Edição 512 | 02 Outubro 2017

A emergência de um Brasil plenamente republicano

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

George Cabral de Souza considera fundamental que o bicentenário da Revolução Pernambucana estimule uma reflexão sobre a incompletude da republicanização do país

A antiguidade e a riqueza de Pernambuco e seu porto transformaram Recife “em um ponto de referência no mundo atlântico”. Conforme o professor George Cabral de Souza, “pelo mar iam mercadorias e chegavam ideias, culturas e pessoas”. E por esta paragem também ecoaram os ideais da Revolução Francesa (1789), que influenciou parte significativa do mundo ocidental. Em Pernambuco, a centelha francesa se mesclou “com um arraigado sentimento nativista”, explica Souza, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

“Às vésperas da Independência, Pernambuco possuía seguramente o pensamento político mais avançado e o projeto de nação mais bem concebido entre os diversos núcleos políticos da América portuguesa”, considera Souza. Mesmo assim, acabou triunfando “a adesão ao projeto centralizador e autoritário da Corte do Rio de Janeiro, na medida em que ele dava mais segurança aos interesses das elites locais”.

Essas elites têm como uma das principais marcas a influência do nativismo nascido nas lutas contra os holandeses no século 17. “Desde então, os senhores de engenho pernambucanos exigiram um tratamento diferenciado por parte da Coroa.” Eles se julgavam “súditos políticos” e não “súditos naturais”, afinal, “haviam restaurado a capitania sem apoio direto do rei de Portugal e voluntariamente retornaram aos domínios lusitanos”.

A importância da história de Pernambuco em relação ao país todo foi silenciada, a fim de justificar, do ponto de vista histórico, a centralização no eixo Sudeste do poder político e da vida econômica do Brasil. “Exceção feita a alguns episódios especialmente pinçados para alicerçar a narrativa histórica que apresenta a prevalência do centro-sul como a materialização de algo que sempre esteve inscrito no DNA da nação, desde seus primórdios”, destaca Souza. “Por seu caráter republicano e radical, a Revolução Pernambucana acabou sendo apartada da memória e da história da nação brasileira, mormente durante o período imperial.”

É por isso que Souza considera “fundamental que o bicentenário da revolução sirva para estimular uma reflexão sobre a incompletude de nossa republicanização”. Na sua visão, este talvez seja o maior legado de 1817: “A capacidade de nos levar a buscar ser, finalmente, uma república de fato”.

George Felix Cabral de Souza é doutor em História pela Universidade de Salamanca, mestre e licenciado em História pela Universidade Federal de Pernambuco, onde leciona e coordena a licenciatura em História. Realizou estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Recebeu o Prêmio Extraordinário de Doutorado da Universidade de Salamanca do ano 2006-2007. Preside o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano - IAHGP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pernambuco conviveu com inúmeras ondas de imigrações ao longo da sua história. Como essa chegada de africanos, portugueses, espanhóis, italianos, alemães, holandeses, ingleses, árabes e judeus, além do contato com os povos originais, vai influenciar na formação política e cultural do Estado?
George Felix Cabral de Souza – Do ponto de vista político, acredito que as fórmulas e valores cristalizados nas práticas dominantes, ao longo da história de Pernambuco, se relacionam quase que exclusivamente com a tradição ibérica de Antigo Regime. Entre elas podemos destacar os limites indefinidos entre o público e o privado, o familismo, os privilégios para os integrantes das redes clientelares e, sobretudo, uma exacerbada tendência à reprodução e ampliação dos mecanismos de fortalecimento das hierarquias sociais, ou seja, dos abismos que separam privilegiados e não privilegiados.

