Edição 509 | 21 Agosto 2017

O minimalismo existencial como forma de vida

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Entrevista e tradução: Eduardo Vicentini de Medeiros | Edição: Ricardo Machado

Kelly Dean Jolley analisa a obra de Thoreau a partir da percepção de que a existência não deveria ser reduzida à satisfação de nossos desejos

O pensamento de Thoreau é um convite à simplicidade. Ser simples, ao contrário de ser pobre, é um exercício de perspectiva diante da vida, uma forma de vida. “Para mim Thoreau acredita que vivemos em um esquecimento propositado de nossa natureza, e que nossas tendências para focar naquilo que é desnecessário são tanto resultado como causa desse esquecimento. Ao ir para a mata, Thoreau se transforma em um lembrete vivo daquilo que esquecemos”, pontua o professor e pesquisador Kelly Dean Jolley, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

O desafio de pensar o mundo a partir daquilo que lhe é próprio é o de percebê-lo para além dos dogmatismos. “O que ambos desejavam era que as pessoas desconsiderassem as formas da religião, do Ocidente ou do Oriente, e vissem a abundante vida do Novo Mundo que aquelas formas seguidamente não os deixavam ver – vissem o Novo Mundo como Novo, ponto final (e não como Nova Iorque ou Nova Inglaterra), vissem uns aos outros como novos homens e mulheres, vissem as novas árvores e flores”, propõe Jolley. “Relembrar ou reconhecer nossa ignorância marca nossos limites, nos abre para nossa finitude”, complementa.

Para o professor, um dos paradoxos de nosso tempo é condenarmos o regime de controle que vivemos e ao mesmo tempo viver a vida do “panopticismo”, cujo antídoto seria a retomada de uma forma de vida baseada naquilo que é essencialmente vital. “Adoramos ídolos que nos petrificam. Queremos nossos vícios de graça. Viveremos vidas daquilo que Aleksandr Solzhenitsyn chamou de ‘liberdade amordaçada’ apenas para que possamos ter as coisas que desejamos”, frisa.

Kelly Dean Jolley é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Auburn, nos Estados Unidos. Centra seus estudos em questões relacionadas à psicologia filosófica, metafilosofia, filosofia do século 20 e filosofia antiga. Além disso, fora da academia, escreve poesias e é ávido leitor de literatura. Suas produções podem ser acessadas em kellydeanjolley.com.

O entrevistado apresenta a conferência "Aqui estou": Experiência, Deliberação e Economia em Thoreau, no dia 29-8-2017, na Unisinos Porto Alegre, a partir das 18 horas. A palestra integra o evento VII Colóquio Internacional IHU – Caminhando e desobedecendo. Thoreau 200 anos.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se dá sua estratégia de aproximação entre Thoreau e Wittgenstein ? Qual seria o exemplo mais acabado em Walden de uma descrição das necessidades da vida humana?
Kelly Dean Jolley – Não é de hoje que tenho, por um lado, me fascinado e, por outro, sido desafiado e modificado, por filósofos que aliam rigor analítico e pathos existencial. Minha estratégia de aproximar Wittgenstein e Thoreau deixa mais visível o pathos existencial de um, Wittgenstein, e o rigor analítico do outro, Thoreau. Assim, você poderia dizer que minha estratégia é usar cada um deles para insistir na completude do outro, e assim afastar a tendência de encontrar apenas rigor analítico (se é que é isso mesmo) em Wittgenstein ou pathos existencial (se é que é isso mesmo) em Thoreau.

Cada um deles escreve de modo a criar um desejo para não aceitá-los: Wittgenstein constantemente tem como alvo o que Dewey chamou de ‘psicoses ocupacionais’ dos filósofos (querendo dizer por ‘psicoses’ não tanto perturbações psicológicas, quanto pronunciadas características da mente). Ao fazê-lo, Wittgenstein corteja a ira do filósofo – o autoconhecimento é quase sempre desagradável, e os filósofos (e aqui me incluo) muito seguidamente pensam placidamente que suas características mentais tão somente promovem a busca da verdade, e não escondem ou não poderiam escondê-la. Os filósofos aceitam esta placidez com relutância. Para ficar ainda pior, Wittgenstein seguidamente visa essas psicoses ocupacionais, satirizando-as, por vezes duramente. E ele problematiza o léxico da filosofia, ele pega palavras favoritas – ‘teoria’, ‘essência’, ‘definição’ – e as coloca em xeque, cria incômodos típicos de uma consciência moral preocupada onde antes havia apenas um entendimento cristalino.

Thoreau constantemente tem como alvo nossas psicoses existenciais, e as denomina como falhas de economia. Ele também corteja a ira – os cidadãos de Concord (e eles, obviamente, representam a todos nós, eu inclusive) não sucumbem à complacência apressadamente. Eles vivem vidas boas, chegando perto da boa vida ela mesma, apenas para que lhes digam que, ao contrário, estão vivendo em desespero – até mesmo em calado desespero – e isso é uma má notícia, um infortúnio. Essas notícias são mal recebidas pelos cidadãos, e eles sucumbem à complacência resmungando e reclamando. Para ficar ainda pior, ele satiriza suas vidas, faz piada de suas roupas, de suas casas, de sua própria civilização, e sua sátira é seguidamente dura. Ele rouba suas palavras favoritas, ‘economia’, ‘lei’, ‘vizinho’, ‘viver’, e as leva mata adentro e as re-naturaliza, de tal modo que se tornam estranhas, desajeitadas, parcialmente selvagens.

Dado tudo isso, aproximar os dois também auxilia a destacar o propósito de cada um, ajuda a mostrar o que está em jogo, que escrevem ‘para glória de Deus e para que seu vizinho possa assim ser beneficiado’. Mas cada um deles reconhece que sua audiência escolhida está iludida, e cada um deles sabe que as ilusões se apresentam como racionais, prudentes, apropriadas. Ao argumentar com as ilusões, ou tão somente por argumentar com as ilusões, elas ancoram ainda mais profundamente, dado que os argumentos parecem sancionar sua alegada condição como racionais, prudentes, apropriadas – pelo menos de forma genérica. Assim cada um desses homens ataca as ilusões por outras vias, com redescrições, piadas, sátiras, rotações no eixo da investigação, mudanças de aspecto, percorrendo muitas variedades do trombeteio vigoroso, na esperança de despertar seus vizinhos e retirá-los da ilusão.

Thoreau enfatiza as necessidades da vida, e as agrupa na rubrica ‘manter o calor vital’. Sempre achei que esta é uma maneira feliz de apresentar aquilo que é requerido para a vida humana, e parece-me encaixar bem em Walden. A pergunta que Thoreau faz a seus leitores é nada mais – e nada menos – que “Como você se mantém aquecido, se mantém vital?”. Esta pergunta tem um jeito de pegar você, dado que não te permite escapar com luxúrias de autojustificação. Por mais atilados que possamos passar nossos dias, ainda estamos tentando fazer aquilo que aqueles menos preocupados e atentos estão fazendo: estamos nos mantendo aquecidos, estamos todos nos mantendo aquecidos.

Thoreau não nos deixará esquecer isso. Estamos sempre respondendo sua pergunta, mesmo se não queremos e mesmo se dizemos para nós mesmos que, de alguma maneira, não o estamos fazendo. Se não a respondemos com palavras, respondemos com atos. Por óbvio, a maioria de nós está fazendo algo mais do que apenas manter-se aquecido, mas isso não significa que tenhamos parado em algum momento de mantermo-nos aquecidos. É fácil pensar que paramos quando não construímos nossas casas, não produzimos nossa comida, não costuramos nossas roupas. Nós perdemos o contato com as necessidades da vida, e perdemos contato com quem e o que realmente somos, acreditamos que podemos substituir a segunda natureza pela primeira, para escolher ou criar nossa posição própria no mundo.

Forçar a reconhecer nossa necessidade de manter-se aquecido, a inevitabilidade da tarefa e o modo como ela iguala a todos, traz nossa contingência e vulnerabilidade à mostra, deixando-a sempre perante nós. Para mim Thoreau acredita que vivemos em um esquecimento propositado de nossa natureza, e que nossas tendências para focar naquilo que é desnecessário são tanto resultado como causa desse esquecimento. Ao ir para a mata, Thoreau se transforma em um lembrete vivo daquilo que esquecemos. Ele se torna uma consciência moral externalizada – para colocar de forma paradoxal – chamando cada um de nós de volta ao que (todos) somos.

Eu leio tanto Wittgenstein quanto Thoreau como os primeiros antropólogos filosóficos, seja lá o que mais possam ser, e considero cada um deles profundamente comprometido com a elucidação do contexto vivo e original da vida humana, e com o trabalho para reconstruir nossa confiança na experiência humana cotidiana, para nos permitir ver que as várias incertezas que cercam a experiência humana cotidiana não são razões para uma total desconfiança para com ela. Ela é o que temos: e devemos nos virar com ela tanto quanto possível. Cada um desses homens escreveu um livro que pretendia trazer independência de pensamento e independência de visão para seus leitores – uma independência assegurada pela confiança na experiência humana cotidiana e por fazer a partir dela tanto quanto fosse possível. Quando propriamente amalgamadas, a poeira e os trapos da experiência cotidiana contêm surpresas, e podem parecer esconder aquilo que, uma vez visto, é o mais poderoso e surpreendente.

IHU On-Line – Thoreau e Emerson foram autores muito atentos à variedade das práticas religiosas orientais. Teríamos como medir quão provocadora foi essa abertura no ambiente intelectual da Nova Inglaterra do século XIX?
Kelly Dean Jolley – Há mais a dizer sobre a reverência de Emerson e Thoreau para com o Oriente do que posso dizê-lo aqui. Mas permita-me ao menos indicar o que penso ser uma consideração que oferece uma moldura de resposta. Como é bem sabido, ambos desejavam que a América se realizasse – e que o fizesse com uma considerável independência da Europa. Ambos temiam que o Velho Mundo fosse a última palavra para o Novo Mundo. Agora, não creio que ambos fossem suficientemente ingênuos para acreditar que o Velho Mundo não daria a primeira palavra no Novo Mundo. Suas preocupações eram sobre a hegemonia da primeira palavra do Velho Mundo. Ambos sabiam que muito do que o Velho Mundo ofereceu havia se desnaturalizado em formas vazias (penso aqui no sermão de Emerson sobre a Eucaristia, por exemplo). Mas também não pensaram que aquilo que o Velho Mundo ofereceu estava fadado a ser meras formas mortas: poderia ser possível reanimá-las. Mas uma tal reanimação não foi um processo simples. E aqui o Oriente ganha importância. Pense em uma famosa passagem de Wittgenstein, aquela sobre a Queda dos filósofos (Investigações Filosóficas, § 131):

“Só podemos evitar a inaptidão ou vazio em nossas asserções se apresentarmos o modelo como aquilo que é, como objeto de comparação – como, por assim dizer, um padrão de medida, e não como um preconceito ao qual a realidade tem que corresponder. (O dogmatismo em que se cai tão facilmente em Filosofia).”.

Para Emerson e Thoreau, o que o Velho Mundo estava oferecendo havia se tornado, a seu modo, inepto, vazio. Foi apresentado, ou apresentou-se, como aquilo ao qual a realidade tem que corresponder. Tornou-se meramente um dogma. Se fosse para promover um segundo nascimento, haveria de reapresentar-se, tornar-se um objeto de comparação, um modelo, para assim aquela vida poder voltar a habitá-lo.

Agora, não quero ser mal compreendido. Não quero dizer com isso que algum desses homens desejou que a primeira palavra do Velho Mundo terminasse, renascesse, como a última palavra do Novo Mundo – que isso foi uma estratégia para revigorar a Cristandade –, mas eu penso que eles desejaram desafiar o dogmatismo das formas mortas, e ver o que poderia ser trazido à vida novamente. De certo modo, seus objetivos foram similares aos de Kierkegaard – não podemos ver a Cristandade como ela é a não ser que vejamos alternativas, outros modelos, outros objetos de comparação. Quando a Cristandade se acultura totalmente, ela não mais conhece a si mesma. (Cristandade – de fato, a religião – é sempre gramaticalmente um modo de ver o mundo. Quando se transforma na maneira de ver o mundo, ela não mais pode ser distinguida do mundo, e assim não é mais Cristandade, não é mais religião.)

Mas diferente de Kierkegaard, nem Emerson nem Thoreau esperavam refazer as pessoas como Cristãos – mas também não esperavam transformar as pessoas em seguidores de alguma religião oriental. Não, o que ambos desejavam era que as pessoas desconsiderassem as formas da religião, do Ocidente ou do Oriente, e vissem a abundante vida do Novo Mundo que aquelas formas seguidamente não os deixavam ver – vissem o Novo Mundo como Novo, ponto final (e não como Nova Iorque ou Nova Inglaterra), vissem uns aos outros como novos homens e mulheres, vissem as novas árvores e flores. Em resumo, permitir ao Novo Mundo alimentar suas imaginações ao invés de permitir ao Velho Mundo imaginar o Novo. (A América não é a nova Israel, uma terra de leite desnatado e mel orgânico, e imaginá-la desse modo é parte do que a torna, do que a mantém, inabordável.) Quando considero o uso que Emerson e Thoreau fazem da religião do Oriente, me recordo de uma passagem de John Wisdom (um parágrafo final de um dos ensaios de Filosofia e Psicanálise):

“Como todos sabemos mas não recordamos, qualquer sistema classificatório é uma rede espalhada sobre a abençoada multiplicidade do que é individual e nos cega não para toda, mas para muito de sua diversidade e continuidade. Um novo sistema fará o mesmo, mas não exatamente do mesmo modo. Assim que ao aceitar todos os sistemas, seu poder de cegueira é quebrado, seu poder revelatório torna-se aceitável, o individual nos é restituído, não isolado como antes de usarmos a linguagem, não em uma caixa como quando a linguagem já nos tenha dominado, mas no ‘coro da criação’.”.

Creio que é difícil pensar em uma passagem mais emersoniana ou thoreauviana do que essa, deixando de lado as diferenças de estilo filosófico. Emerson e Thoreau queriam ouvir o ‘coro da criação’ no Novo Mundo, não apenas o eco de algum coro pobre e arruinado da Europa. O Oriente era uma ajuda para lembrar o que todos sabemos mas não recordamos. O Oriente estava lá para nos recordar que o Ocidente é tão somente o Ocidente.

IHU On-Line – Em vários momentos, Thoreau fez pouco caso de sua formação universitária. É sensato desconsiderar a formação que ele recebeu em Harvard ao avaliarmos sua produção literária?
Kelly Dean Jolley – Um dos temas subestimados de Walden é sua compreensão do poder da ignorância relembrada ou reconhecida. Chame-o de tema socrático de Walden. Logo no começo do livro, Thoreau pergunta (para si mesmo e seus vizinhos): “Como lembrará sua ignorância – o que é indispensável para crescer –, quem precisa usar seu conhecimento com tanta frequência?” É fácil esquecer ou elidir essa pequena expressão parentética – ‘o que é indispensável para crescer’. A ignorância relembrada é o solo fértil do crescimento pessoal.

Sócrates sabia disso, e é uma vergonha, penso eu, que frequentemente esquecemos desse aspecto quando falamos da ignorância de Sócrates. Para Sócrates, a ignorância relembrada ou reconhecida é uma fonte de poder e não uma fraqueza. Do mesmo modo para Thoreau. Relembrar ou reconhecer nossa ignorância marca nossos limites, nos abre para nossa finitude. Perceber que não temos as respostas nos permite experimentar a pergunta, colocar em questão, e a pergunta assim experimentada impulsiona o crescimento. Naturalmente, não podemos superar nossa finitude, mas podemos alargar a nós mesmos, levar em consideração nossa finitude, ser mais o seu mestre e menos seu escravo – há, de qualquer modo, uma diferença de tipo entre submeter-se à nossa finitude e viver subordinado a ela.

Menciono este tema, e a frase acima de Thoreau sobre a ignorância, porque nos falam bastante da relação de Thoreau com sua educação. Não podemos ignorar sua educação nem por um momento; não creio que ele o tenha feito. Mas é verdade que a relação com sua educação foi complicada. Talvez a parte mais importante dessa relação complicada foi a aversão de Thoreau à educação como um ornamento, como algo possuído apenas externamente, tal como um relógio ou um colete.

A única educação que ele considerou valiosa era tão profundamente assimilada que se torna indistinguível da expressão da vida interior da pessoa educada. Por esse parâmetro, muito do que nos é ensinado não é valoroso, não importa ter apreendido. Aqui, o pensamento de Thoreau cruza com Gabriel Marcel , e em particular com a distinção de Marcel entre ser e ter. Muito de Walden está engajado com essa distinção, embora nos termos que são próprios de Thoreau.

Thoreau está sempre perguntando sobre o que podemos perder, deixar de lado, renunciar: as coisas que temos e que poderíamos viver sem elas. A pergunta sobre nossa educação é se ela pode se tornar parte do que somos, digerida em nosso próprio ser, ou se permanece como algo que temos, indigerível. Pode parecer estranho, mas creio que Thoreau valoriza uma educação que é assimilada, digerida, que se torna parte do que somos, que é ela mesma algo que ajuda a manter nosso calor vital – ela é uma necessidade da vida. Se refletirmos cuidadosamente sobre a vida de Thoreau na cabana, veremos que foi uma vida de leitura e escrita e deste modo foi interna à vida deliberada que ele foi lá para viver.

IHU On-Line – Depois dos esforços de Stanley Cavell , Thoreau e Emerson são mais bem recebidos na filosofia acadêmica norte-americana? Ou ainda temos um longo caminho pela frente?
Kelly Dean Jolley – Esta é uma questão difícil de responder. A obra de Cavell certamente levou pessoas até Thoreau, e as levou a considerá-lo seriamente como um filósofo – mas desconheço que a obra de Cavell tenha estabelecido um lugar para Thoreau na filosofia analítica. Penso que a maior parte dos filósofos acadêmicos considera o interesse por Thoreau como, na melhor das hipóteses, um interesse ‘brando’, comparado ao interesse por ética aplicada ou história da filosofia. Talvez eles o pensassem como ‘Continental’, se não fosse por essa coisa embaraçosa do continente errado. De qualquer modo, maravilhosa como é a obra de Cavell – e ela tem sido de primeira importância para mim –, seu próprio papel como filósofo bona fide é seguidamente colocado em dúvida na filosofia acadêmica, quando não descartado. Todo mundo concede seu brilhantismo – mas muitos têm pouca paciência com sua obra. Assim, a própria posição de Cavell na filosofia acadêmica não é tal que garanta a recepção de Thoreau; Cavell, ele mesmo, nunca foi totalmente aceito na filosofia acadêmica. Suspeito que isso significa que há mais trabalho a ser executado no que diz respeito a Thoreau. Mas sou um tanto quanto indiferente em relação às perspectivas deste trabalho. Não sei se importa tanto assim a recepção de Thoreau na filosofia acadêmica. Ele foi claramente bem pouco otimista sobre professores de filosofia: “...é admirável professar, pois um dia foi admirável viver…” – isso não é um elogio, a não ser que você considere elogios desajeitados como elogios de fato. Ao contrário, é uma dura e educada ironia. Não creio que o próprio Thoreau estivesse muito preocupado com a questão de onde habitavam os leitores de Walden, se na academia ou fora dela. Ele teria se preocupado com a questão de como eles habitavam – e de por que habitavam deste modo.

Eu costumava me preocupar com esse tipo de coisa, e costumava me preocupar com o porquê tantos filósofos que me interessavam eram tão deliberada e propositadamente deixados à margem pela filosofia acadêmica. A resposta é complicada – mas parte dela é o que os filósofos acadêmicos sabem sobre como ensinar e o que eles não sabem. Eles não sabem como ensinar Thoreau. Você simplesmente não pode ensinar uma página de Thoreau do mesmo modo que ensina uma página de Frege ou David Lewis . Ensiná-lo requer um conjunto de hábitos que a maioria dos filósofos não cultiva – hábitos particulares de leitura e novos hábitos de rastrear precisão conceitual (especialmente quando essa precisão é obtida por meios diferentes da argumentação formalizável). Os filósofos deveriam cultivar esses hábitos? Bem, alguns o fazem e isso é bom; espero que continuem e tento ensinar os estudantes a cultivá-los. Mas ninguém pode cultivar cada um dos hábitos que poderiam ser úteis no ensino de uma página de um texto que valesse a pena. Espero que Walden continue a encontrar leitores e confio que continuará. Creio que alguns deles estarão em algum lugar na academia, por vezes até mesmo na filosofia, e que aqui e acolá o livro encontrará seu caminho num programa de estudos, ou pelo menos que aqui e acolá cópias serão pressionadas pelas mãos impacientes de estudantes pobres.

IHU On-Line – Mantendo Emerson no pano de fundo, quais paralelos conceitualmente relevantes poderiam ser traçados entre Nietzsche e Thoreau?
Kelly Dean Jolley – Thoreau e Nietzsche são filósofos da manhã. Ambos querem que seus leitores despertem. Ambos consideram que seus leitores estão em uma situação pior do que aquela que se dão conta. Para cada um deles, é central uma inflexão do conceito de ‘repetição’. Mas eles divergem, assim me parece, de um modo que pode ser capturado fazendo referência a uma passagem de Emerson, aquela sobre ‘sentar aos pés do familiar, do vulgar’. Emerson está disposto a entregar a tutela dos mundos passados e futuros para o lugar comum, abrindo mão do grande, do remoto, do romântico.

Claro que há momentos assim em Nietzsche, mas não creio que ele está disposto, tal como Emerson está disposto – certamente ele não está disposto tal como Emerson está – para aceitar a tutela do familiar e do vulgar. Thoreau está. De fato, Thoreau está disposto a submeter-se a essa tutela em uma medida que nem mesmo Emerson iguala. Essa diferença se deixa sentir nas formas específicas pelas quais Thoreau e Nietzsche são filósofos da manhã. Thoreau está sempre pensando sobre amanhã, o próximo dia da semana, um domingo ou uma terça-feira ou...

Nietzsche está sempre pensando no fim de uma era, no fim de algum substantivo abstrato com uma primeira letra maiúscula, Moralidade, Cristandade, Filosofia, Verdade. Thoreau se preocupa com o trabalho diário, com nossa semana de trabalho. Nietzsche se preocupa com o Eterno. Nietzsche avança a passos largos com botas de sete léguas. Thoreau passeia com botas de vaqueiro que lhe custam 1 dólar e meio. Isso pode fazer parecer que não considero tanto Nietzsche na comparação com Thoreau, e é verdade. Mas de fato tenho Nietzsche em alta conta, o que diz ainda mais, talvez, sobre como valorizo Thoreau.

Há muitas passagens em Nietzsche que consigo imaginar Thoreau apreciando, mas não consigo imaginá-lo escrevendo-as. Tome, por exemplo, “Como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou finalmente uma fábula”. Posso facilmente imaginar Thoreau rindo consigo mesmo satisfeito e vendo justiça nisso. Mas ele não teria também achado um pouco demais? Emocional demais? Thoreau pode tentar, e pode de fato ter sucesso em trombetear vigorosamente como um galo, mas o trombetear de Thoreau não possui a ambição de ser o ‘canto de galo do positivismo’. Começa a segunda-feira, não Zaratustra.

Não tomem nada disso como sugerindo que eu penso que estudar Thoreau em conjunção com Nietzsche é uma má ideia (ou vice-versa). Ambos são emersonianos – mas de diferentes maneiras, tomando coisas diferentes dele, ambos agindo no espírito de Emerson, mas agindo diferentemente. (Parte da prova, assim suponho, de que Emerson não foi escravo de uma coerência tola) . Ocasionalmente Nietzsche dá uma espiadela para baixo, para o lugar comum, tal como Thoreau o faz, olhando para cima, para o Eterno, mas suas orientações de pensamento permanecem bastante distintas.

Thoreau escreve para uma audiência de estudantes pobres, não coletivamente, mas ao contrário, distributivamente, de um modo que os individualiza, que fala para o indivíduo; corações e consciências abaladas. Mesmo o trombetear de Thoreau carrega um sentido de privacidade, como se ele trombeteasse apenas para mim ou apenas para você. Nietzsche escreve para todo mundo e para ninguém, massivamente, em linguagem de placas tectônicas, em graves e vastos movimentos litosféricos, falando por misteriosas forças subterrâneas, falando para o céu azul acima de nós.

IHU On-Line – Qual o papel dos escritos de Thoreau na América de Trump?
Kelly Dean Jolley – Há uma ideia, da qual me convenci já faz um tempo, a saber, de que quanto mais consciência moral nós temos, mais nos apercebemos. Walden é escrito para a consciência moral individual (não há consciência moral não individual, a consciência moral sempre possui proprietário individual). Ao presidente Trump, até onde posso dizer, não apenas lhe falta uma consciência moral, mas ele possui uma aversão à consciência moral. (Quem é Trump para dizer a Trump o que ele pode ou não pode fazer?) Uma importante razão para isso é que ele próprio não parece querer ser mais consciente, e ele por certo não quer que outros sejam mais conscientes. Ele aprisionaria a todos nós em um dúbio crepúsculo – um crepúsculo no qual nos reconciliaríamos com nossas limitações de consciência moral e apercepção por meio do flerte com coisas: telefones celulares, televisões de tela plana, roupas e carros. A saciedade substitui a clareza.

Thoreau nos forçaria a abandonar este dúbio crepúsculo, saindo para a clara luz do sol. Ele nos redirecionaria das nossas relações com as coisas para nossa relação com nós mesmos. Eu não sei se Thoreau pensaria que as linhas mais cruciais de resistência a Trump seriam traçadas entre os grupos nas ruas de Washington ou de... qualquer outro lugar da América. Eu não sei se ele pensaria que as linhas de resistência seriam traçadas entre qualquer ‘nós’ e ‘eles’. A linha mais crucial de resistência deve dividir o nosso próprio coração: eu devo ver meu rosto contra o Trump em mim mesmo, contra a gélida preguiça autoindulgente que ameaça eventualmente me consumir. Se finjo que não tenho um Trump em mim mesmo, fortaleço tanto este Trump quanto aquele na Casa Branca. Meu palpite sobre o conselho de Thoreau para nós na América de Trump (até mesmo, me atrevo a dizer, no mundo de Trump) – Desobedeça a si mesmo! Não, obviamente, no sentido de uma consciência moral desleixada, mas no sentido de adquirir um autocomando efetivo, com força e temperança suficiente para realmente fazer aquilo que a prudência e a justiça revelam ser o correto. Se não podemos dizer não para nós mesmos, como podemos dizer não para Trump?

IHU On-Line – Existe algum eco dos temas de Thoreau em sua produção poética (Stony Lonesome). Qual sua avaliação da poesia de Thoreau?
Kelly Dean Jolley – Minha impressão é que a poesia de Thoreau não é muito lida. Se isso está correto, é uma lástima; sua poesia é realmente muito boa. Mas é verdade que a melhor poesia de Thoreau está no próprio Walden, naquelas passagens do livro que – vistas a partir do ângulo correto – claramente antecipam algo do melhor da poesia de Francis Ponge (considere, por exemplo, “The Frog” de Ponge). São estas passagens que mais influenciaram minha própria poesia, de algum modo mais do que sua reconhecida poesia que tem um pouco menos de prosa – conjuntamente com as várias observações de Thoreau sobre escrever, com mais ênfase em suas observações sobre escrever e ver, sobre ver como um escritor e escrever como alguém que vê.

Dou um passo atrás na hora de comparar minha poesia com a poesia de Thoreau, mas vou brevemente fazê-lo. Como Thoreau, me importo com o lugar, com o sentido do lugar. Fico feliz em escrever poesia que se interessa ela mesma pelo abstrato. E, mais importante, sou ilimitadamente fascinado com caminhos, trilhas, riachos, lagos, árvores e celeiros. Acredito que possuem um significado neles mesmos e que podem suportar o olhar sub specie aeterni – porque um tal olhar, corretamente praticado, não vê através das coisas mas vê as coisas mesmas, em toda sua imponderável imediatidade. Este grande leitor de Thoreau, Henry Bugbee, escreve em Inward Morning:

“As coisas enquanto densas e opacas permanecem firmes na luz da eternidade; e capturam a luz. Tomar aquilo que existe como existindo, e não como um símbolo para alguma outra coisa; encontrar algo para o qual se dá total atenção, e não meramente forçar por seu intermédio a busca de algo que está além, ou ter nesse algo apenas uma mensagem ao mesmo tempo direcionando a mente para longe e para outras coisas; tal é a experiência das coisas como eternas, no ato de serem forjadas. Experimentar as coisas em sua densidade é experimentar a limitação na realidade. Mas a mente ágil e a alma distraída militam contra a verdadeira percepção, pois a verdadeira percepção requer quietude na presença das coisas, requer a recepção ativa e aberta do presente ilimitado das coisas.”.

Experimentar as coisas em sua densidade, tal como elas capturam a luz da eternidade: eis um objetivo para um poeta thoreauviano. E como todas as expressões que são pretensiosas, é profundamente humilhante, pois nunca cheguei nem perto de fazê-lo, apesar de inclinar a mim e as minhas palavras por este caminho repetidamente.

IHU On-Line – Edward Snowden seria uma correta personificação do ideal de desobediência civil em termos que Thoreau aprovaria?
Kelly Dean Jolley – Com frequência eu penso naquela passagem de ‘Economia’ em que Thoreau fala do tráfico de escravos. A passagem pode ser lida como se Thoreau falhasse em condenar a escravidão como deveria. Mas esse não é o jeito certo de lê-la. Seu ponto é que a escravidão existe de várias formas, a Sulista, por certo – uma forma que ele denomina ‘grave, mas um tanto estrangeira’ –, mas também a Nortista, menos grave, no entanto mais nativa. E, a pior de todas, aquela forma de escravidão do eu que é o quinhão da maioria de nós, autoescravidão.

Thoreau não está tentando ranquear estas escravidões como enfermidades sociais, em razão de suas consequências, mas antes como males morais, em razão de suas estruturas. A forma sulista, a qual, lembremos, sabemos que Thoreau execrou, é nesse contexto tratada como menos ruim do que as outras duas porque não há culpabilidade como tal que recaia sobre os próprios escravos. Cada uma das outras duas demandam, em diferentes graus e de diferentes modos, que o escravo seja culpável por seu status como escravo. Ele poderia ter feito outras escolhas. Ele poderia ter vivido de outros modos. Ele também poderia ajudar a acabar com a escravidão forçada daqueles do Sul, para a qual sua escravidão voluntária contribui. Thoreau escreve em seu ensaio sobre John Brown que:

“Nossos inimigos estão em meio a nós e à nossa volta. Dificilmente haverá uma casa que não esteja dividida, pois o nosso adversário nada mais é do que a obduração da cabeça e do coração, a falta de vitalidade no homem, que é efeito de nosso vício; e daí nascem o temor, a superstição, a intolerância, a perseguição, e toda espécie de escravidão. Somos meras figuras de proa num casco de navio, com fígados em lugar de corações. A maldição é o culto dos ídolos, que por fim converte o próprio adorador em imagem de pedra…” .

Quando penso em pessoas como Edward Snowden – que eu não conheço e sobre cujo caráter estou desinformado –, pondero sobre nossa reação a eles. Snowden é um herói da desobediência civil? Não vejo razões para negar. Viva Snowden! Mas o que aprendemos com ele? Ele aumenta nosso desejo de desenraizar os inimigos de nosso próprio peito – a obduração de nossos corações, nossa carência de calor vital? Ou queremos animar os demais, como se seus peitos fossem de madeira mas o nosso de carne? Perguntamos o que há em nós mesmos que nos impele a viver em um Panóptico do Five Eyes ? Por que tolerar a vigilância constante? O que estamos ganhando em troca? Podemos viver a vida que atualmente desejamos sem nos tornarmos alvo da vigilância global? É difícil acreditar que não estejamos ainda mais preocupados com essas perguntas. Mas não estamos, não é?

Ao invés disso olhamos com condescendência para a Five Eyes e desejamos fugir do Panóptico, enquanto vivemos a vida do “Panopticismo”. Queremos acesso instantâneo a tudo, sem lembrar que estamos sendo contados nesse tudo. (O que realmente queremos é ver tudo sem ser visto, tal como o olho que limita o campo visual no Tractatus ) . Adoramos ídolos que nos petrificam. Queremos nossos vícios de graça. Viveremos vidas daquilo que Aleksandr Solzhenitsyn chamou de ‘liberdade amordaçada’ apenas para que possamos ter as coisas que desejamos. Snowden deveria nos lembrar deste fato. E então, após chegar a algum acordo justo com nós mesmos, talvez possamos procurar um acordo justo com o Five Eyes sem abrir mão docilmente da coisa que propriamente seguimos protestando aos berros que nunca iríamos conceder.

IHU On-Line – A literatura secundária sobre Thoreau, produzida por filósofos, tem crescido a olhos vistos. Algum comentador ou texto recente despertou sua atenção de forma especial?
Kelly Dean Jolley – Não acompanho os trabalhos acadêmicos sobre Thoreau de um modo disciplinado. A obra recente de Ed Mooney significa muito para mim. Mas o trabalho que mais interessa é mais antigo, e não é, propriamente, trabalho acadêmico sobre Thoreau: Inward Morning de Henry Bugbee e seus ensaios, The Individual and the New World de John M. Anderson e Personal Destinies de David Norton. O que realmente importa sobre Walden é para onde você vai a partir dele. Thoreau ele mesmo não permaneceu parado. ■

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