Edição 510 | 04 Setembro 2017

Mulheres na ciência: há equidade de sexo?

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Maria Augusta Maturana

“Apesar de alguns progressos alcançados, em pleno século XXI eloquentes indicadores demonstram que a ciência permanece institucionalmente sexista”, escreve Maria Augusta Maturana. A médica e pesquisadora ainda destaca que “embora um número crescente de mulheres estejam se matriculando nas universidades e em cursos de pós-graduação, poucas permanecem nas carreiras científicas”. E conclui: “O acesso à educação não é em si a resolução das inequidades de sexo na ciência. São necessárias políticas que entendam e trabalhem este fenômeno e mecanismos propulsores de equidade de sexo em todas as instâncias da esfera acadêmica e científica”.

Maria Augusta Maturana é médica, professora da Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, pesquisadora e docente no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde: Cardiologia, Fundação Universitária de Cardiologia, Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul.

Eis o artigo.

Historicamente a ciência tem sido vista como uma atividade realizada por homens e, durante séculos, poucas mulheres tiveram papéis descritos na atividade científica. A mudança nesse quadro iniciou-se somente após a segunda metade do século XX, quando necessidades estratégicas e movimentos feministas de luta por igualdade de direitos permitiram às mulheres um aumento na escolaridade e o acesso à carreira científica, considerada até então como exclusivamente masculina. Entretanto, apesar de alguns progressos alcançados, em pleno século XXI – o vigésimo primeiro século da Era Cristã – eloquentes indicadores demonstram que a ciência permanece institucionalmente sexista.

A tendência mais marcante da educação nas últimas duas ou três décadas tem sido o rápido aumento do nível de escolaridade do sexo feminino. Atualmente, na maioria dos países de renda alta e em muitos países de baixa renda, mais mulheres do que homens concluem a educação terciária. De forma semelhante acontece no Brasil, onde dados demonstram ascendentes proporções na escolarização entre as mulheres, com superioridade na proporção feminina no ensino superior, e também nos cursos de pós-graduação.

Da mesma forma, a proporção de mulheres que publicam artigos científicos – a principal métrica de avaliação na carreira acadêmica – cresceu 11% no Brasil nos últimos 20 anos. Atualmente, as mulheres são responsáveis por quase a metade das publicações brasileiras – 49%, demonstram os resultados do relatório Gender in Global Research Landscape publicado pela Fundação Elsevier. Este estudo fez um levantamento da publicação acadêmica realizada em 11 países e na União Europeia em dois períodos: de 1996 a 2000 e de 2011 a 2015. Dados deste estudo demonstraram, ainda, uma substancial variabilidade na proporção de mulheres cientistas, por países e especialmente por áreas, onde a proporção de sexo feminino foi melhor representada nas Ciências da Vida e da Saúde. Nas áreas conhecidas pela sigla em inglês STEM (Science, Technology, Engineering, Mathematicas and Computer Science), a maior desigualdade de sexo em relação às carreiras e produção científica foi observada. De acordo com este estudo, publicações de áreas como ciências de computação e matemática têm mais do que 75% de homens na autoria dos trabalhos na maior parte dos países pesquisados.

Tomados juntos, os dados demonstram o importante aumento na escolarização entre o sexo feminino e a crescente proporção de produção científica realizada por pesquisadoras. O fato intrigante, no entanto, é o de que embora um número crescente de mulheres estejam se matriculando nas universidades e em cursos de pós-graduação, poucas permanecem nas carreiras científicas. Dados do relatório do Instituto de Estatística da Unesco, “Statistics on Women in Science”, demonstram que ainda hoje não mais que uma parcela de 30% dos pesquisadores do mundo são mulheres.

Mulheres demonstram maior propensão a abandonar a carreira científica do que homens com qualificações semelhantes. Como que por “passe de mágica”, as pesquisadoras vão sumindo ao longo da carreira científica. A esse fenômeno de evasão, estudiosos de gênero têm denominado “teto de vidro”, ou seja, um bloqueio invisível o qual as mulheres não conseguem quebrar para alcançar o topo. No Brasil, ao considerarmos os dados referentes às bolsas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, destinadas aos pesquisadores que possuem doutorado, uma minoria de mulheres conquistam bolsa de produtividade 1A, a de maior prestígio científico no Brasil e considerada um marcador de excelência científica.

Neste contexto, chamam ainda a atenção os dados do artigo publicado por Guedes e colaboradores em 2015, que endossam a maior proporção de bolsistas de produtividade científica do sexo masculino em muitas áreas de conhecimento científico. Na publicação, os autores enfatizam, ainda, o conhecido como “fenômeno de jovialização da ciência”, onde cientistas alcançam a excelência científica cada vez mais jovens, mas que favorece especialmente o sexo masculino. Ou seja, uma minoria feminina alcança a excelência acadêmica, e as que alcançam necessitam de um espaço de tempo maior para fazê-lo.

Processos de socialização que atribuem papéis distintos de acordo com o sexo, e resultam em uma maior responsabilização doméstica às mulheres, podem explicar em parte as desigualdades de sexo observadas na ciência. Também o papel familiar, onde cumprir o exigente cronograma da pesquisa acadêmica pode parecer assustador tanto para as mães como para os pais. Mas escolhas familiares parecem pesar mais fortemente sobre os objetivos de carreira das mulheres.

No entanto, outros fatores parecem de peso. Muitos especialistas dizem que um grande fator a produzir esta tendência para o abandono feminino da carreira científica seja a falta de modelos do sexo feminino em divisões superiores da academia para que pesquisadoras mais jovens possam se espelhar e se sentir como “parte do sistema”. Da mesma forma, as posições desiguais de poder e mando onde cargos científicos e de liderança, como reitores, chefes de departamento e coordenadores de linhas de pesquisa, são ainda, em sua maioria, exercidos por homens podem também ser impulsores desta desigualdade. Ainda, não podemos deixar de considerar que a discriminação de gênero possa ser, sim, uma significante parte do problema.

O acesso à educação não é em si a resolução das inequidades de sexo na ciência. A escolarização é apenas uma parte do que deveria ser uma abordagem de formulação de políticas multidimensionais. Não existe uma solução simples. São necessárias políticas que entendam e trabalhem este fenômeno e mecanismos propulsores de equidade de sexo em todas as instâncias da esfera acadêmica e científica. Não podemos ver isso como algo dado e natural.

Referências:
Elsevier Foundation. Gender in Global Research Landscape.
• Gary S. Becker, William H. J. Hubbard, and Kevin M. Murphy. Journal of Human Capital 2010 4:3, 203-241.
Grossi MGR, Borja SDBB, Lopes AM, Andalécio AML. As mulheres praticando ciência no Brasil. Rev Estud Fem 2016. Avaliable.
Guarino CM & Borden V MH. Faculty Service Loads and Gender: Are Women Taking Care of the Academic Family? High Educ 2017.
Guedes MCG, Azevedo N, Ferreira LO. A. A produtividade científica tem sexo? Cad Pagu 2015. Avaliable.
• Hango DW. Gender differences in science, technology, engineering, mathematics and computer science (STEM) programs at university. Ottawa: Statistics Canada, 2013.
Instituto Nacional De Estudos E Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, 2011. Censo da Educação Superior 2010. 2011.
• Lerbacl J & Hanson B. Journals invite too few women to referee. Nature. Avaliable. Disponível em http://go.nature.com/2xMxQxS
Leta J. As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso. Estudos Avançados 2003.
Just 30% of the world’s researchers are women. What's the situation in your country? Unesco.

Leia mais

- Hannah Arendt e Simone Weil - Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX. Cadernos IHU em Formação, número 17.

- Mulheres em movimento na contemporaneidade. Cadernos IHU em Formação, número 37, disponível em http://bit.ly/2sjfS4u.

- Políticas públicas para as mulheres: uma conquista brasileira em debate. Revista IHU On-Line número 387, de 26-3-2012.

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