Edição 516 | 04 Dezembro 2017

“A locomotiva da memória está sempre andando, e haja combustível”

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Vitor Necchi

Flavio Koutzii, cuja biografia acaba de ser lançada, garante que cada palavra que puder dizer é para falar do absoluto mal e barbárie que advêm das escolhas que a direita fez no país

Flavio Koutzii está em paz. Não porque a vida foi banal e tranquila, mas porque ela valeu pela tentativa. Um dos principais líderes políticos do Rio Grande do Sul, que combateu as ditaduras militares no Brasil e na Argentina, aos 74 anos tem, nas suas palavras, o privilégio e a dor de ler o registro da própria trajetória. Trata-se de Flavio Koutzii: Biografia de um militante revolucionário – De 1943 a 1984 (Porto Alegre: Editora Libretos).

A obra, escrita pelo historiador Benito Bisso Schmidt, foi lançada recentemente, durante a Feira do Livro de Porto Alegre, em uma concorrida sessão de autógrafos. “A biografia é um catalisador de memórias. É duro ter memória, bancar sua memória. É preciso ter coragem”, resume Koutzii.

As 544 páginas transcendem ao personagem, que funciona como um fio articulador para se compor um panorama de um tempo importante e grave dos ciclos ditatoriais do Cone Sul. Elas registram fatos compreendidos desde o nascimento de Koutzii até 1984, quando ele retornou ao Brasil, depois do exílio na França.

O político afirma que, hoje em dia, uma das coisas mais importantes é pensar. “Muitos de nós estamos tendo tanta indignação com o que está acontecendo exatamente porque preservamos determinados valores que sobreviveram em várias gerações”, explica, na entrevista concedida presencialmente à IHU On-Line. “Não tenho a energia e a dinâmica de quando eu era jovem, mas o interessante é não perder a noção das coisas, afogado pelo presente das coisas terríveis que estão acontecendo”.

No meio da entrevista, realizada na sala do apartamento onde vive há mais de 50 anos, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre, tradicional reduto judaico, reconheceu que estava indo longe nas respostas. “Não me arrependo, ela tem uma dimensão que com certeza nenhuma outra teve”, considera. “Há intimidades e sutilezas minhas que eu só poderia escrever sobre elas se tivesse bala na agulha para fazê-lo. O que penso e sinto eu sei, mas transferir isso para uma página não sei.” Ele acredita que “é difícil escrever sobre o próprio sofrimento sem ser literariamente capaz de dar a densidade infinita e íntima que os fatos tiveram”. Ao falar do mergulho nos escombros da memória, admite: “Este processo foi infernal. Sofri muito”.

Quando instigado a se dirigir para a esquerda, campo político que está em crise, Koutzii é contundente: “A única coisa que quero falar, no sentido de ser o mais importante, é sobre a ditadura”. Reconhece a importância de se fazer um balanço, mas isso empreenderá junto com a esquerda. “Cada palavra que eu puder dizer, se tiver energia, é para falar, neste momento, do absoluto mal e barbárie que advêm das escolhas que a direita fez neste país”, resume.

Flavio Koutzii é graduado em Sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, da Universidade Sorbonne. Ao longo de sua militância política, foi filiado ao PCB, fez oposição à ditadura militar brasileira de 1964 e integrou a Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul. Na Argentina, no início da década de 1970, atuou no Partido Revolucionário de los Trabajadores – Exercito Revolucionário del Pueblo (PRT-ERP). Quando regressou ao Brasil, nos anos 1980, após o exílio na França, se filiou ao PT, partido pelo qual foi eleito vereador em Porto Alegre e deputado estadual.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O lançamento da sua biografia foi um grande acontecimento na Feira do Livro de Porto Alegre, no dia 14 de novembro. Auditório lotado de pessoas que foram ouvi-lo, depois longa fila de autógrafos. Passados alguns dias, o que mais o marcou?
Flavio Koutzii – O que me marcou bastante a partir do lançamento foi outra circunstância intensa, a partir de uma iniciativa da editora do livro [Libretos], o conhecido Sarau Elétrico [Koutzii foi o convidado do evento realizado no dia 21 de novembro]. Tinha a ver com o lançamento do livro, mas com a estrutura deles, com a participação do Luís Augusto Fischer, a Katia Suman e o Diego Grando. Foi uma surpresa. Fiz um deboche com eles: finalmente fui para a noite. Me surpreendeu. A Clô Barcellos, que é uma das editoras, disse que estava lotado, em comparação com outras edições. E aqui na minha rua, onde moro há 50 anos [Koutzii mora na Rua João Telles, em Porto Alegre, onde se localiza o bar Ocidente, que abriga o Sarau Elétrico]. Foi muito significativo. Quando terminou, houve aplausos perceptivelmente muito cálidos, nas duas ocasiões (Feira do Livro e Sarau Elétrico].

