Edição 514 | 30 Outubro 2017

Moderna é a pluralidade de confissões que surgiram do protesto de Lutero

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João Vitor Santos | Tradução: Ramiro Mincato

Para Massimo Firpo, o monge agostiniano esteve imerso no contexto medieval, querendo a volta de valores do cristianismo apostólico, mas que culminou numa fragmentação moderna da cristandade

O historiador Massimo Firpo não acredita que Lutero seja alguém que inaugura um novo tempo. “Lutero não foi um homem da modernidade: foi um homem de Idade Média, imerso nas práticas devocionais e no saber teológico. Lutero queria trazer a Igreja de Roma de volta à pureza original da era apostólica”, argumenta. Assim, para o professor, o tempo moderno chega quase como uma consequência inesperada. “A teologia de Lutero não era moderna, mas o foi a pluralidade de confissões cristãs surgidas de seu protesto”, pontua. Ou seja, Lutero leva a cabo uma divisão que mais tarde promove uma fragmentação, libertando e criando outras tantas formas de ser cristão. “No final, este mundo plural de Igrejas decorrentes da Reforma se tornaria um mundo pluralista garantido pela lei”, completa.

Firpo ainda destaca, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que é o Estado que consegue impor uma aceitação da pluralidade religiosa e é dele o movimento de secularização. “Não foi a mensagem de fraternidade, de amor mútuo, de recusa da violência registrada em tantas páginas do Evangelho a sancionar os princípios de tolerância e depois de liberdade de consciência, mas foram os Estados a impor às relutantes Igrejas cristãs, todas elas dispostas a praticar a violência contra dissidentes religiosos”, explica. Para o professor, inclusive, é das igrejas que vem uma tensão no sentido contrário. “Não vejo diferença substancial entre o apoio do poder secular, sempre procurado pela Igreja, tanto nos tempos medievais como na era moderna, sob o esforço constante para subordinar o poder secular ao poder religioso”, pontua.

Massimo Firpo é historiador italiano, diretor de Rivista Storica Italiana, membro da Academia de Ciências de Turim e da Academia Nacional dos Linces de Roma. Foi professor de História Moderna na Universidade de Cagliari, de Turim e na Scuola Normale Superiore di Pisa. Pesquisou a crise religiosa do século XVI, o que lhe rendeu diversas obras: Pietro Bizzarri, esule italiano do Cinquecento (Turim: Giappichelli, 1971), Il problema dela tolleranza religiosa nell’età moderna: Dalla Riforma Protestante a Locke (Torino: Loescher, 1978), entre outras. Depois, dedicou-se à investigação da matriz do radicalismo religioso do século XVI. Sobre estes estudos, entre suas publicações, destacamos Tra alumbrados e «spirituali»: Studi su Juan de Valdés e il valdesianesimo nella crisi religiosa del ‘500 italiano (Firenze: Olschki, 1990) e Riforma protestante ed eresie nell’Italia del Cinquecento: Un profilo storico (Roma-Bari: Laterza, 1993).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual foi o papel de Erasmo de Roterdã no contexto da Reforma Luterana?
Massimo Firpo – Não existe propriamente um papel de Erasmo na Reforma Luterana, porque Erasmo sempre foi estranho a ela. Certamente, dizia-se que Lutero apenas tinha chocado os ovos colocados por Erasmo, ou que, se não era Erasmo a “luteranizar”, era Lutero a “erasmizar” (aut Erasmus lutherizat aut Lutherus erasmizat). Neste sentido, não há dúvida de que Erasmo deu um contributo decisivo para preparar a reforma e abrir o caminho para o seu sucesso, insistindo ora com ironia mordaz como no Elogio da Loucura, ora com dureza severa como em Iulius exclusus ou em Ciceronianus, sobre os males infinitos da Igreja, as superstições populares exploradas para fim de lucros por um clero ganancioso e insensato, sobre a ignorância dos frades e preguiça dos monges, sobre os absurdos dos teólogos escolásticos, sobre a corrupção e simonia da cúria romana, sobre os abusos infinitos que se concretizavam in capite et in membris.

