Edição 513 | 16 Outubro 2017

A transformação do dom na bioética da ecologia integral

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Lara Ely | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Henrique Denis Lucas

Agustín Domingo Moratalla aborda como o humanismo integral pode converter a bioética em biopolítica

Há que se desconectar da velocidade dos dias correntes para se conectar a uma ética humanista integral. É por esse caminho que o professor e pesquisador Agustín Domingo Moratalla conduz sua entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Hoje, os espaços públicos estão orientados pela aceleração, a pressa, a urgência e a simplificação das mensagens. O Twitter nos obriga a usar 140 caracteres em nossas argumentações. Precisamos promover deliberações públicas que vão além dos 140 caracteres, e por isso é importante facilitar as informações, aprender a escutar os argumentos dos outros e descobrir espaços públicos compartilhados que nos permitam dialogar sobre temáticas comuns”, pondera o entrevistado.

Em uma época guiada, principalmente, pelas trocas mercantilizadas das relações humanas, o “dom” emerge como vetor ético importante nas relações biopolíticas. “O dom como doação propriamente dita (dom-ação) se baseia na disponibilidade, na entrega e no des-interesse, no dar sem esperar nada em troca. As éticas do cuidado recuperaram esta ideia de doação que está relacionada com a sensibilidade, o cuidado desinteressado dos outros, a generosidade e, muitas vezes, com o que chamo de ‘inteligência maternal’”, explica Domingo Moratalla.

“A presença da bioética nas políticas públicas exige que hoje falemos sobre Bioética como Biopolítica. Neste sentido, pensar sobre a condição humana hoje requer uma ecologia integral”, avalia o pesquisador. “A ecologia integral, pela qual o Papa Francisco nos convida, exige um humanismo integral, ou seja, um humanismo de todo o homem e do homem inteiro”, complementa.

Agustín Domingo Moratalla é professor na Universidad Internacional Menéndez Pelayo e do Centro Docente e Investigador de Valencia, em Valência, na Espanha. Dedica-se aos temas da Filosofia do Direito e Moral e Política. Foi diretor geral da área de Familia, el Menor y las Adopciones en la Consejería de Bienestar Social de la Generalidad, na cidade de Valência. Trabalhou como professor na Universidad Pontificia de Salamanca e, também, na Universidad Católica de Lovaina. O professor é autor de diversos livros, dos quais destacamos Democracia y caridad. Horizontes éticos para la donación y la responsabilidad (Bilbao: Loyola Grupo de Comunicación, 2014), El arte de cuidar (Madrid: Rialp, 2013), Educación y redes sociales. La autoridad en la era digital (Madrid: Ediciones Encuentro. Madrid, 2013), Ética Para Educadores (Editora P.P.C., 2008) e Educar para una ciudadania responsable (Editorial CCS, 2002).

O professor Agustín Domingo Moratalla apresenta a conferência A bioética e o cuidado da vida no contexto das sociedades mercantilistas. O evento ocorre na quarta-feira, 18-10-2017, às 9h, na sala Ignácio Ellacuría e Companheiros – IHU e integra a programação do IX Colóquio Internacional IHU. A Biopolítica como teorema da Bioética. Acesse programação completa.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – O debate sobre a ética costuma ser árido e distante do grande público. Qual é sua estratégia para popularizar o debate na Espanha?
Agustín Domingo Moratalla – Não se iluda, as questões éticas costumam despertar grande interesse entre os cidadãos e quase todo mundo quer participar. Agora, quando temos participação nas questões éticas, é importante promover a qualidade do juízo que é realizado, ou seja, que as opiniões emitidas estejam bem fundamentadas e argumentadas. Nesta tarefa de melhorar a qualidade dos juízos e argumentos, a ética se compromete como "filosofia moral", isto é, como uma reflexão sobre a vida humana que merece ser bem analisada e examinada para ser vivida plenamente por todos. Delimitar um problema, esclarecer os valores que surgirem, deliberar e ajudar a decidir com responsabilidade.

IHU On-Line – A ética é um conjunto de ferramentas as quais você pode dar às pessoas, para que elas sejam verdadeiramente autônomas. No livro Educar para una ciudadania responsable (Editorial CCS, 2002), você oferece reflexões que instigam os leitores a decidir por si mesmos e protagonizar as mudanças que o mundo aguarda. Como isto se converte em um propósito ético?
Agustín Domingo Moratalla – Em sua tarefa de fornecer ferramentas para que sejam realizados bons julgamentos e tomadas de decisões responsáveis, a ética não se limita ao âmbito pessoal ou individual, mas também tem uma dimensão social e comunitária. Hoje, os espaços públicos estão orientados pela aceleração, a pressa, a urgência e a simplificação das mensagens. O Twitter nos obriga a usar 140 caracteres em nossas argumentações. Precisamos promover deliberações públicas que vão além dos 140 caracteres, e por isso é importante facilitar as informações, aprender a escutar os argumentos dos outros e descobrir espaços públicos compartilhados que nos permitam dialogar sobre temáticas comuns.