Vem do século 19 a quadrinha popular que, certa forma, continua válida até hoje (embora com outros personagens): “Quem viver em Pernambuco / há de estar desenganado / ou há de ser Cavalcanti / ou há de ser cavalgado”. Evidentemente, apesar disso, o estado também teve grandes figuras progressistas em sua história, algumas delas esmagadas pelas engrenagens dos poderes tradicionais. A título de exemplo, às vésperas da Independência, Pernambuco possuía seguramente o pensamento político mais avançado e o projeto de nação mais bem concebido entre os diversos núcleos políticos da América portuguesa. Esse pensamento político era diretamente influenciado pelas ideias ilustradas e pela Independência dos Estados Unidos e de alguns países da América hispânica. Não obstante, triunfou a adesão ao projeto centralizador e autoritário da Corte do Rio de Janeiro, na medida em que ele dava mais segurança aos interesses das elites locais. Do ponto de vista cultural, Pernambuco contém a mais radical e mais rica fusão de elementos indígenas, europeus e africanos do Brasil. Essa fusão se deixa perceber no nosso falar, na nossa religiosidade, no que se come e no que se bebe, bem como, não poderíamos jamais omitir, na fartura quase infinita de manifestações artísticas, mormente na música.

IHU On-Line – Qual a importância do porto para a formação do Recife e, de um modo geral, para toda a colônia?
George Felix Cabral de Souza – Pernambuco foi o centro mais antigo de colonização efetiva da América portuguesa. Sua posição geográfica garantia boas conexões navais com a Europa e a África e também excelente capacidade para produção de açúcar, o produto escolhido pelos portugueses para animar economicamente as novas terras conquistadas. Outros produtos se juntariam ao ouro doce: madeiras, couros, algodão, tabaco... O porto do Recife era o eixo de conexão de uma vasta hinterland que ia dos sertões do Ceará até os confins das terras banhadas pelo Rio São Francisco (até ser espoliado pelo imperador Pedro I em castigo pela Confederação do Equador [1824], Pernambuco se estendia até Minas Gerais: a punição imperial seccionou mais da metade do território da província, terras que foram anexadas primeiro a Minas Gerais e depois à Bahia). Por sua antiguidade e riqueza, Pernambuco e seu porto, o Recife, se transformaram em um ponto de referência no mundo atlântico. Pelo mar iam mercadorias e chegavam ideias, culturas e pessoas.

IHU On-Line – Qual a importância do olhar pernambucano para a compreensão mais ampla da história do Brasil colonial?
George Felix Cabral de Souza – Os primórdios da construção da historiografia oficial brasileira, ou seja, da biografia da Nação, se construiu sob os auspícios da Corte bragantina no Rio de Janeiro. Não se pode perder de vista esse dado quando se estuda a história do Brasil, quando se analisa como ela é produzida e veiculada até hoje, seja na escola, na universidade ou mesmo nos meios de comunicação de massa. O afã de justificar historicamente a centralização do poder político e da vida econômica do país no eixo Sudeste provocou um verdadeiro silenciamento da história de Pernambuco no contexto nacional, exceção feita a alguns episódios especialmente pinçados para alicerçar a narrativa histórica que apresenta a prevalência do centro-sul como a materialização de algo que sempre esteve inscrito no DNA da nação, desde seus primórdios. Não por acaso, os estudos realizados sobre outras partes do país, que não aquelas compreendidas no eixo dominante, são etiquetados como “história regional” ou mesmo “história local”. Não temos nada contra essas escalas de abordagem, que podem ser muito reveladoras quando bem realizadas, mas não podemos deixar de manifestar perplexidade quando estudos nestas escalas são alçados ao patamar de “história nacional” pelo simples fato de enfocarem localidades do eixo centro-sul. Daí que ressaltamos sempre a necessidade de encarar a história das diversas localidades da América portuguesa não em uma perspectiva concorrencial, mas complementar, que permita enriquecer a compreensão do todo. Por outro lado, destacamos também que essa visão mais ampla se beneficiaria de uma maior atenção dos historiadores dos centros de pesquisa do centro-sul à produção historiográfica do Norte/Nordeste do Brasil, permitindo um fluxo de mão dupla na historiografia nacional.