Quando Lutero emergiu na derrocada da história alemã e europeia, Erasmo percebeu que sua força, energia e indignação poderiam forçar Roma àquela reforma que seus escritos não tinham conseguido aviar. Por isso ele ficou em silêncio mesmo quando Lutero se rebelou contra o papa, quando rasgou a bula Exsurge Domine e queimou em praça pública os livros de Direito Canônico, quando publicou seus amargos libelos de 1520, A Liberdade do Cristão, O Cativeiro Babilônico da Igreja de Roma, À nobreza cristã da nação alemã. Nem Erasmo intervém após a condenação de Lutero contra a proibição do Imperador, nem quando proclamou que o papa era o Anticristo ou anunciou a doutrina da justificação unicamente pela fé ou o sacerdócio universal dos fiéis. Só fez ouvir sua voz até em 1524, e o fez em uma questão até então à margem do controverso confronto com os teólogos católicos, o livre arbítrio, e Lutero admitiu que ele foi o único capaz de tocá-lo no ponto nevrálgico, sem desperdiçar tempo com questões secundárias como votos, peregrinações, indulgências, relíquias de santos, purgatório etc.

E Erasmo escolheu esse argumento porque sobre o livre arbítrio se fundava o humanismo cristão, o chamado à responsabilidade moral de cada um, a rejeição da doutrina da predestinação, consequência de um arbítrio servil, com todos os problemas irresolúveis na teodiceia que essa implicava. Nesse sentido, o cristianismo de Erasmo não só se revelou diferente, mas incompatível com aquele de Lutero, cujo escrituralismo bíblico era estranho ao humanista holandês (que também publicou a primeira edição crítica do Novo Testamento em grego). A um cristianismo todo teológico de Lutero, ele contrapunha um cristianismo ético derivado do Evangelho, não um abstrato código de verdades doutrinais, mas uma mensagem moral de amor fraterno que impunha escolhas difíceis e, exatamente por isso, tinha sentido e valor.

Por esta razão, em uma de suas últimas obras, De amabili Ecclesiae concordia, procurou dirigir um apelo às contrapostas ortodoxias doutrinárias para propor uma modica theologia, consciente das limitações da mente humana e da sua incapacidade de acessar as verdades divinas, mas tal para sugerir práticas de justiça, caridade, amor do próximo. Isso ajuda a explicar por que os teólogos de todas as confissões que surgiram da grande crise religiosa do século (com exceção dos antitrinitários) apresentassem Erasmo como um herege, ou nada mais do que um oportunista vira-casaca.

IHU On-Line – Como entender a distância entre Erasmo e Lutero?
Massimo Firpo – A distância entre Erasmo e Lutero decorre da crescente consciência de ambos em dar um significado diferente à palavra ‘cristão’, em reconhecer-se não apenas em modelos diferentes, mas alternativos de cristianismo. Não há dúvida de que, no final, Erasmo indicou um modelo de cristianismo muito mais compatível com a modernidade, com a liberdade de consciência, com a sensibilidade ética dos crentes de hoje, que parece pouco verossímil ter, no passado, imolado e mandado ao fogo por questões como o purgatório ou a confissão sacramental, que muitos crentes e praticantes agora dão tão pouco valor. E, estranhamente, o cristianismo praticado hoje por muitos reformados ou evangélicos é muito mais erasmiano do que luterano e calvinista. Por sorte, tem-se vontade de dizer! Mas as Igrejas oficiais e as diferentes ortodoxias doutrinárias com que se identificam deveriam estar muito mais conscientes da violência, constrições e crueldades a que foram responsáveis no passado.

Devemos todos nos alegrar com o abraço do papa Francisco à pastora luterana de Lund , na Suécia, mas isso não deve fazer esquecer as condenações, os anátemas, as perseguições, o sangue derramado em nome daquelas ortodoxias doutrinárias. Talvez devêssemos começar a refletir – erasmianamente – que todo abraço ecumênico (ou mesmo apenas interconfessional) testemunha o fracasso da teologia, de seu contínuo esforço em perseguir a história, muitas vezes com atrasos inaceitáveis, para explicar como o que foi errado ontem torna-se correto hoje, como o herege dado às chamas ontem tornou-se o irmão separado de hoje. Mas nada, acredito, nem mesmo Deus em pessoa, seria capaz de convencer os teólogos da inutilidade perigosa de sua presunção de ensinar uma verdade perpétua e imutável a um mundo continuamente em mudança.

IHU On-Line – Podemos conceber a Reforma Luterana como uma divisão entre o pensamento medieval e o moderno? Por quê?
Massimo Firpo – Não, absolutamente não. Lutero não foi um homem da modernidade: foi um homem de Idade Média, imerso nas práticas devocionais e no saber teológico. Lutero queria trazer a Igreja de Roma de volta à pureza original da era apostólica, lutar contra as degenerações modernas, contra sua contaminação enfática com o humanismo renascentista.

Lutero contribuiu para a modernidade, mas contra suas intenções (outra confirmação da heterogeneidade dos fins como força dominante da história). Conseguiu fundar uma nova Igreja, não derrubar o papa. E, do seu protesto, outras Igrejas surgiram, outros credos, outras identidades religiosas, todos invocando os mesmos fundamentos do cristianismo, o Novo e o Antigo Testamento, mas cada um em oposição aos outros: calvinistas, anabatistas de várias denominações, antitrinitários , socinianos , não-adorantes, depois quakers , presbiterianos , independentes, puritanos, quinto monarquistas, metodistas , pentecostais, adventistas do sétimo dia , testemunhas de Jeová , e assim por diante. Mais e mais, o mundo protestante quebrou-se e dividiu-se, e mesmo no século XVI o luteranismo viu-se dentro de um conflito feroz entre diferentes orientações, entre os chamados filipistas, herdeiros da moderação de Filipe Melâncton , o braço direito de Lutero, e os intransigentes Gnesio Luteranos , luteranos puros, indissoluvelmente ligados à palavra do mestre.

Pluralidade protestante

Dentro de poucos anos, em suma, o mundo protestante se tornaria um mundo plural, dividido entre confissões e seitas diferentes, e percorrido por conflitos ásperos, ódios teológicos, condenações recíprocas. Como em 1550 escreveu um exilado italiano em Basileia, "não só na Itália há Satanás, não só na Itália há o Anticristo, não só na Itália há a causa de todos os delitos, de toda a impiedade, de todos os males: o papado". Não teriam sido as Igrejas, mas as autoridades civis que puseram fim às guerras religiosas, à tirania, ao faccionalismo, à intolerância de ortodoxias doutrinais, até estabelecerem o princípio – mestres Spinoza e Locke – que todos são livres para acreditar no que quiserem, contanto que não infrinjam a lei, já que o Estado não se ocupa com Deus, mas com os homens, tutelando a paz e não a salvação eterna.

No final, este mundo plural de Igrejas decorrentes da Reforma se tornaria um mundo pluralista garantido pela lei. E, graças a isso, católicos e protestantes, anabatistas e quakers, calvinistas e às vezes judeus iriam aprender, um pouco de cada vez, que se pode comerciar proficuamente, que se pode e se deve honrar um contrato, que se pode também fazer ótimos negócios com pessoas de diferentes credos, que se pode falar de política, beber uma boa cerveja e talvez até concordar em casar os próprios filhos, mesmo com aqueles que pensam de forma diferente sobre a eucaristia ou, talvez, honrem seu Deus em um dia diferente do domingo. A teologia de Lutero não era moderna, mas o foi a pluralidade de confissões cristãs surgidas de seu protesto.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre o cisma, gestado em Erasmo, mas eclodido em Lutero, com a secularização e divisão moderna entre os poderes temporal e espiritual?
Massimo Firpo – Erasmo não queria qualquer cisma, ao contrário, até escreveu De amabili Ecclesiae concordia exortando a todos para encontrarem as razões da unidade sem insistir demais em sutilezas teológicas, que configurariam somente motivos de divisão, na maioria sobre questões não essenciais à fé e à vida cristã. No Tratado Sull’autorità secolare, de 1523, Lutero exortou os príncipes seculares a não intervir em questões religiosas, a deixar agir a Palavra de Deus, a evitar a coerção religiosa; mas, em seguida, o surgimento do anabatismo e as tensões milenaristas da guerra dos camponeses levaram-no a mudar de rumo, solicitando a intervenção das autoridades políticas em tutela da "verdadeira" fé: um princípio que será enfim teorizado nos anos trinta como ius reformandi, como direito de impedir, nas terras confiadas ao seu governo, o ímpio culto papista.

Uma Reforma incoativa, ainda fraca e incerta, deixava já espaço para uma Reforma institucional, para uma nova Igreja, pronta a reivindicar o monopólio da verdade, como fazia o Papa em Roma e Calvino em Genebra. Foi a propagação do pluralismo religioso dentro da mesma comunidade política, como a Inglaterra revolucionária ou as Províncias Unidas da Holanda a obrigar as autoridades civis a evitarem confrontos religiosos que ameaçavam tornar-se lutas civis (presbiterianos contra independentes, na Inglaterra, gomaristas contra arminianos e remonstrantes , na Holanda). Foi na Inglaterra, depois da gloriosa revolução, que foi lançada, em 1689, a primeira lei que permitiu e, ao mesmo tempo, impôs, a tolerância religiosa. Em outras palavras, gostando ou não gostando, não foram as Igrejas e confissões cristãs que pediram leis que garantissem a paz religiosa, não foi a mensagem de fraternidade, de amor mútuo, de recusa da violência registrada em tantas páginas do Evangelho a sancionar os princípios de tolerância e depois de liberdade de consciência, mas foram os Estados a impor às relutantes Igrejas cristãs, todas elas dispostas a praticar a violência contra dissidentes religiosos.

IHU On-Line – Os movimentos da Igreja Católica de reação ao desafio luterano inauguram outras perspectivas, vide a Contrarreforma. A partir daí, como compreender as outras associações que a Igreja faz com o poder temporal em nome da expansão da fé cristã, já no período moderno das conquistas territoriais? E no que se distinguem das alianças do tempo medieval?
Massimo Firpo – Através de práticas repressivas e de censura, a Igreja Católica lutou duramente contra a heresia, mas isso ocorreu apenas na Itália: somente na Itália, de fato, a Inquisição romana teve jurisdição. Mas o que me parece mais relevante é que as escolhas feitas nos vértices da Igreja não foram o resultado do Concílio de Trento , que de fato recebeu referências muito subordinadas às instruções dadas pela Cúria romana, contando sobre uma maioria de bispos italianos, frequentemente muito pobres (pequeníssimas eram as Dioceses no sul da Itália) "assalariados pelo papa", nem de uma estratégia unitária dos vértices curiais. O que aconteceu (nem seria possível pensar que as coisas acontecessem de outra forma) foi um áspero conflito dentro do próprio sagrado colégio sobre os caminhos e melhores estratégias para lidar com os grandes problemas levantados pela Reforma Protestante, nomeadamente, como se relacionar com as posições teológicas dos grandes mestres da Reforma dos transalpinos e como fazer zarpar a reforma da Igreja: que metas propor-se, que estratégias seguir?

Houve várias propostas, ora voltadas à mediação e ao acordo com os protestantes, ora ao confronto frontal contra eles, ora às fórmulas de concórdia, ora às condenações sem apelo. Houve propostas de reforma da Igreja diferentemente incisivas, baseadas ora em uma dilatação da autonomia dos bispos da periferia, ora no fortalecimento da estrutura vertical da Cúria e, em particular, do poder papal. Foi a segunda estratégia que prevaleceu, de acordo com o princípio estabelecido desde 1532, por Gian Pietro Carafa, mais tarde Papa Paulo IV , que "os heréticos se querem tratados como hereges", e a serem tratados como hereges foram também os defensores da outra solução, como os cardeais Reginald Pole e Morone , acusados de heresia luterana.

Parece, portanto, lícito sustentar que o conceito de Contrarreforma não envolve tanto uma luta contra a distante Reforma Protestante, quanto contra a próxima e concorrente estratégia de reforma da Igreja promovida por outras correntes, outros grupos, outras perspectivas religiosas, que, no entanto, foram severamente derrotadas. Produziu uma Igreja forte, reforçada em sua estrutura institucional, reagrupada em torno de autoridade papal, forte de certezas teológicas inquestionáveis, capaz de encontrar novas formas de vitalidade no extraordinário esforço missionário implantado na época pós-tridentina, mas também com base em modelos autoritários, na falta de cultura teológica dos leigos (que foram proibidos de ler a Bíblia em suas línguas), na pastoral da obediência. Não vejo diferença substancial entre o apoio do poder secular, sempre procurado pela Igreja, tanto nos tempos medievais como na era moderna, sob o esforço constante, – e diversamente modulado nos séculos de acordo com diferentes circunstâncias históricas – para subordinar o poder secular ao poder religioso.■

Leia mais

- Lutero, revolucionário por acaso. Artigo de Massimo Firpo, reproduzido nas Notícias do Dia de 13-01-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos.

- Erasmo: nem com Roma, nem com Lutero. Artigo de Massimo Firpo, reproduzido nas Notícias do Dia de 6-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos.

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