IHU On-Line – De onde vem a desilusão pela ética aplicada?
Agustín Domingo Moratalla – Hoje, a especialização do conhecimento é muito grande e, portanto, os juízos morais públicos requerem a presença de especialistas. Isto não significa que deixemos que especialistas e técnicos tenham a última palavra. Isso significa que somos convocados a gerar espaços públicos comuns de onde os cidadãos compartilhem informação para poderem compartilhar também as responsabilidades. À medida que tomamos conhecimento da gravidade dos problemas que afetam a mercantilização da investigação biomédica, o meio ambiente, a economia cotidiana, as políticas públicas ou qualquer outro âmbito da vida, então a nossa responsabilidade é despertada.

IHU On-Line – No livro El arte de cuidar (Rialp, 2013), você mostra como a relação humana poderia ser melhor se prestássemos mais atenção no tratamento uns com os outros. Nossas crises éticas são, basicamente, "crises de cuidado"?
Agustín Domingo Moratalla – Preocupa-me muito a rapidez, a aceleração, a obsessão pelo novo e o esquecimento da vida cotidiana. Meu conceito de cuidado está associado com a atenção às relações com os outros, com a vigilância nos pequenos detalhes, com as responsabilidades mais básicas e sem as quais a vida careceria de sentido. Atender aos demais, ter uma palavra amável com os outros, tomarmos conta de quem temos ao nosso lado e entender a vida não apenas como "atividade" ou transformação, mas como "receptividade" e "dom".

IHU On-Line – De que forma podemos compreender o "dom" na ética contemporânea?
Agustín Domingo Moratalla – Existem duas formas básicas: o dom como devolução ou entrega condicionada e o dom como doação ou entrega incondicional. Há uma ideia de dom relacionada com a reciprocidade, é a base da ordem social e a partir dela são construídas ideias interessantes sobre a justiça. O dom como reciprocidade está na base de nossas relações sociais e mercantis, é a ideia de intercâmbio em termos de reciprocidade, o que em latim diríamos "do ut des". O dom como doação propriamente dita (dom-ação) se baseia na disponibilidade, na entrega e no des-interesse, no dar sem esperar nada em troca. As éticas do cuidado recuperaram esta ideia de doação que está relacionada com a sensibilidade, o cuidado desinteressado dos outros, a generosidade e, muitas vezes, com o que chamo de "inteligência maternal". O primeiro dom está ligado ao "interesse", o segundo ao "des-interesse"; o primeiro nos situa na "lógica da equivalência", o segundo nos abre para a "lógica da superabundância".

IHU On-Line – As crises instauradas no campo da política refletem, em alguma instância, a ausência de compreensão e prática de uma bioética comprometida com as questões contemporâneas?
Agustín Domingo Moratalla – As relações entre política e bioética são complexas. Prefiro falar de bioética nas "políticas públicas" para descrever a forma de introduzir os problemas de bioética na agenda política cotidiana. As diferenças significativas nos programas de políticas públicas estão diretamente relacionadas com questões bioéticas; tudo o que se relaciona com a vida está se tornando o critério para distinguir e diferenciar um programa político de outro. Como encarar a saúde cotidiana, o envelhecimento, a viuvez, a infância desamparada, o nascimento ou a morte? A presença da bioética nas políticas públicas exige que hoje falemos sobre Bioética como Biopolítica. Neste sentido, pensar sobre a condição humana hoje requer uma ecologia integral.

IHU On-Line – Como a qualidade na educação e na formação ética implica uma maior justiça social?
Agustín Domingo Moratalla – Um dos critérios que usamos para avaliar os níveis de justiça social em uma comunidade política são as instituições de ensino. Existe um falso debate que separa a equidade e a qualidade, como se o acréscimo da equidade acontecesse em detrimento da qualidade e vice-versa. Além de investir na educação e aumentar os recursos públicos e privados destinados para a formação básica, é necessário cultivar ideais, ilusões e valores que permitam aos jovens descobrir grandes horizontes na vida. O economicismo, o materialismo e o individualismo dificultam um sentido vigoroso e nobre da educação. Não valorizo o estudo apenas como ferramenta ou caminho para "ter", mas como um recurso ou bússola pela qual se pode "ser". As reflexões de Erich Fromm , onde ele traça diferenças entre "ter" e "ser", continuam a ser básicas para qualquer educador.

IHU On-Line – De que maneira a espiritualidade pode nos ajudar no desenvolvimento de uma ética mais integral?
Agustín Domingo Moratalla – Como minha tradição é inaciana, sempre tenho em mãos a máxima: "contemplativos na ação". Ao contrário de outras espiritualidades desencarnadas e despreocupadas com a justiça social ou com o que acontece no mundo, a espiritualidade à qual me refiro conduz ao compromisso, à militância e à justiça social. A oração e a contemplação facilitam e incentivam a autenticidade no trabalho pela justiça social. A ecologia integral, pela qual o Papa Francisco nos convida, exige um humanismo integral, ou seja, um humanismo de todo o homem e do homem inteiro. Desenvolvo este conceito de humanismo integral no novo livro Condición humana y ecologia integral. Horizontes éticos para una ciudadanía global, que será lançado em breve.

IHU On-Line – O que é a ética planetária? Como ela inspira o trabalho dos ambientalistas?
Agustín Domingo Moratalla – Eu prefiro falar de ética em geral e não de ética planetária, mundial ou global. Se levarmos a sério a ética, há uma vocação de universalidade e radicalidade que afeta todo o ser humano, porque "nada que é humano pode ser estranho para nós". A era da globalização nos exige ter uma mente aberta. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição