Edição 514 | 30 Outubro 2017

A grande virada na relação entre os vivos e os mortos

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João Vitor Santos | Tradução Moisés Sbardelotto

Adriano Prosperi analisa o que considera como o ponto mais importante na perspectiva antropológica da Reforma Luterana

Ter clareza sobre o conceito de liberdade e a relação entre vivos e mortos é fundamental para compreender os efeitos da Reforma capitaneada por Martinho Lutero. Afinal, ele vem de uma perspectiva feudal, em que o espírito da vassalagem mantém o ser humano medieval atrelado a um senhor, seja no poder temporal ou espiritual. “Lutero acolheu e sofreu a influência do Agostinho antipelagiano tardio, com a sua doutrina da radical pecaminosidade humana e da impossibilidade de o homem se salvar pelos seus méritos”, completa o historiador e jornalista Adriano Prosperi. Mas, segundo ele, é o próprio Lutero que rompe e anuncia que “o cristão é livre de toda obrigação e de todo senhor, sujeito somente a Deus e à própria consciência”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Prosperi ainda ressalta que a palavra liberdade aparece pela primeira vez num texto impresso nos escritos luteranos. “Na experiência de Lutero, ela [liberdade] se manifesta com a recusa de obedecer às máximas autoridades do mundo cristão, o papa e o imperador”, explica. O historiador ainda aponta como grande virada antropológica a libertação dos vivos com relação à morte. “Com a morte, as almas entram em um mundo de que não sabemos nada. Não podemos fazer nada por elas. Portanto, abandona-se a crença no Purgatório e a prática de financiar eclesiásticos para que rezem missas pelas almas dos mortos”, pontua. É essa a chave que vira, marcando a passagem de um pensamento “vassálico” medieval para o moderno livre. “Sem conhecer Lutero, não se pode entender grande parte dos aspectos da cultura religiosa e da vida civil e política moderna”.

Adriano Prosperi é historiador e jornalista italiano. Atuou nos jornais italianos Corriere della Sera, Il Sole 24 Ore e La Repubblica. Entre suas publicações, destacamos Tribunais da Consciência. Inquisidores, confessores, missionários (São Paulo: EDUSP, 2013), Lutero. Gli anni della fede e della libertà, Collezione Le Scie (Milano: Mondadori, 2017) , Identità. L'altra faccia della storia, Collana I Robison. Letture (Roma-Bari: Laterza, 2016) e La vocazione. Storie di gesuiti tra Cinquecento e Seicento, Collana Storia (Torino: Einaudi, 2016).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Podemos compreender a Reforma Luterana como algo que foi lentamente gestado ao longo da Baixa Idade Média ? Por quê?
Adriano Prosperi – As premissas medievais da Reforma de Lutero foram, por um lado, a concepção da Igreja de Huss e Wyclef e, por outro, o misticismo de Tauler , que chegou a Lutero com o tratado Theologia Deutsch , impresso por ele em 1516. A descoberta das ideias de Huss ocorreu por volta de 1518 (disputa de Heidelberg).

IHU On-Line – A Igreja Medieval foi submetida a inúmeras reformas. Como compreender essas reformas e de que forma impactam, ou inspiram, a Reforma Luterana?
Adriano Prosperi – Lutero, como membro da Ordem Agostiniana, acolheu e sofreu a influência do Agostinho antipelagiano tardio, com a sua doutrina da radical pecaminosidade humana e da impossibilidade de o homem se salvar pelos seus méritos.

IHU On-Line – De que forma Lutero é impactado pelo “despertar evangélico”, que tem suas primeiras ocorrências ainda cerca de 200 anos antes da Reforma Luterana?
Adriano Prosperi – A redescoberta do Evangelho e do dever do cristão de imitar Cristo sofredor e pobre ocorreu com os movimentos pauperistas. Os seguidores do comerciante de Lyon Valdo se reconheceram nas ideias de Calvino e aderiram à Reforma em 1536.

IHU On-Line – Como podemos compreender a mudança de mentalidades entre a Idade Média e a Moderna a partir da Reforma Luterana e da experiência de vida de Lutero?
Adriano Prosperi – O ponto mais importante no plano antropológico é a virada na relação entre os vivos e os mortos: com a morte, as almas entram em um mundo de que não sabemos nada. Não podemos fazer nada por elas. Portanto, abandona-se a crença no Purgatório e a prática de financiar eclesiásticos para que rezem missas pelas almas dos mortos.

IHU On-Line – Em seu livro , o senhor destaca a grande descoberta de Lutero acerca da liberdade. No que consiste essa liberdade e como se manifesta na experiência luterana?
Adriano Prosperi – A palavra “liberdade” em um texto impresso apareceu pela primeira vez na história europeia com o escrito de Lutero. É o anúncio de que o cristão é livre de toda obrigação e de todo senhor, sujeito somente a Deus e à própria consciência. Na experiência de Lutero, ela se manifesta com a recusa de obedecer às máximas autoridades do mundo cristão, o papa e o imperador. Mas, como membro da sociedade terrena, o cristão, de acordo com Lutero, deve obedecer à autoridade, porque toda autoridade vem de Deus (Paulo, Carta aos Romanos 13, 1ss).

IHU On-Line – O que mais as perspectivas teológicas de Lutero revelam?
Adriano Prosperi – Lutero não recebe “revelações” de Deus. Ele é hostil a profetas e pregadores visionários que anunciam revelações especiais. A sua proposta é: “sola Scriptura” e “sola fides”.

IHU On-Line – Como é possível perceber as perspectivas de Agostinho em Lutero?
Adriano Prosperi – O agostinianismo de Lutero lança uma luz sombria sobre a capacidade humana de fazer o bem. A partir desse ponto de vista, Lutero é anti-humanista. Não por acaso, o seu desacordo com Erasmo abriu uma grave crise na cultura do seu tempo. Coube a Melâncton separar-se de Lutero e dar uma impressão humanista à reforma da escola na Alemanha.

IHU On-Line – Que chaves de leitura a experiência da Reforma Luterana fornece para compreendermos a Modernidade?
Adriano Prosperi – Creio que, sem conhecer Lutero, não se pode entender grande parte dos aspectos da cultura religiosa e da vida civil e política moderna, não só em relação à Alemanha. E é importante levar em conta as profundas diferenças que caracterizam hoje as culturas europeias para superar as dificuldades que se apresentam na construção de uma Europa unida. Muitos preconceitos hostis dos protestantes contra as culturas católicas mediterrâneas, e dos países mediterrâneos contra a Europa atlântica e norte-oriental surgiram continuamente: pense-se nas acusações de corrupção, por um lado, de fetichismo estatalista e de obediência acrítica, por outro.

IHU On-Line – É possível conceber uma ideia de reforma hoje, na transição entre Modernidade e Pós-Modernidade? Como?
Adriano Prosperi – Existem muitos e grandes problemas que se apresentam ao mundo euroatlântico e que requerem soluções adequadas: fundamental entre todos é a diferença de níveis de liberdade e de segurança social. Mas, por enquanto, a Europa e as suas culturas difundidas na América do Norte parecem incapazes de enfrentá-los e fechadas na defesa da própria riqueza. Seria preciso outra Reforma ou outra Revolução: mas, se ela ocorresse, certamente não se trataria de um jantar de gala.■

Leia mais

- Deus, o horror e a eterna pergunta. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia de 24-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A nossa vergonha. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia de 20-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Os tormentos do perdão. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia de 11-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- O método de Francisco. Artigo de Adriano Prosperi, publicado em Notícias do Dia de 18-9-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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