Tinha muita gente que eu conheço na Feira e no Ocidente. Percebi que era algo entre o reencontro, a despedida e a inquietação. Inquietação porque todo mundo sabe que andei tendo sucessivos problemas de saúde. Passei bastante tempo sem ver as pessoas, então a minha intuição e sensibilidade me dizem que tinha este conteúdo generoso e intenso. Pessoas que me acompanharam tiveram a mesma percepção. Ainda haverá outro lançamento, no Clube de Cultura [no dia 16 de dezembro, às 19h, na rua Ramiro Barcelos, 1.853, com a presença do autor da biografia, Benito Bisso Schmidt].

IHU On-Line – Quais são as suas referências políticas? O que foi determinante em sua formação?
Flavio Koutzii – Isto ocupa uma boa parte do primeiro capítulo do livro, Meu DNA político e ideológico, que tem um jogo de palavras em um dos subtítulos, Começando pelo (Bom) Fim. Fala da minha criação, da minha frequentação ao Clube de Cultura, da esquerda judaica que existiu em uma certa época. Isso era muito vivo na minha juventude e tinha muito a ver no ambiente em que eu cresci, nesta mesma sala. Uma casa cheia de livros, com muita música clássica. Meu pai era um cara de esquerda, com viés comunista, e a minha formação tem muito a ver com isso. Minhas histórias para ninar eram duas que meu pai contava e jamais esqueci. Ele era um bom narrador, com boas inflexões, e me contava sobre a batalha de Stalingrado e a luta do Gueto de Varsóvia. Isso nutriu em mim uma espécie de sentimento romântico, um sentimento épico sobre as lutas e, sobretudo, aprendi a noção de opressão, de oprimido, em relação aos nazistas, tanto na União Soviética quanto na Polônia. Havia este ambiente cultural. Era uma seiva mais cultural que ideológica.

Depois, aos 18 anos, militei na universidade, na formação do Partido Comunista dentro da UFRGS. Logo fui eleito presidente do centro acadêmico da Filosofia, em uma época em que os centros acadêmicos em geral, e o da Filosofia acentuadamente, eram muito progressistas. Aí se iniciou minha atividade política como uma das lideranças universitárias. Foi algo relativamente rápido, já no primeiro ano, o que era incomum. Fui eleito em 1963, e em 1964 teve o golpe de Estado e fui destituído do centro acadêmico.

Depois de eu ser cassado, começaram as lutas que foram emblemáticas daquele tempo, o pós-golpe de 64 e o início da reflexão até 66, que perpassa toda a esquerda que tinha sido derrotada e destroçada nos primeiros momentos do golpe e se fazia uma pergunta crucial para os anos subsequentes: como é que nos passaram por cima tão facilmente? Esta interrogação seguiu em todo o Brasil, nos dissidentes que começaram a se constituir no Partido Comunista, uma espécie de nova vanguarda, e esta pergunta perpassa todo um debate no Brasil e no mundo, quando se discutiam os caminhos a seguir.

Depois disso, fizemos uma opção. Formamos um grupo que se chamava POC [Partido Operário Comunista], com a chamada Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul, que eram os caras do partidão na Filosofia. Na biografia, fomos indo e entramos na circunstância que dá um certo panorama que transcende à minha pessoa. Ainda bem! Isso dá à biografia uma determinada estatura que não começa e nem termina no personagem que é o motivo da biografia.

A biografia
Pessoas que a leram percebem que foi muito bem-feita, exaustiva, com muito critério por parte do Benito [Bisso Schmidt], sobretudo. Biografia é como atirar um puzzle com mil peças. Se o historiador não souber juntá-las em um período tão longo de anos, as chances de ela sair consistente são menores. Um dos méritos imensos do trabalho do Benito é este: teve tenacidade, método e montou de uma forma muito importante e, ao mesmo tempo, com uma certa qualidade literária, na minha opinião e na de pessoas para as quais eu perguntei expressamente isso.

Como é um livro que está cercado de certas características acadêmicas e se relaciona com a enunciação de alguns conceitos feitos pelo próprio historiador, era meio difícil para mim, genericamente, conseguir fazer uma coisa fluir. E ele conseguiu. É um mérito substantivo: a obra flui e, embora seja extensa, ela transcende ao personagem porque acaba sendo um grande panorama em que o personagem é uma espécie de fio articulador. Acho que este livro não será como o que eu escrevi sobre a prisão argentina, que se chama Pedaços de morte no coração [Porto Alegre: L&PM, 1984], que tinha a ver com o pós-ditadura e acabou ficando datado. Eu dei um testemunho quase imediato do sistema das prisões que havia na Argentina, do qual eu saí, e que elaborei quando estava no exílio na França, uma espécie de memória acolhida na instituição universitária. Era sobre o período pós-abertura e permitiu que as pessoas olhassem aquele universo carcerário. Não tinha papo subjetivo. Foi uma escolha minha. Se eu fosse fazer uma descrição detalhada do sofrimento, não terminaria nunca, e não tinha talento para tanto.

Noto isso em muitas coisas que foram escritas depois, de pessoas formidáveis que sobreviveram à ditadura militar brasileira e que, ao narrarem o que viveram e sofreram, às vezes não conseguiram ter a estatura da sua própria dor, porque não tinham capacidade literária. Narrar o que viveram, sim, mas descrever o que sentiram, não. Dostoievski daria um jeito com alguma facilidade, Graciliano Ramos também o fez. Como eu li toda a literatura dos anos 1960 sobre este assunto, até para me preparar, tenho a pretensão de saber bem o que estou falando.

Esta biografia, diferencialmente, acabo achando agora que ela está conformada, que ela tem esta estatura. Não é descartável rapidamente, porque ela é um quadro histórico significativo e porque há a circunstância singular e perturbadora de que o trabalho termina quando acontece a destruição da democracia e o avanço terrível da barbárie neste país. Começamos a prepará-la na ascensão do período lulista e terminamos na ascensão do período neonazista que estamos vivendo – usando a palavra com alguma mesura, porque não sei como insultar esta gente que não seja com uma palavra mais forte. Algumas pessoas que já leram fazem esta associação diretamente. Isso pode ser interessante para esta nova geração que está sofrendo neste momento. Não é uma insensatez estabelecer esta relação.

IHU On-Line – Para compor a biografia, o senhor precisou revisitar sua trajetória. Como foi este processo?
Flavio Koutzii – Este processo foi infernal. Sofri muito. As poucas coisas que tenho falado em função do lançamento do livro são do ponto de vista do biografado. Destaco a obviedade necessária de que o biógrafo é um e o biografado, outro. Não é o biografado que faz a biografia. No meu caso, se instalaram dois processos da mesma natureza. Um é estar no centro de um processo que implica que o historiador consulte arquivos, ouça muitas pessoas – várias indicadas por mim –, o que é uma certa garantia de que a biografia não é apenas a versão do biografado. Isso é uma questão crucial, conforme o Benito me explicou.

O biógrafo não fica com a versão do biografado, ele examina essa versão. Como é feito com muito critério, há um crescente amalgamento dos depoimentos que ele vai colhendo, dos documentos que ele vai pesquisando, do fato de que ele foi à Argentina, onde conheceu companheiros meus de prisão e até um universo, como ele mesmo diz, de um país que não conhecia, no sentido mais profundo. Benito evoca, quase no início do livro, o primeiro encontro dele com um grande amigo meu, que esteve preso comigo, e explica de maneira muito tocante e comovente como foi esta primeira conversa. Uma revelação, porque meu amigo tem uma memória infernal.

Uma certa policromia é elemento decisivo em um trabalho desta ambição. Os matizes de uma vida, que nunca são apenas a versão que o biografado tem de si mesmo, vão ganhando nuances, pinceladas, tons e semitons do conjunto dos documentos, do período histórico no qual ele também vai se alimentando.

Durmo pouco, então o processo de reconstrução da memória é como um triturador, pela impossibilidade de contê-lo. Não fico vendo filmes da Disney todo tempo, se não me distrairia. Leio muito, vejo muita coisa, gosto muito de cinema, mas o troço vem. A dinâmica da reconstrução que a biografia suscita, e que o biógrafo suscita para o biografado, tem ao mesmo tempo o envelhecimento, e isso é fortíssimo. Os dois temas, biografia e envelhecimento, são da mesma natureza, por isso uso a palavra triturante. Não tem como conter as duas, elas vêm e emergem para a superfície. Por exemplo: a relação com minha mãe. Durante os anos em que estive preso, ela foi à Patagônia, na Argentina, para me visitar. Apenas parente consanguíneo podia ir, e tinha contato durante dez minutos através de um vidro blindado. Ela fazia uma coisa que não era de sua cultura, nem de sua natureza, porque quem se meteu nesta história fui eu. São mulheres que notavelmente nunca aceitaram as coisas, como as mães e as avós da Praça de Maio, na Argentina. É um tema clássico das ditaduras: quando um cara desaparece e o Estado não diz que ele está morto, fica uma potencial transferência para o pai e a mãe, que precisam dizer que ele está morto. Por isso as mães da Praça de Maio nunca afrouxaram, porque elas têm uma compreensão profunda disso. São temas que quem viveu na Argentina entende muito bem.

A mãe
Minha mãe fez a sua parte e, quando eu volto em liberdade, não fui o filho que deveria ser. Depois do meu amadurecimento, não dei um retorno suficiente à minha mãe, em seus anos mais difíceis. Este é um exemplo nítido, é um tema central da minha vida, e ele vem, emerge, não tem vez que não venha. Cria-se, na velhice, um mecanismo incontido de associações. Tenho até hoje, de qualquer natureza. Desde ver um filme ou ler um parágrafo, que engatam e desencadeiam um processo emotivo. É como se fosse uma tesoura, que aperta pelos dois lados. Ou eu fracassei em determinado assunto, não fui o filho que deveria ter sido, e isso vai virando uma máquina de moer carne.

Algo essencial, que comento brevemente no posfácio do livro, e é próprio do envelhecimento, é a noção do irremediável. Não tem volta. A pessoa pode fazer de conta que não está entendendo, para poder lidar com o próprio envelhecimento, com a proximidade do tema da finitude, mas não há como este tema não vir. A locomotiva da memória está sempre andando, e haja combustível, haja carvão.

IHU On-Line – Após fazer um balanço de parte expressiva da sua vida e de sua trajetória política, há arrependimentos?
Flavio Koutzii – Não. Esta resposta parece categórica demais, mas falo em geral. Fiz muitos erros, mas a questão que está posta para mim, que sou o biografado, tem a ver com esta pergunta. É muito difícil para pessoas que fizeram certas trajetórias – e que eventualmente foram lideranças ou intelectuais que produziram coisas importantes – se relacionar com o passado. É um desafio específico da condição humana. Não apenas quando o cara fica velhinho, mas quando tem que encarar no espelho da história o que ele decidiu e, às vezes, há arrependimentos. Vejo muitas lideranças políticas com dificuldade de lidar com o próprio passado, porque é lidar com o próprio sentido da sua vida, e somente se dá conta disso quando se tem mais rodagem.

Tenho muitas culpas e digo isso em várias partes do livro. Os companheiros que perdi, os companheiros que morreram lutando em políticas que em determinado momento tomei influência. No que me concerne, onde há perdas importantes e dolorosas, se acho que fui um dos responsáveis, não tenho como me desresponsabilizar disso. Mas o fato de não me desresponsabilizar – algo eticamente correto e pertinente – não quer dizer que não tenha uma percepção crítica. Não falei isso para ninguém ainda, mas acho que o que está acontecendo agora no Brasil dá mais razão para as escolhas feitas em um longínquo passado, do que se fosse lido há 30 anos, como um pedaço da história.

Identifico pessoas que lidam com dificuldade com este tema, a partir de uma certa época da vida, pois questionar isso é questionar a própria vida. Tenho a pretensão de ter uma certa sabedoria nisso, por conta de tudo o que vivi e li. Eu me sinto individualmente muito responsável, o que transpira dentro do livro. Não tenho respostas muito simplificadas, pois seriam redutoras demais.

Che Guevara
No final do livro, faço uma homenagem comovida ao Che, que para mim é uma referência. Não porque eu ache, como fiz em algum momento, que a estratégia da luta armada deva ser retomada. Mas, para mim, Che é um personagem gigantesco por elementos centrais, comportamentos, valores humanistas extraordinários. Não acho que isso seja uma espécie de fascinação mística, culto à personalidade. Che é um cara crucial e emblemático do final do século 20, quando há uma atualização dele.

Um grande parceiro meu, em depoimento, fez uma fala onde praticamente considera o Che um homicida, o que me deixa puto, então resolvi fazer esta homenagem ao final, no posfácio, porque não podia ficar assim. Mas, sobretudo, porque não poderia ficar assim agora, no presente, do ponto de vista do simbolismo, quando se vê nas propagandas da televisão um elogio sacralizador do empreendedor. Não há nada que deixe de falar de empreendedor. Isso é da cultura americana, o loser e o que venceu, e toda merda que vem junto. Todas as notícias que lemos começa dizendo que o mercado gostou ou não gostou.

Como sou a favor de uma sociedade humana, e não a favor de uma sociedade dominada pela mercadoria e pela lógica capitalista, acho que a condição humana está sofrendo um ataque absolutamente bárbaro em todos os terrenos, por isso temos a brutalidade, a regressão total através de preconceitos, da selvageria nas relações. Deste ponto de vista meu, pelo qual vejo o que está acontecendo e me incomodo, sustento esta noção de atualidade. Não do ponto de vista literal, mas de um símbolo. É um recado final. Eu incluo isso como um elemento não de uma nova plataforma, mas como uma despedida.

IHU On-Line – E do que se orgulha?
Flavio Koutzii – Tenho todas as características de um cara de formação judaico-cristã, com a absoluta onipresença da noção da culpa, e tenho uma visão muito crítica de mim, crítica de mim com a minha consciência. Tenho cicatrizes, isso me faz mal, e não me orgulho de cada uma delas. Gosto muito da vida que tive, mas não porque ela me fez necessariamente feliz. Chego a dizer isso inspirado em uma letra de um tango notável – a diferença entre viver e honrar a vida. Isto é a melhor resposta que posso dar.

As duas coisas andam juntas. A noção de ter lutado por causas que defendo até hoje, por valores, e isso é uma maneira de honrar a vida. Por isso acho a frase do título do livro, “biografia de um militante revolucionário”, excessiva. O Benito definiu o título com a palavra revolucionário. É uma palavra muito grande para mim, continuo achando, mas na hora H não discuti porque considerei suficiente. De fato, foi o que tentei, eu e minha geração. Do ponto de vista da tentativa – não do ponto de vista da qualificação do que fiz como ser humano, o que fiz bem, o que fiz mal, o que não tive as coragens necessárias – se sustenta. Na linguagem da esquerda, de seus símbolos e de seus códigos, dizer que alguém é revolucionário é a maior coisa que talvez se possa dizer de um lutador social, de um cara que construiu ideias e teorias.

Eu estou em paz, não no sentido de que tudo é banal e tranquilo, mas de que valeu pela tentativa.

IHU On-Line – Passar por episódios brutais no ciclo de ditaduras do Cone Sul teve que impacto na sua maneira de encarar a vida?
Flavio Koutzii – Estas coisas me reforçaram. De um lado, as minhas opiniões sobre a necessidade de tentar fazer um mundo melhor – agora estamos na época de fazer um mundo pior. Aquelas noções que se observaram muito quando a hegemonia do neoliberalismo começou a se consolidar, fim da ideia de solidariedade, fim da ideia de compartilhar, uma dinâmica total de o homem é o lobo do homem, prepare-se para a competição do mercado senão está fora. Este tipo de coisas que foram se hegemonizando cada vez mais no pensamento ocidental. Desse ponto de vista, da minha experiência, a noção de justiça e de direito das pessoas, noção de respeito – que não é de compaixão –, de humanismo, isso se reforçou.

De outro lado, se reforçou a percepção, na própria carne, dos movimentos repressivos, da dimensão brutal da injustiça que pode ser feita inclusive pelo fato de se pensar diferente. Por isso eu mantive em parte meu ideário, mesmo quando fui deputado durante 16 anos, em um espaço que não é para a palavra revolucionário – se chama esfera institucional, o parlamento.

Disso que se trata, pessoas que vinham da minha cultura política, e tantos antes, pessoas que admiro, de que gosto muito até hoje, Olívio, Tarso, Raul, Rossetto, são uns caras que sempre honraram os seus valores. Não tem notas muito dissonantes aqui no Rio Grande do Sul. Não pode ser por causa do vento Minuano. Deve ter uma educação determinada, que foi um pouco o DNA do PT gaúcho. Não somos nenhum CTG [centro de tradições gaúchas], mas, do ponto de vista de uma certa educação de valores, isso está absolutamente perceptível em suas figuras mais conhecidas. Pessoas como Fontana, e vários outros. Se fizessem o que não devia, já se saberia, pois estamos sempre na pontaria.

Esses impactos difíceis confirmaram a minha visão de mundo. E o que seguramente fizeram comigo e com muita gente – são muitos e milhares aqui e na América Latina – é uma humanização mais densa e contraditória. Hoje dia, uma das coisas mais importantes é pensar, pensar. O pensamento e os matizes do pensamento e das escolhas de cada ser humano estão totalmente ameaçados. Muitos de nós estamos tendo tanta indignação com o que está acontecendo exatamente porque preservamos determinados valores que sobreviveram em várias gerações. Isso dá uma certa atualidade à biografia, neste sentido. São valores que defendemos. Não tenho a energia e a dinâmica de quando eu era jovem, mas o interessante é não perder a noção das coisas, afogado pelo presente das coisas terríveis que estão acontecendo. Isso é uma prova de que, a longo prazo, soubemos manter determinados valores e de que eles não nos soterraram.

IHU On-Line – Mario Quintana, em um poema, fala “da vez primeira em que me assassinaram”. A lembrança desse verso decorre da leitura do posfácio da sua biografia, onde o senhor escreveu que tem “o acalanto confortante de ter vivido muito mais do que minhas mortes prenunciavam”. Quais foram as suas mortes? E qual sua estratégia para se manter vivo?
Flavio Koutzii – Há perguntas que prefiro não responder. São totalmente pertinentes, mas são muito densas para responder. É difícil escrever sobre o próprio sofrimento sem ser literariamente capaz de dar a densidade infinita e íntima que os fatos tiveram. Isso tem a ver com este momento, em que há uma biografia, e sobre este tema não quero falar. Não sou uma espécie de anexo da biografia efetivamente escrita. Existe o livro, logo existe a dimensão múltipla, seus valores e não valores.

Estou indo muito longe nesta entrevista. Não me arrependo, ela tem uma dimensão que com certeza nenhuma outra teve. Agora, é diferente. Há intimidades e sutilezas minhas que eu só poderia escrever sobre elas se tivesse bala na agulha para fazê-lo. O que penso e sinto eu sei, mas transferir isso para uma página não sei. E tem uma parte disso que é explícita e é um dos aprendizados da biografia: eu faço uma certa escolha dos meus labirintos. Eu não deformo as coisas para ajeitar a biografia como gostaria.

Se isso é um baita de um self, devo me proteger de algumas coisas porque o mundo é cruel. Se eu fosse deputado agora, pegariam esta biografia e espremeriam cada frase para me enfiar na cara, tentar me destruir, tentar me diminuir. Neste tempo de hoje, há uma convivência tensa e complexa entre a obra e o presente. O que fizeram com a Judith Butler... Não tem limite nenhum. É uma intelectual interessante. Temos que estar atentos. Há um matador em cada esquina – para dizer de uma forma dramática. Não estou fora deste universo. Tanto o Benito quanto eu, lá pelas tantas, percebemos esta demencialização do período que vivemos, política e socialmente.

Frente à intimidade que tua pergunta toma, ou eu dou uma enrolada – o que não farei – ou digo o que estou dizendo. Isto está na biografia. O livro – não como fetiche, mas como produto espiritual, de lenta construção, como se fosse uma argila, pois não deixa de ser uma escultura – tem este tema que faz parte de escolhas irreversivelmente subjetivas e pessoais e, ao mesmo tempo, políticas e sociais. Tem coisas que ficaram mais reservadas e ficarão, a menos que eu resolva escrever uma carta de adeus.

O pudor do historiador, que não violenta seus critérios profissionais e éticos, é muito importante na avaliação desta biografia. Há uma delicadeza com que o biógrafo transita por um universo complicado e cheio de nuances, com que trata a vida do biografado. Há coisas que eu tomei a iniciativa de falar, como sobre a luta política, em alguns momentos a luta armada, coisas que fiz e não fiz. Vivemos um momento histórico em que se deve evitar uma coisa exibicionista ou heroicizante, o que eu sempre queria que não acontecesse, e não aconteceu.

IHU On-Line – Qual a sensação de ler a própria biografia?
Flavio Koutzii – Enquanto a biografia está sendo construída, as dores vêm, não dá para segurar a memória. Há uma enorme singularidade, pois não é todo mundo que nesta etapa está vivo ainda e pode ver e ler uma biografia sobre si mesmo. Existo ainda, e minha história me provoca diversas reações. A percepção de si que se tem é privilegiada. A biografia é um catalisador de memórias. É duro ter memória, bancar sua memória. É preciso ter coragem. Uma biografia não é um flashback que se vê em um filme, quando o cara cai no chão ferido e lembra da esposa, das crianças, de forma fulminante, em breves segundos. A biografia é uma filmagem em câmera lenta com direito a replay. Posso voltar nela a qualquer momento. Não é uma sensação aguda. É um tema de longo prazo. Ler a própria biografia é uma sensação especialíssima, privilegiada e dolorosa. Ao mesmo tempo, acontecem agora reações tão confortadoras e cálidas, de reconhecimento, muitas pessoas têm expressado. Há um clichê: posso perceber o conjunto da obra.

A finitude está na ordem do dia – e isso não é pouca coisa dizer. Ao mesmo tempo, o conjunto da percepção de mim mesmo está com uma nitidez ofuscante na biografia. Isso é sofrido. Leio passagens sobre as coisas mais íntimas, pois não são segredos, mas formas como olho a mim mesmo. Tem o exemplo da minha mãe: não honrei este afeto, com ela, que foi lá na Patagônia... É ultradilacerante, mas, ao mesmo tempo, é um pedaço de mim, não tem volta. Se agora eu me sinto muito mal por ter dado apenas esta resposta, este retorno a ela, sou eu. Há algo interessante no livro: o Benito dedica o livro à minha mãe. E não é por acaso, ele sabe todos os trânsitos que comentei e seguramente tem a opinião dele sobre isto: “Para Clara, por Flavio”. Eu sei por que ele fez, e acho de uma delicadeza, uma sensibilidade muito grande. É que, ao longo de tudo, ficou claro para ele, e para mim, que há uma dívida.

IHU On-Line – O senhor é uma referência para as esquerdas porto-alegrense e gaúcha. Sua voz é ouvida e respeitada. Aos 74 anos, o que diria a este campo político que está em crise?
Flavio Koutzii – A única coisa que quero falar, no sentido de ser o mais importante, é sobre a ditadura. Claro, tem um balanço da esquerda a ser feito, mas isso farei junto com a esquerda, mas não para tapar o sol com a peneira. Cada palavra que eu puder dizer, se tiver energia, é para falar, neste momento, do absoluto mal e barbárie que advêm das escolhas que a direita fez neste país. É isso que quero dizer.

É um privilégio poder me explicar. Tenho um certo papel, mas acho que este crédito que se pressupõe na tua pergunta, hoje em dia, é tratado por mim com extrema reserva e pudor, no sentido do que nós estamos vivendo e do que eu ainda seria capaz de fazer. Desta minha formação, que ainda vem dos anos mais difíceis, acredito que o cara tem de falar o que ele é capaz de fazer.

Quem tem que fazer o aggiornamento disso, e colocar as coisas na sua devida proporção, sou eu. Eu que escolho. Não com arrogância. O passado foi tão duro que há um respeito. Isso põe em mim um certo peso, uma transcendência, que considero demasiada. Então eu devo estabelecer o limite. Tenho feito isso e tenho recusado alguns convites. Só estou disposto a dizer o que ajude a compreender o momento que vivemos. Espera-se de uma liderança, a qualquer época, que ela lidere, incentive, dê a linha e, de preferência, vá na frente. Eu não tenho mais essa pegada de mobilizar, então fico mais reservado. ■

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