IHU On-Line – Como compreender o Brasil de 1817 e os fatores que levaram à Revolução Pernambucana?
George Felix Cabral de Souza – A Revolução Pernambucana ocorre num momento em que as ideias liberais nascidas na França se espalham pelo mundo ocidental e provocam a eclosão de revoluções nos Estados Unidos, na França, no Haiti e em outras áreas. Elas também influenciam os processos de independência dos países da América espanhola. Em Pernambuco, elas se mesclaram com um arraigado sentimento nativista. A capitania viveu nos primeiros anos do século 19 um boom do algodão que gerou seguidos superávits em sua balança comercial. A abertura dos portos ampliou os mercados e os ganhos, mas boa parte do superávit era drenado pela tributação, sem que houvesse melhorias concretas na capitania. Desde 1808, a Corte portuguesa estava no Rio de Janeiro, onde se abrigou após deixar Portugal, que havia sido invadido pelos franceses. Para manter a Corte, os impostos cobrados em Pernambuco foram aumentando cada vez mais. O cenário negativo se completa com um período de secas que fez baixar as safras de algodão e de cana-de-açúcar. A insatisfação das elites locais levou aos planos de derrubar a monarquia, libertar o país e fundar uma república. As lojas maçônicas foram os canais de divulgação das novas ideias. Dezenas de eclesiásticos se envolveram nos planos de revolução. Boa parte deles se formou no Seminário de Olinda, instituição fundada em 1800 pelo bispo Azeredo Coutinho com um programa de estudos bastante avançado para época, incluindo disciplinas ligadas às ciências da natureza, por exemplo. Havia uma rede conectando elementos das três principais praças do Brasil (Rio de Janeiro, Salvador e Recife), para a eclosão simultânea de um levante contra Dom João VI. Foi nesse cenário que eclodiu prematuramente no Recife, em 6 de março de 1817, a revolução republicana. A decretação de prisão de alguns dos líderes antecipou o início do movimento, quebrando a sincronia com as outras praças e facilitando a repressão que veio da Bahia e da Corte carioca. Apesar de ter sido efêmera, a República de Pernambuco conseguiu o apoio da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de parte do Ceará, tornando-se o primeiro movimento anticolonial a tomar o poder na história da monarquia portuguesa.

IHU On-Line – A partir da pesquisa que o senhor desenvolveu, quem é a chamada “elite colonial do Recife”? No que se difere e no que se associa, por exemplo, à elite colonial do Rio de Janeiro? Qual o seu papel na Revolução Pernambucana?
George Felix Cabral de Souza – As elites locais em Pernambuco possuem como uma das suas principais peculiaridades a influência do nativismo nascido nas lutas contra os holandeses no século 17. Desde então, os senhores de engenho pernambucanos exigiram um tratamento diferenciado por parte da Coroa. Julgavam-se “súditos políticos” e não “súditos naturais” porque haviam restaurado a capitania sem apoio direto do rei de Portugal e voluntariamente retornaram aos domínios lusitanos, quando poderiam ter jurado vassalagem a outro monarca cristão. Esse tópico de discurso era um dos principais argumentos esgrimidos pela “nobreza da terra” sempre que tratava de defender seus interesses.

O surgimento da Câmara Municipal do Recife (criada em 1709, instalada em 1710 e reinstalada definitivamente em 1711) ocorre justamente no âmbito dos conflitos entre a açucarocracia pernambucana e os grandes comerciantes radicados no Recife na disputa pelo poder municipal. A nobreza da terra não aceitava a entrada de comerciantes na Câmara de Olinda, e a solução encontrada pela monarquia foi a criação de uma nova municipalidade no Recife, na qual os comerciantes pudessem também exercer o poder político, obtendo assim um importante signo de distinção social (para além de algumas vantagens de ordem prática). No caso do Recife, a entrada de elementos ligados ao comércio é bastante precoce quando confrontada com o que ocorre no Rio de Janeiro, na Bahia ou nas praças do Reino. Ao longo de todo o período colonial, predomina a presença de comerciantes entre os principais cargos da Câmara do Recife e, entre eles, os nascidos em Pernambuco acumulam mais nomeações, o que faz com que, no cômputo geral, prevaleçam comerciantes nativos (da segunda e terceira gerações de linhagens iniciadas por um imigrado reinol). Ocorrem também casos de linhagens iniciadas por um comerciante português que acabam se ruralizando. Podemos apontar o caso de Manuel Correia de Araújo, membro do governo provisório de 1817 como representante da agricultura, e que era neto de um homônimo que foi um dos maiores comerciantes do Recife no terceiro quartel do século 18. Vários dos participantes de 1817 passaram pela câmara ou eram descendentes de edis do Recife, o que caracteriza a formação de um conjunto de homens afeitos aos negócios da governança local no período colonial e que continuaram na cena política durante os conflitos pré e pós-Independência.

