Edição 210 | 05 Março 2007

O feminismo como um movimento de transformação social

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

Para Telma Gurgel da Silva, professora na Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, “a autonomia das mulheres é, em última instância, a superação dos privilégios garantidos aos homens, não porque cada homem em particular o promove, sim, porque existe uma lógica social que estrutura estes privilégios e que sem sua ruptura, é impossível o reconhecimento das mulheres como sujeito de direitos e de liberdade”. Ela fez essa e outras afirmações em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Telma Gurgel possui graduação em Serviço Social pela UERN, mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba, tendo sua tese o título Feminismo e liberdade: seu sujeito total e tardio na América Latina. Tem experiência na área de sociologia, com ênfase em gênero e feminismo, atuando principalmente em relações de gênero, políticas públicas, autonomia, organização e neoliberalismo.

IHU On-Line - Como se deu a evolução do movimento feminista através da história e qual o papel e a função do movimento de mulheres hoje?
Telma Gurgel
- Na perspectiva da visibilidade política da reivindicação da igualdade, o feminismo como movimento social tem suas origens na Revolução Francesa, quando, pela primeira vez, as mulheres surgem na conjuntura como sujeito coletivo com demandas específicas, em confronto direto com as estruturas dominantes de poder e de representação política. Assim, podemos afirmar que há mais de 200 anos as mulheres estão em movimento. Como nos referimos à história e suas contradições o feminismo, ao longo destes anos, tem pautado reivindicações políticas, econômicas e ideológicas que acompanham a realidade de cada momento histórico. Assim, encontramos as chamadas “ondas” do feminismo que sintetizam estes momentos. É importante destacarmos que essas expressões políticas são constituídas por sujeitos, no caso as mulheres, como seres sociais dotados de história, subjetividades, identidades, experiências e projetos que na totalidade concretizam a práxis e a expressão pública do feminismo. Assim sendo, podemos identificar as lutas em defesa do sufrágio universal, pelo direito à educação, pelo acesso ao trabalho, pela liberdade sexual, direito ao aborto, contra a violência sexista, pelo fim da desigualdade racial, pelo direito das lésbicas, entre outras. Sintetizando, podemos afirmar que o feminismo em sua trajetória é, acima de tudo, um movimento de transformação social que procura a construção de uma nova ordem na qual se superem as relações predominantes do sistema patriarcal capitalista de gênero, pois acredito que, mesmo não sendo uma relação determinista, não visualizo a liberdade e a autodeterminação das mulheres na sociabilidade do capital.
 
IHU On-Line - Quais os principais impactos para a autonomia da mulher, como ser social, dos avanços da ciência e da tecnologia?
Telma Gurgel
- Primeiro creio ser importante destacar que em virtude de seu papel de subalternidade, imposto pela lógica patriarcal, as mulheres ainda se encontram à margem de muitos dos avanços da ciência e da tecnologia, ou em alguns casos, sofrem impactos que atuam de forma negativa em sua autonomia, como, por exemplo, algumas das novas tecnologias reprodutivas de natureza invasiva e de controle da capacidade reprodutiva das mulheres. Destacamos ainda que, em virtude da divisão sexual do trabalho, na qual são determinados perfis, competências e habilidades profissionais de forma desigual entre homens e mulheres, estas permanecem nos piores postos de trabalho em profissões com menor status social e econômico. No caso de setores de produção que detêm tecnologias mais avançadas e nas ciências exatas, verificamos um predomínio da presença masculina. No entanto, não podemos negar os avanços conquistados pelas mulheres em diversos “guetos” profissionais masculinos, como, por exemplo, na área de pesquisas científicas e do acesso ao ensino superior.
 
IHU On-Line - Quais os maiores anseios da mulher contemporânea? Qual a especificidade, nesse sentido, da mulher latino-americana e brasileira?
Telma Gurgel -
Quando falamos no feminismo como transformação social, referimo-nos a mudanças estruturais e simbólicas que se situam no campo da autonomia, da liberdade e da igualdade. Mesmo que tenhamos algumas conquistas, estas ainda estão incompletas. Basta nos determos na realidade da divisão sexual do trabalho, na diminuta participação e representação política das mulheres (apesar do sistema de cotas), na ilegalidade do aborto em muitos países, ou até mesmo, nas dificuldades do acesso ao aborto legal, para nos determos à ordem estabelecida. No caso da América Latina e do Brasil, além das demandas específicas que citei anteriormente, ainda temos que enfrentar, como sujeito coletivo, as adversidades de uma inserção subordinada à lógica do neoliberalismo, centralizando também as nossas ações na luta por políticas distributivas que garantam uma cidadania e aponte para superação das desigualdades sociais e econômicas que são predominantes nos países de capitalismo periférico, como o nosso.
 
IHU On-Line - Quais as conseqüências sociais de uma mulher autônoma, independente do homem? Em que medida essa autonomia provoca a crise do masculino?
Telma Gurgel -
É importante deixar claro que o feminismo não propõe a inversão do machismo, ou seja, não queremos nos sobrepor aos direitos e à “liberdade” dos homens. Pretendemos um tratamento igualitário e a superação das bases ideológicas-estruturais que fundamentam e consolidam o sistema patriarcal. Isso significa, sem sombra de dúvidas, a constituição da autonomia e autodeterminação das mulheres. Costumamos dizer que este exercício pressupõe, primeiramente, o reconhecimento da opressão pelas mulheres, sujeito próprio do feminismo, e a sua auto-afirmação perante o seu opressor, seja ele o sistema e suas instituições, seja o seu companheiro, pai, irmão etc... Em segundo lugar, se falamos de opressão e exploração, nos referimos a privilégios. Assim, a autonomia das mulheres é, em última instância, a superação dos privilégios garantidos aos homens, não porque cada homem em particular o promove, e sim, porque existe uma lógica social que estrutura estes privilégios e que sem sua ruptura, é impossível o reconhecimento das mulheres como sujeito de direitos e de liberdade. Cabe aos homens reconhecer estes privilégios como mecanismos de opressão e comprometer-se (tanto no espaço público quanto no privado, em suas ações cotidianas, para além dos discursos) com mudanças de atitudes e de práticas políticas que fortaleçam a idéia de uma sociabilidade que, como afirmara Kollontai , seja expressão de uma nova moral política e sexual.
 
IHU On-Line - Como se caracterizaria uma sociedade protagonizada pelas mulheres? 
Telma Gurgel
- Em primeiro lugar, não podemos partir do princípio de que o fato de ser protagonizada por mulheres, por si, já garante uma sociedade mais justa. Temos vários exemplos na história que não nos autorizariam essa afirmação. Pensando nos princípios do feminismo com o seu questionamento à ordem patriarcal e às estruturas tradicionais da política, como também, nos reportando à sua práxis de autonomia e horizontalidade em suas organizações, podemos vislumbrar uma sociabilidade na qual seja predominante o desenvolvimento de mecanismos amplos de democracia e de representatividade, tendo como base as experiências pessoais e coletivas, pois como já afirmara Delphy, “nenhum nível de empatia substitui a experiência”. Sendo assim, se pensamos numa sociedade de igualdade e liberdade, a primeira condição seria o reconhecimento das especificidades e o respeito a diversidade, questão crucial para o feminismo na contemporaneidade.
 
IHU On-Line - Qual a contribuição do feminismo para a sociologia contemporânea? O que há de diferente no “olhar” feminino sobre a vida?
Telma Gurgel -
A primeira grande contribuição, sem dúvida, se deu no campo da epistemologia com a superação da contradição entre objetividade e subjetividade e na desnaturalização do determinismo biológico na leitura da sociedade. Não podemos esquecer que os estudos feministas contribuíram para a introdução de novos temas, como a história das mulheres e sobre a violência sexista e racial. Como já falei acima, não se trata de um olhar diferente, por ser feminino, e sim, de uma perspectiva teórica que se propõe a pensar a sociedade à luz de categorias que expõem as bases da opressão e dominação das mulheres e, ao mesmo tempo, formula propostas e ações que alterem esta realidade.

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição