Edição 514 | 30 Outubro 2017

A Reforma como farsa depois da tragédia da fundação da igreja por Paulo, segundo Nietzsche

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Márcia Junges | Tradução: Walter O. Schlupp

Helmut Heit analisa o “poder explosivo das teses de Lutero” e assinala que a maldição contra o cristianismo proferida por Nietzsche se contrapõe aos Dez Mandamentos ou ao Sermão da Montanha

Lutero ainda estava preso ao pensamento medieval, e por isso não poderia “acolher bem a grandeza da cultura do Renascimento. A Reforma aparece, assim, como a obra de um fundamentalista que restaura o cristianismo com base em Paulo e Agostinho”, pontua o filósofo alemão Helmut Heit na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “A Reforma de Lutero é, antes, a farsa que se segue à tragédia da fundação da igreja por Paulo. Ainda assim, Nietzsche fica naturalmente fascinado pelo caráter vigoroso de Lutero. Ele louva, como se sabe, a linguagem de Lutero e caracteriza a tradução da Bíblia como a melhor obra de prosa alemã surgida até então.” Outros temas abordados por Heit são o marco dos processos políticos, culturais e eclesiásticos que gestam a Reforma, bem como a Contrarreforma jesuíta, tida por Nietzsche como um movimento retardador na história ocidental.

Helmut Heit é professor associado de filosofia europeia e alemã e vice-diretor da Academia de Cultura Europeia na Universidade Tongji, em Shanghai, China. Estudou filosofia e ciência política em Hannover, Melbourne e Berlim. Em 2003 concluiu PhD em Hannover com um estudo sobre a emergência da filosofia ocidental na Grécia Antiga. Antes de lecionar em Shanghai, foi professor na Universidade Técnica de Berlim, na Universidade de Humboldt, em Berlim, na Universidade da Califórnia em San Diego, EUA, e na Universidade Leibniz, em Hannover. Em 2014 e 2015 foi professor convidado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. É coeditor dos Nietzsche-Studien e da série de livros Monographien und Texte der Nietzscheforschung (de Gruyter), membro do comitê executive da Sociedade Nietzsche, na Alemanha, e diretor fundador do Berliner Nietzsche-Colloquium, entre outras atividades.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são os pressupostos fundamentais da crítica de Nietzsche ao cristianismo, mas, sobretudo, ao luteranismo?
Helmut Heit - A crítica de Nietzsche ao cristianismo se baseia no pressuposto fundamental de que a hipótese cristã de Deus perdeu a credibilidade. A religião cristã não pode mais apresentar ao ser humano moderno uma pretensão de verdade no sentido clássico da palavra. É isso que significa inicialmente o discurso a respeito da morte de Deus. Neste sentido, nos textos de Nietzsche essa ideia não é desenvolvida como uma teoria própria e original, mas é, antes, apenas constatada e averiguada quanto a suas consequências. Nietzsche pode pressupor que os argumentos a favor dela são conhecidos e não os expõe sistematicamente, mesmo que todas as objeções contemporâneas contra o cristianismo se encontrem em diversas passagens de seus textos.

Os iluministas franceses, assim como os jovens hegelianos, neokantianos e positivistas, estavam em sua maioria convictos de que o Deus tradicional como função ou mesmo fundamento da filosofia e da ciência já dera o que tinha para dar. Para a consciência contemporânea, as mais importantes objeções contra a pretensão de validade clássica da hipótese de Deus são de natureza filosófica, científico-natural, histórica e psicológico-social. Immanuel Kant , com sua crítica de todas as provas da existência de Deus e tentativas filosóficas na teodiceia, transforma o Deus cristão de uma existência indiscutível em um postulado moral e um objeto da religiosidade privada. Nas teorias mecânicas, cosmológicas e evolucionárias do século XIX, Deus, diferentemente do que ainda era o caso no pensamento de Newton ou Leibniz , está essencialmente obsoleto. Os fenômenos são explicados de uma maneira diferente e melhor sem ele. Também a análise histórico-crítica dos textos bíblicos, de que Nietzsche toma conhecimento já em Schulpforta, contribui para a profanização da anteriormente “Sagrada Escritura”. Na Bíblia não temos comunicações inspiradas de Deus, e sim as narrativas de um povo de pastores do Oriente Médio. Autores como Feuerbach , Heine e Marx explicam, finalmente, a ideia de Deus, persistente do ponto de vista da história da cultura, como uma projeção humana, que diz muita coisa sobre nós seres humanos, mas não diz nada sobre a eventual existência de tal ser.

Deus, uma ficção útil

Em seu conjunto, essas objeções tornam Deus uma noção que não pode ser provada filosoficamente, é cientificamente supérflua e historicamente modificável, cuja existência pode ser bem explicada do ponto de vista da psicologia social. Em séculos anteriores, menos esclarecidos, Deus estava vivo como ficção coletiva, sendo um fato social culturalmente atuante. Na época de Nietzsche, a crença geral antigamente real e eficaz em um ser supremo tinha perdido maciçamente validade; não se precisa mais dele e não se crê mais nele. Neste sentido Deus está morto, tendo mostrado ser uma ficção que deixou de ter credibilidade.

A crítica do cristianismo de Nietzsche, contudo, não se limita a perguntar se os relatos a respeito de Deus, sua situação familiar e suas ações, suas exigências e promessas, capacidades e atividades são verdadeiras. Ao que tudo indica, o que lhe interessa é, antes, principalmente perguntar se Deus é uma ficção útil. Neste caso se mostra que Nietzsche não move uma crítica ideológica unilateral contra o cristianismo, embora, em última análise, ele também responda a essa pergunta negativamente para o presente e o futuro: embora a hipótese da moral cristã tenha dado um sentido à existência humana, e a interiorização ascética da culpa e da má consciência tenha tornado o ser humano mais profundo e interessante, isso sempre se deu ao preço de uma degradação, ofensa e humilhação do ser humano e da vida.

A crítica a Lutero consiste, sobre esse pano de fundo, principalmente na afirmação de que ele salvou o cristianismo. Estando ele próprio ainda inteiramente preso no pensamento da Idade Média, Lutero não podia entender nem acolher bem a grandeza da cultura do Renascimento. A Reforma aparece, assim, como a obra de um fundamentalista que restaura o cristianismo com base em Paulo e Agostinho .

IHU On-Line - Se pensarmos na crítica nietzschiana à genealogia da Modernidade, qual é a importância de suas ressalvas a Lutero?
Helmut Heit - Esta pergunta é particularmente difícil de responder, pois a confrontação de Nietzsche com a Modernidade é extremamente multifacetada. A Modernidade e também o cristianismo são poderes culturais de significado dialético. Elas encerram tensões e dinâmicas que não são condenadas unilateralmente por Nietzsche, mas com as quais também se associam potenciais para o desenvolvimento da humanidade. Neste sentido, a Reforma de Lutero certamente contribuiu para a individualização e privatização do pensamento e do sentimento.

IHU On-Line - Como essa crítica repercutiu na época em que foi formulada e qual a sua importância atualmente?
Helmut Heit - Como se sabe, entre seus contemporâneos diretos Nietzsche teve pouca repercussão. Hoje em dia, seu tratamento da religião é muitas vezes reduzido, na opinião pública, ao discurso a respeito da morte de Deus. Isso é lamentável, já que sua crítica do cristianismo vai muito além dessa afirmação negativa e pergunta a respeito das fontes e perspectivas da necessidade religiosa.

IHU On-Line - Em que medida a formação religiosa de Nietzsche fornece algumas pistas para explicar seu posicionamento em relação ao Luteranismo?
Helmut Heit - Certamente o fato de Nietzsche provir de uma família inteiramente protestante desempenha um papel importante. Ainda durante o tempo que passou em Basileia ele se sente unido ao espírito de Lutero, e reage com perplexidade à intenção de seu amigo Heinrich Romundt de se tornar justamente sacerdote católico. Sua própria caminhada rumo à descrença é, biograficamente, sem dúvida interessante. Em última análise, porém, o cristianismo lhe interessa não como objeto de religiosidade pessoal, e sim como fenômeno cultural.