IHU On-Line – De que forma reflexões acerca da elite colonial podem contribuir para se pensar o Brasil de hoje?
George Felix Cabral de Souza – Concordando com [João] Fragoso e [Manolo] Florentino , penso que a permanência mais facilmente perceptível entre as elites coloniais e as dos nossos dias é o permanente esforço para garantir e ampliar as desigualdades, fortalecendo as hierarquias sociais excludentes. É o que os autores denominam como “o arcaísmo como projeto”. Essa busca permanente pelo alargamento do abismo social se viabiliza, entre outras práticas, na apropriação do público pelo privado, na formação de clientelas, no controle dos mecanismos de aplicação da justiça e na imposição de obstáculos para os não privilegiados fazerem valer os seus direitos. O fato de termos sido uma colônia não é a explicação total para todos os nossos males. A raiz deles está no fato de nossas elites nunca terem se apartado totalmente de práticas que remetem ao período colonial e que nunca foram superadas, nem mesmo com a chegada da República, tão eivada de vícios e ainda incompleta. Nesse contexto, a “obra da escravidão” – como já afirmava Joaquim Nabuco – tem um peso considerável e ainda não foi de todo desfeita.

IHU On-Line – No que consistiam os modos da governança da Câmara Municipal do Recife no século 18? Quais eram e como atuavam os principais agentes da Câmara?
George Felix Cabral de Souza – As câmaras coloniais eram órgãos de poder com atribuições bastante distintas daquelas que possuem hoje. Elas legislavam, executavam e eram a primeira instância de Justiça. Tratavam ainda da organização das tropas auxiliares e muitas vezes da parte financeira das tropas regulares. Possuíam também atribuições fiscais. Tudo isso era conduzido por elementos das elites locais, eleitos em reuniões realizadas a cada três anos, nas quais se definiam os quadros para cada um dos três anos seguintes (os mandatos eram anuais e não remunerados). O controle da Coroa e de suas autoridades delegadas frequentemente era bastante minimizado seja pelo acúmulo de atividades que elas tinham, seja por sua absorção nas redes de interesse locais. Os principais cargos eram os de juiz ordinário (vereador mais velho ou primeiro vereador), vereadores (segundo e terceiro) e procurador. O primeiro tinha a função de dirimir as causas judiciais até um certo limite de valor. Aos vereadores competia a gestão dos negócios municipais de interesse geral e os atos legislativos. O procurador era uma espécie de defensor do patrimônio da municipalidade. Todos tinham voto na escolha dos almotacés, oficiais das tropas auxiliares, oficiais e escrivães dos artesãos (oficiais mecânicos), entre outras funções secundárias. Os almotacés desempenhavam algumas das tarefas mais trabalhosas e constantes, tais como a vigilância sobre pesos e medidas, o abastecimento de alimentos, o ordenamento e a limpeza urbanos e as condições de higiene dos mercados, tavernas e feiras. Seus mandatos no Recife eram de três meses e eram exercidos sempre em duplas (um na parte urbana da vila e outro na parte rural). Como se nota, a municipalidade interferia diretamente no cotidiano da vida dos habitantes da vila. Como o Recife era o principal centro urbano e portuário de uma imensa região, as decisões de sua câmara podiam ter reflexos em áreas muitos distantes, inclusive fora de sua jurisdição.

IHU On-Line – De que forma a governança da Câmara do Recife é encarada no Brasil colonial? Em que medida vai influenciar outras formas de governança no período?
George Felix Cabral de Souza – A atuação da câmara municipal do Recife, dada a importância do centro urbano que ela administra, forçou muitas vezes a negociação com os poderes centrais ou com seus representantes na capitania. A municipalidade foi a tribuna principal para as reivindicações das elites locais, sendo usada inclusive para fazer oposição às medidas emanadas de Lisboa, tal como acontece durante o período das reformas pombalinas. Entre 1750 e 1779, encontraremos em várias ocasiões a municipalidade recifense utilizando os mecanismos previstos na própria legislação do reino para confrontar, diretamente ou indiretamente, o estabelecimento da Mesa de Inspeção do Açúcar e do Tabaco e a todo-poderosa Companhia Geral do Comércio de Pernambuco e Paraíba. Podemos encontrar ainda em ocasiões pontuais a ação concertada de várias câmaras para fazer demandas ou protestar contra atos da administração central. A imposição de novos tributos é uma dessas ocasiões. A compreensão mais aprofundada das formas de atuação das municipalidades coloniais brasileiras tem permitido desvelar a ação de grupos e redes nas diversas praças da América portuguesa e nos tem demonstrado que as câmaras foram muito mais que meros órgãos administrativos que serviam com tentáculos do poder real ou correias de transmissão das determinações tomadas em Lisboa. Elas têm, como alertou Fernanda Bicalho em artigo pioneiro um importante papel na negociação entre poderes, e conseguiam interferir inclusive em assuntos considerados basilares para a antiga concepção de “Pacto Colonial”, quais sejam, o comércio e a tributação, por exemplo.

IHU On-Line – Qual o legado da Revolução Pernambucana? E como ela vai influenciar outras revoltas no Brasil?
George Felix Cabral de Souza – Por seu caráter republicano e radical, a Revolução Pernambucana acabou sendo apartada da memória e da história da nação brasileira, mormente durante o período imperial. 1817 influenciou diretamente mais dois outros movimentos ocorridos em Pernambuco. O primeiro ocorre no contexto pós-Revolução do Porto e pós-formação das Cortes Constitucionais de Lisboa. Trata-se da formação da Junta de Governo de Goiana (1821) , que acabou forçando a retirada do último governador português (o general Luiz do Rego, que havia concluído o processo de repressão da revolução) e a instalação da Junta de Gervásio, que manteve Pernambuco independente do Rio de Janeiro e de Lisboa entre outubro de 1821 e setembro de 1822. O segundo é a Confederação do Equador , rebrote do republicanismo surgido como reação ao golpe de força impingido por Dom Pedro I à Assembleia Constituinte, fechando-a em 1823 e outorgando uma Constituição que lhe dava poderes centralizantes e autocráticos.

Vários sujeitos participaram dos três momentos, 1817, 1821 e 1824. Chegada a pax bragantina do segundo reinado, a Revolução de 1817 passou a ser acidamente criticada e por pouco não foi banida da narrativa histórica da nação. Com o advento da República em 1889, foi relegada a segundo plano, uma vez que o herói então adotado foi o mineiro Tiradentes , mártir anódino de um movimento que nunca eclodiu, e que por isso mesmo não estimulava a contestação às mazelas do regime.

IHU On-Line – Os ideais pernambucanos de constituição de uma nação, um projeto de país e institucionalização de aparato legal ainda podem inspirar no Brasil de hoje? De que forma?
George Felix Cabral de Souza – Não obstante as injustiças históricas, 1817 nos deixa um legado de extrema preocupação com a transparência da gestão e com os direitos individuais. As medidas do governo provisório eram sistematicamente divulgadas, e todas as requisições de propriedade privada foram feitas mediante indenizações. A Lei Orgânica – sem dúvida uma Constituição provisória para a nova república – garantia, por exemplo, a tolerância de culto, a liberdade de consciência e de imprensa e impunha regras para evitar a interferência de interesses privados nos assuntos referentes ao bem público. A revolução não aboliu de imediato a escravidão, mas tinha o propósito de fazê-lo tão logo a república se consolidasse. De fato, o risco de quebra das hierarquias que isso representava, para além de outros atos do governo que atacaram as diferenças sociais e raciais tão características da sociedade colonial, podem ser vistos como elementos que corroeram o apoio das elites locais ao movimento. A república podia ser uma ideia sedutora, mas era a velha monarquia que garantia aos senhores de escravos sua multissecular preeminência social. A permanência da escravidão até 1888 e a rápida queda da monarquia após sua abolição parecem confirmar essa percepção. Concluindo, acredito que é fundamental que o bicentenário da revolução sirva para estimular uma reflexão sobre a incompletude de nossa republicanização. Talvez daí venha o maior legado de 1817, a capacidade de nos levar a buscar ser, finalmente, uma república de fato. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição