Edição 509 | 21 Agosto 2017

Thoreau para além de seu próprio tempo

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Eduardo Vicentini de Medeiros | Edição: Ricardo Machado

Denise Bottmann chama atenção para a fecundidade e atualidade do pensamento do escritor da desobediência civil

Há muitos estudos acadêmicos em torno da influência do pensamento e da amizade de Ralph Waldo Emerson sobre a obra de Thoreau. Entretanto, alerta Denise Bottmann, tradutora de Walden no Brasil, nem tudo eram flores. “Emerson é um bobo; não gosto dele e foi muito mal-educado e prepotente com Thoreau, mesmo em vida. E é uma bobagem isso, ‘a fonte da poesia, em sua percepção espiritual’. Um conceito do romantismo inglês meio mal digerido, a meu ver. E convenhamos: Emerson, embora considerasse seus próprios poemas como o suprassumo, era bem medíocre como poeta, esse ser sublime, segundo ele. Emerson jamais chegou e jamais chegaria aos pés de Thoreau”, considera Denise em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Perspicaz, a entrevistada chama atenção, ao lembrar do episódio que inspirou Desobediência Civil, para a habilidade de Thoreau em “converter uma miudeza idiossincrática num grande bafafá e, depois, numa imponente reflexão política”. “A cena da tia – supõe-se que foi ela –, morrendo de medo da vergonha que a família passaria, indo à noite à delegacia quitar o débito e pedir que o soltassem, é cômica: ‘Não, já tirei as botas para ir deitar; solto amanhã’. E para convencer Thoreau a sair da cadeia na manhã seguinte? Só saiu dali arrastado: ‘Não fui eu que paguei; tenho o direito de continuar preso!’ – e furioso com a tia por ter saldado a dívida”, descreve Denise Bottmann. Além disso, para a tradutora, a força da literatura e do pensamento de Thoreau reside em sua dimensão transtemporal. “Sua contemporaneidade ou, melhor dizendo, sua fecundidade pôde ser resgatada, por exemplo, por um Cage. Algum dia lhe farão justiça, removendo o coscorão emersoniano que ainda adere a ele”, complementa.

Denise Guimarães Bottmann é graduada em História pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, mestra em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde também iniciou o doutorado sem concluí-lo. Atua na área de tradução de obras de literatura e humanidades desde 1984 e dedica-se a pesquisas sobre a história da tradução no Brasil.

Denise apresenta o painel "O apelo da Natureza", juntamente com o prof. Dr. Flávio Williges – UFSM, no dia 29-8-2017, na Unisinos Campus Porto Alegre, às 19h30. O evento integra a programação do VII Colóquio Internacional IHU – Caminhando e desobedecendo. Thoreau 200 anos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Muitos leitores abandonam Walden no primeiro capítulo, Economia. Em uma obra que foi tão meticulosamente pensada, você conseguiria imaginar alguma razão literária para apresentar metodicamente, no capítulo inicial, tabelas detalhadas sobre os gastos para construir uma cabana, alimentação ou lavar a roupa?
Denise Bottmann – “Economy”, como tantos ensaios de Thoreau, foi apresentada como palestra, nota-se o formato de palestra (como, aliás, constava na versão inicial do texto: lecture, em vez de book), e foi proferida algumas vezes em Concord antes da publicação. Agora, por que deixou de ser introdução e se tornou o primeiro capítulo, é uma boa questão. A meu ver, é porque Thoreau a considerava parte integrante, não um prefácio, não algo relativamente independente do corpo da obra. O detalhamento das despesas – e que, ao todo, não passam de quatro ou cinco, e não ocupam mais de três páginas em trechos salteados, num total de setenta – chego a considerar cômico, aquela mania detalhista de Thoreau de martelar seu ponto, de insistir em seus argumentos até a exaustão, e sempre num tom muito divertido, dando um certo colorido meio inesperado.

É complexa a questão; entrelaçam-se muitos elementos, declarações de princípio, dados de fato etc., mas eu não descartaria alguma razão não digo “literária”, mas retórica, sim, certamente. Além disso, uma das razões “internas”, além do esforço retórico de persuasão dos ouvintes/leitores, talvez seja também de ordem, digamos, expositivo-moral: por exemplo, a prestação de contas, coisa que Thoreau julga fundamental como atitude na vida. Se partirmos do princípio – que me parece desejável – de respeitar a formulação do autor e tentar entendê-la tal como se apresenta, creio que uma “leitura cerrada”, um close reading, como dizem, poderia revelar inúmeras surpresas muito gratificantes. Creio que um curso maravilhoso poderia ser a leitura conjunta, em sala de aula, desse capítulo inicial. Às vezes, mesmo inconscientemente, as pessoas buscam um determinado andamento, esperam uma sequência de raciocínios e se desapontam ou se enfaram quando não encontram um tipo de estruturação que lhes seja mais familiar. A questão é ler. Ter paciência, ler e tentar entender o que e como o autor formulou. Uma pena que, como você diz, muitos leitores abandonem o livro no primeiro capítulo. Lamento por eles.

IHU On-Line – Lendo Walden é um precioso repositório de informações sobre Thoreau em língua portuguesa e já conta com mais de 115 mil visitas. Quais foram suas maiores surpresas na pesquisa da tradução? Alguma que você não tenha ainda compartilhado com seus leitores?
Denise Bottmann – São tantas, e pequeninas, mas também grandes, sob a lupa com que sempre trabalha um tradutor. Agora, quanto ao indivíduo Thoreau, minha admiração (e perplexidade também) só faz crescer. Figura admirável. Admirável mesmo. Gostaria de tê-lo conhecido. No fundo, acho que foi uma pessoa talvez um pouco solitária, e não porque quisesse.

IHU On-Line – Quais foram as maiores dificuldades que sua tradução de Walden enfrentou?
Denise Bottmann – Uma estupidez de minha parte, da qual só me dei conta depois do livro impresso (pedi à editora que corrigisse nas edições seguintes – não sei se corrigiram). De resto, havia os usuais trocadilhos e jogos de palavras, que é a figura de linguagem mais frequente em Walden, que deram um razoável trabalhinho. O mais difícil mesmo foi ter a visão da obra como unidade. Quando você se dá conta, é um deslumbre.

IHU On-Line – Como você avalia o texto de A Week on the Concord and Merrimack Rivers em comparação com Walden? Podemos esperar por uma tradução sua dessa obra?
Denise Bottmann – O que acho interessante é o recurso ao mesmo princípio compositivo de condensar um determinado intervalo de tempo dentro de uma unidade temporal: em A Week, a quinzena que se converte em uma semana; em Walden, os 26 meses que se convertem em um ano com suas quatro estações. Muito bonito, isso. Por outro lado, o grau de maturidade de Walden é outro, incomparável. Quem sabe alguma editora se interesse por A Week – adoraria traduzi-lo.

IHU On-Line – O que se pode dizer sobre o trecho do discurso de Emerson por ocasião do funeral de Thoreau: “Suas poesias podiam ser boas ou medíocres; sem dúvida faltavam-lhe a facilidade lírica e a habilidade técnica, mas tinha em si a fonte da poesia, em sua percepção espiritual”?
Denise Bottmann – Emerson é um bobo; não gosto dele e foi muito mal-educado e prepotente com Thoreau, mesmo em vida. E é uma bobagem isso, “a fonte da poesia, em sua percepção espiritual”. Um conceito do romantismo inglês meio mal digerido, a meu ver. E convenhamos: Emerson, embora considerasse seus próprios poemas como o suprassumo, era bem medíocre como poeta, esse ser sublime, segundo ele. Emerson jamais chegou e jamais chegaria aos pés de Thoreau. Era um falastrão que, no fundo, nunca abandonou o púlpito de pastor, nunca renunciou ao gosto pelo exercício da autoridade. Não à toa seu filho torto Nietzsche veio a desenvolver seus conceitos de “super-homem” e de “vontade de poder” – ou de potência, como preferem alguns – a partir das ideias emersonianas de over-soul e power. Mas essa é outra história (porém, só acrescentando uma ressalva: o super-homem de Nietzsche, aliás, tem os pés na terra, como queria seu meio-irmão Thoreau).

IHU On-Line – A falsa imagem de Thoreau como um eremita, vivendo dois anos no Lago Walden sem nenhum tipo de contato social, acaba sendo um obstáculo à interpretação das implicações morais do seu texto. Alguma pista para o surgimento desta imagem na mídia americana e também no imaginário de seus leitores desavisados?
Denise Bottmann – Creio que ele mesmo, não? Multiplicam-se as passagens em Walden frisando e enaltecendo seu suposto isolamento, desde o começo, já na segunda linha: “eu vivia sozinho na mata”. Em “a um quilômetro e meio de qualquer vizinho”, tem-se a impressão de que ele estaria do outro lado do mundo – mas, se pensarmos em sua pequenina Concord, todos conhecendo a todos, todo mundo meio vizinho, até daria para alardear o raio de uma milha como uma enormidade. Mas, por mais que ele apregoasse seu isolamento, sua solidão e coisa e tal, sabemos que isso está longe da verdade. (Creio que ele nunca recebeu tantas visitas e nunca visitou tanto a família e os amigos em Concord como quando estava em Walden. Quase morreu de tédio quando o período mais intenso de nevascas num inverno o deixou meio sozinho durante uma semana ou dez dias.) E depois ele próprio teve certa dificuldade em se desvencilhar da imagem que tentara passar. Se a insistência em “viver sozinho” tinha como foco a ideia de autonomia, de self-reliance, de contar apenas com seus próprios recursos, acabou por se associar – com a vigorosa colaboração verbal do próprio Thoreau – à ideia de solidão e isolamento voluntário – ideia esta que, mais tarde, ele procurará desfazer. Aliás, Thoreau me parece um dos seres mais sociáveis ou com mais ânsia de socialidade que eu conheço. Por outro lado, esse seu discurso – e aqui sou obrigada a usar o termo “discurso” e não tanto “prática”, “vivência” etc. – em defesa da autonomia e da independência, brotando de uma mentalidade tão específica da Nova Inglaterra daquela época, parece encontrar solo fértil no ideário americano geral. Talvez ainda mais fértil no século XX, com o surgimento das grandes metrópoles, o desenvolvimento de uma vida urbana sempre mais complexa e de interdependência de todos os seus setores, a espetacularização e a neurotização crescentes da sociedade moderna etc. Fica bonito, atraente, tipo “alternativo”, “contra o sistema”, base de uma “contracultura” – um forte ímã ideológico a partir dos anos 1950. Um mito, quase. Mas que é uma apropriação um tanto bizarra, isso lá é. Deu certo, criou raízes, porém creio que Thoreau estranharia um pouco.

IHU On-Line – A América de Trump definitivamente deu as costas para o conselho de Thoreau: “Simplifiquem, simplifiquem”?
Denise Bottmann – Não sei dizer. Alguém, não lembro quem – e sempre tem um espírito de porco nessas horas –, dizia que essa frase era só retórica e exibicionismo, pois, se ele quisesse mesmo simplificar, deveria dizer apenas “Simplifiquem”, uma vez só. Até faz sentido, mas passa longe do ponto. De todo modo, os EUA são, sempre foram, um país muito complicado.

IHU On-Line – Um aspecto pouco tratado da personalidade de Thoreau é seu fino senso de humor. Qual passagem de sua obra poderia bem exemplificar essa faceta?
Denise Bottmann – Ah, praticamente toda ela, não? Digo, Walden. Em A Week ele não tinha desenvolvido tanto – e talvez nem fosse o caso; é uma obra mais elegíaca, digamos assim – esse veio, essa retórica do humor. Creio que não se passa uma página sem que haja um trocadilho, uma ironia, uma piscadela ao leitor e um visível prazer nisso. Aliás, a forma de humor mais recorrente, quase que uma membrana envolvendo tudo, é a ironia. Os trocadilhos, tomados individualmente, são mais numerosos, claro. Mas o tom é basicamente irônico, sem dúvida nenhuma. E é extremamente divertido! Eu ria e ainda rio muito em inúmeras passagens.

IHU On-Line – O episódio da prisão de Thoreau, que redundou em seu celebrado ensaio ‘Resistance to Civil Government’, é cercado de curiosidades. Você poderia apresentar para nossos leitores algumas das peculiaridades desse marcante evento?
Denise Bottmann – É todo engraçado, não? Da arte de converter uma miudeza idiossincrática num grande bafafá e, depois, numa imponente reflexão política. Na verdade, o inspirador da ideia (e da prática) tinha sido Amos Bronson , ele sim um sonegador sonoramente militante – mas também não sei até que ponto por princípio ou por ocasião. Quantas vezes não se faz da necessidade virtude, não? Mas, de todo modo, Bronson marcou seu ponto e passou algumas horas na prisão; o jovem Thoreau achou aquilo lindo e resolveu seguir o exemplo. Passou anos sem pagar o bendito imposto. Só foi posto contra a parede porque o coletor de impostos, Sam Staples, ia se afastar do cargo e teria de prestar contas do exercício fiscal. Se não fosse isso, tenho a impressão de que não aconteceria nada e não teríamos a Desobediência civil. E Staples foi bonzinho, pediu por favor, deu prazo, se prontificou a pagar por ele etc. Turrão e encrenqueiro como Thoreau era, imagine se ele ia deixar passar a oportunidade. E deu no que deu. A cena da tia – supõe-se que foi ela –, morrendo de medo da vergonha que a família passaria, indo à noite à delegacia quitar o débito e pedir que o soltassem, é cômica: “Não, já tirei as botas para ir deitar; solto amanhã”. E para convencer Thoreau a sair da cadeia na manhã seguinte? Só saiu dali arrastado: “Não fui eu que paguei; tenho o direito de continuar preso!” – e furioso com a tia por ter saldado a dívida: “Não podia ter feito isso!”. Era uma família meio sufocante, imagino.

Agora, um ponto, sim, que mereceria ser definitivamente esclarecido é que Emerson não foi visitá-lo na cadeia. Essa mistificação me incomoda bastante: a pretensa solidariedade, a presença do “mentor” etc. Só dias depois, quando os dois se cruzaram na rua, é que Emerson resolveu tirar satisfação – e tirar satisfação, não louvar ou elogiar ou sequer conversar, nada disso – sobre o episódio.

IHU On-Line – Walden foi um texto longamente construído a partir de recortes do volume imenso dos seus Diários. Algum capítulo do livro lhe parece mais bem-acabado esteticamente?
Denise Bottmann – É uma questão complicada. Essa prática de ter uma “caixa econômica”, um Savings Bank, como dizia Emerson, à qual depois recorria para montar seus textos, embora também adotada por Thoreau, encontrava uma certa resistência de sua parte. Bom, primeiro porque ele nunca seria tão vulgar a ponto de tratar seus caudalosíssimos registros como uma poupança a ser utilizada quando lhe fosse conveniente. Para Thoreau, havia também a questão da “autenticidade”, do “frescor”. E sentimos que Walden – e esta é mais uma diferença sensível em relação a Week, este sim basicamente uma costura de suas respigas (seus gleanings – que outra concepção! Tão mais bonita e mais entranhada na própria carne da vida do que um “cofrinho das economias”!) – tem passagens de franca desenvoltura, de espontaneidade, como ele queria: claro que sempre muito trabalhadas, muito elaboradas e reelaboradas, mas frescas e viçosas. Em Walden, além das “respigas”, as passagens em tom de pregação se diferenciam claramente das passagens em que deixa de pontificar e parece realmente expressar sua concepção das coisas, sem aquela pátina pastoral horrorosa. Mas Thoreau é um mestre, mesmo que irregular, da escrita – ainda hoje tenho bastante dificuldade em captar a enorme quantidade de elementos, recursos, imagens e conteúdo existencial efetivo de Walden. É uma obra-prima. Um cesto de tessitura delicada, dizia ele. Muito, muito delicada.

Então vejo o conjunto inteiro como “bem-acabado esteticamente”, em que pesem as fastidiosas pregações de Thoreau. Agora, o capítulo que realmente me comove, me espanta, está mais para o final, “A primavera”. Ali ele realmente dá vazão a suas mais profundas convicções, formulando – com base em Goethe e com o uso da ideia de “protótipo” ou “estereótipo” – os contornos daquilo que considero como uma pioneira teoria da morfogênese e um esboço precursor de nossos atuais fractais. Ali, a meu ver, Thoreau atinge os píncaros do sublime. Mas tudo é muito bonito, muito, muito elegante e vital.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Denise Bottmann – Quero ressaltar a genialidade transtemporal de Thoreau. Sua contemporaneidade ou, melhor dizendo, sua fecundidade pôde ser resgatada, por exemplo, por um Cage . Algum dia lhe farão justiça, removendo o coscorão emersoniano que ainda adere a ele.■

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