haja 100 ou 250 crianças dentro de um lugar em condições inadequadas e com profissionais inadequados. Temos que discutir uma boa formação inicial para esses professores, uma boa formação continuada, condições de trabalho adequadas, escolas com espaços adequados, saber envolver as famílias para que elas se responsabilizem pelos processos de educação das crianças. Há uma série de questões que devem andar junto com a discussão de acesso à vaga.

IHU On-Line – Uma política pública de Educação Infantil eficiente passa necessariamente por quais processos?
Paulo Fochi – Uma política pública de Educação Infantil diferente de uma política pública para infância, pois temos no Brasil isso dividido. E essa política de Educação é eficiente quando ela consegue ir para além do que ela se propõe enquanto um documento normativo, conseguindo mobilizar num campo micro e num campo macro questões que estavam ali paradas, fazer com que se discuta o que não se estava discutindo. Uma política pública que no âmbito da Educação Infantil foi muito importante, por exemplo, foram as Diretrizes Curriculares Nacionais que foram revistas em 2009 e apresentam uma mudança de chave de leitura para essa fase escolar. Isso foi muito importante e impactou o modo como os gestores vinham encarando a Educação Infantil, o modo como o próprio Ministério da Educação estava tratando a Educação Infantil, o modo como a pesquisa no âmbito da universidade vinha falando a respeito da Educação Infantil, o modo como a formação inicial estava ou não falando de um documento norteador importante para pensar a estrutura dessa primeira etapa da educação.

Ou seja, ela é considerada eficiente quando consegue cumprir com esse seu papel de desencadear que movimentos possam ir acontecendo, porque não tenho a ilusão de que ela consiga resolver, equacionar efetivamente alguma coisa. Um documento não tem essa força, não num país como o nosso, nessas dimensões. Pensar a Educação Infantil está relacionado com muitas questões de fundo, tem a ver, inclusive, com a condição de moradia das famílias, condições de trabalho das famílias.

A jornada da escola no Brasil, por exemplo, é de 12 horas, enquanto na Europa inteira a jornada máxima da escola é de sete horas. Isso implica fazer com que os pais se organizem profissionalmente para estar com as crianças nos outros horários – e pais de todas as classes sociais. Nas nossas condições de trabalho e vida, é muito difícil pensar isso. Quando elaboramos uma política pública, temos que pensar como ela pode desencadear movimentos que transformem as realidades.

No caso da Diretriz Curricular, a política começou a tensionar, por exemplo, para que os conselhos municipais de Educação começassem a discutir a relação adulto x criança, a metragem mínima de uma sala para um número X de crianças, que fosse se olhar a formação dos professores. Isso levou à elaboração de políticas locais para garantir a qualidade da educação.

Papel da Base

A função da Base, em específico, é apresentar a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica. Eu sentia isso quando trabalhávamos até a segunda versão, pois, quando sentávamos com os outros 116 especialistas, víamos que desconheciam completamente o que era a Educação Infantil e começaram a conhecer no debate que fomos produzindo entre os especialistas que estavam trabalhando. Fora desses especialistas, também com outras entidades e discussões que produzimos, conseguimos apresentar a especificidade da Educação Infantil. Nunca se ouviu falar tanto em Educação Infantil como nos últimos três anos, e isso muito em função da Base.■

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