IHU On-Line - Em que aspectos a figura de Lutero como “monge ressentido”, mas também como um tipo psicológico interessante, mobiliza o interesse de Nietzsche?
Helmut Heit - Em comparação com Jesus, Paulo, Sócrates e Platão , Lutero é de grande interesse para Nietzsche, mas não de interesse extraordinário. A Reforma de Lutero é, antes, a farsa que se segue à tragédia da fundação da igreja por Paulo. Ainda assim, Nietzsche fica naturalmente fascinado pelo caráter vigoroso de Lutero. Ele louva, como se sabe, a linguagem de Lutero e caracteriza a tradução da Bíblia como a melhor obra de prosa alemã surgida até então. Isso também se refere à enorme atividade transformadora da cultura que Lutero conseguiu desenvolver. Na medida em que Nietzsche também visa a uma transformação, essa figura atrai naturalmente sua atenção.

IHU On-Line - Até que ponto podemos compreender a crítica nietzschiana aos alemães e sua filosofia e teologia tendo Lutero como figura central?
Helmut Heit - Como disse acima, eu não veria Lutero como figura central da crítica de Nietzsche aos alemães, à sua filosofia e à sua teologia. Certamente a filosofia alemã de Kant, Hegel e Schleiermacher é protestante de cabo a rabo. Não sem razão, Nietzsche faz troça do idealismo dos teólogos do Seminário de Tübingen [residência e instituição de ensino de estudantes protestantes no estado de Baden-Württemberg]. Mas ele atribui a arrogância presunçosa com que os alemães se entendem como nação superior após 1870/71 a diversas fontes. O horizonte de sua crítica à filosofia moderna não se restringe à Idade Moderna, mas também compreende sempre a Antiguidade grega e cristã.

IHU On-Line - É possível dizer que a maldição contra o Cristianismo, lançada ao final de O Anticristo, opera como uma contraposição às teses de Lutero? Por quê?
Helmut Heit - Eu não colocaria isso necessariamente assim. As teses de Lutero tratam de maneira bastante acadêmica e detalhada de questões da certeza da salvação e da prática cristã. Elas são, inicialmente, sobretudo uma contribuição para um problema teológico. O poder explosivo das teses de Lutero não é fácil de ser apreendido e também só se mostra no marco dos processos políticos, culturais e eclesiásticos que então acabam constituindo a Reforma. Poder-se-ia, antes, entender a maldição contra o cristianismo como uma contraposição aos Dez Mandamentos ou ao Sermão da Montanha.

IHU On-Line - Qual é a posição de Nietzsche em relação à Contrarreforma representada pelos jesuítas?
Helmut Heit - A Contrarreforma é objeto de crítica de diversas formas no pensamento de Nietzsche. No prefácio de Além do bem e do mal, ele inclui o jesuitismo entre os grandes movimentos retardadores na história do Ocidente. Nietzsche parece ter visto na Contrarreforma a implementação católica, isto é, generalizada do protestantismo. Por meio da Contrarreforma, o cristianismo foi salvo para a Modernidade.

IHU On-Line - Sob que aspectos existe uma crítica de Nietzsche a um conceito de Deus niilista no protestantismo?
Helmut Heit - Eu não diria que há uma crítica dessas no pensamento de Nietzsche: ele não critica um conceito de Deus niilista no protestantismo; isso é feito, antes, por teólogos (católicos) atuais que veem na teologia da morte de Deus uma consequência problemática e deplorável da obra de destruição protestante. Nietzsche pensa de modo diferente neste caso. Como todas as coisas grandes, o conceito cristão de Deus se arruína por causa de si mesmo. Na pretensão de que Deus é a verdade já está contido o germe de sua autossuspensão.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Helmut Heit - O que me parece particularmente interessante e importante hoje em dia, justamente também à luz de um fundamentalismo que está se fortalecendo nas mais diversas confissões, é o fato de Nietzsche problematizar a pretensão implícita ou explícita de verdade da religião. Quando ele critica a Reforma como “indignação da simplicidade”, isso se refere menos à simplicidade na acepção de burrice e falta de perspicácia, e sim a uma falta de vontade ou capacidade de tolerar a diversidade. A crença de que nós mesmos possuímos a verdade religiosa é uma ficção perigosa.■

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