Edição 508 | 07 Agosto 2017

Os limites do populismo e seu caráter pouco emancipatório

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João Vitor Santos

Mayra Goulart da Silva analisa o conceito de Laclau e aponta os riscos que podem conter na centralidade que o líder assume nessa perspectiva

Na análise que faz do conceito de populismo em Ernesto Laclau, a professora Mayra Goulart da Silva reconhece que o autor frisa que a aclamação de uma maioria não basta para que se dê algum tipo de ordenamento político. Todavia, compreende que “o populismo não é a melhor ferramenta para a luta hegemônica”. Para ela, o risco não está somente em se constituir um autoritarismo, a partir dessa ideia do líder e de unidade. “Sua incompatibilidade advém do caráter elitista da concepção de política e de representação que o estrutura, a qual, por estar demasiado centrada na função do líder, torna-se pouco emancipatória sob a perspectiva do demos [no sentido de unidades fundamentais do Estado] ”, analisa.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Mayra aprofunda que populismo é distinto das noções de razão e emancipação. “A razão populista não opera a partir de critérios valorativos, cuja legitimidade remeta a um fundamento ulterior ao ato de representação estabelecido entre representantes e representados”, aponta. Sem esses critérios, há o risco de, por se considerar a própria identidade do povo, o líder acabar se desvinculando do próprio povo. A consequência pode ser a constituição de um líder que passa a agir por conta própria. “Inclusive contrariando eventuais compromissos contra-hegemônicos que tenham forjado sua identificação com as camadas populares”, completa a professora. Por isso, reitera que “a razão populista é um operador da soberania popular, conferindo coesão a um grupo de indivíduos que se transforma em um sujeito político, exatamente porque ambiciona constituir-se como povo soberano”.

Mayra Goulart da Silva é professora de Teoria Política e Política Internacional na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Relações Internacionais pela Universidade Estácio de Sá, é mestra e doutora em Ciência Política. Entre suas produções, destacamos Bolivarianismo e luta hegemônica no Brasil: (re)significações do conceito durante o governo do Partido dos Trabalhadores (2003-2015) (apresentado no I Simpósio Pós Estruturalismo e Teoria Social: o legado transdisciplinar de Ernesto Laclau, 2015, em Pelotas, RS).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consiste o conceito de populismo, segundo Ernesto Laclau, e como, a partir dessa categoria, é possível compreender governos da Europa e da América Latina no século XXI?
Mayra Goulart da Silva – Primeiramente, falarei sobre o contexto latino-americano, pois é a partir dele que Laclau configura sua categoria, cujas singularidades serão abordadas na segunda parte da resposta. O conceito, por sua vez, assume uma função descritiva e normativa em face das lideranças surgidas na região no início do século, sendo simultaneamente uma ferramenta heurística, direcionada ao plano analítico conceitual, e contra-hegemônica, voltada à luta política.

Pela sua feição polissêmica, o conceito de populismo pode ser usado como um marcador das viragens pelas quais passou o pensamento e a práxis política latino-americana ao longo do século XX. Essa função de bússola, capaz de conduzir o observador interessado em andar pelos labirínticos caminhos da história política deste subcontinente, resulta da sua sensibilidade às mudanças de humores na região, mas, também, da reincidência de alguns de seus temas como o personalismo, o multiclassismo e a debilidade das instituições liberais. Em particular, tal reincidência está associada a contextos nos quais a sociedade civil tem pouco espaço para o exercício da autonomia, haja vista uma excessiva concentração de recursos econômicos e políticos nas mãos de lideranças locais, carentes de projetos nacionais ulteriores aos seus interesses pecuniários.

Diante disto, elites políticas que almejem a execução de uma agenda programática em âmbito nacional dependem da capacidade de arregimentação destes dois elementos (o povo e as oligarquias), cujos interesses na maioria das vezes são antagônicos. Em termos práticos, a combinação entre ambos muitas vezes se estabelece em termos inversamente proporcionais, isto é, quanto mais apoio das elites, menor a necessidade de disputar o apoio do povo, e vice-versa. Quando enveredam pela segunda opção, buscando sustentação política na popularidade entre os cidadãos comuns, em detrimento das elites tradicionais, os atores políticos são tipificados como populistas – sendo importante salientar que tal opção vem acompanhada por uma visão do Estado como instrumento redistributivo que visa ao favorecimento da cidadania (do povo) em detrimento de grupos privilegiados (oligarquias). Esse é um traço constitutivo do populismo e que serve para diferenciá-lo de alguns movimentos de direita ou extrema direita que, na leitura apressada na mídia e de especialistas, ávidos por encontrar um rótulo que os poupe de uma análise mais acurada, recorrem ao conceito ignorando suas singularidades.

Não obstante, se observarmos uma das origens axiológicas do conceito neste subcontinente, percebe-se que o termo foi utilizado como uma espécie de negativo sobre o qual marxistas e liberais revelavam suas impressões sobre os governos nacionalistas ou nacional-desenvolvimentistas. Estimulados pelas oportunidades criadas em tempos de guerra, este tipo de liderança se dissemina na América Latina, assumindo várias facetas, a exemplo do argentino Juan Domingo Perón (1946-1955 e 1973-1974) ; do chileno Carlos Ibáñez del Campo (1927-1931 e 1952- 1958) ; do brasileiro Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954) ; do mexicano Lázaro Cárdenas (1934-1940) ; do peruano Fernando Bealúnde Terry (1963-1968 e 1980-1985) ; e do equatoriano José María Velasco Ibarra (1934-1935, 1944-1947, 1952-1956, 1960-1961 e 1968-1972) .

Neste negativo, o retrato deste período passa a ser revelado pelas suas ausências. No caso dos marxistas, é ressaltado o caráter multiclassista desses movimentos, denunciado como falta de consciência de classe. No caso dos liberais, a denúncia gira em torno da ausência de uma sociedade civil autônoma e empreendedora que, em virtude de suas debilidades, acaba orbitando em torno de líderes paternalistas.

Interpretações do populismo

Sendo assim, até o início do século XXI, o populismo disseminou-se no vocabulário político latino-americano como uma categoria negativa utilizada para denunciar governos que manipulavam os trabalhadores e cooptavam os atores econômicos, bloqueando a compreensão de seus interesses e a realização de seus verdadeiros propósitos. Em última instância, marxistas e liberais uniam-se em um entendimento do Estado e de seus operadores como obstáculos à livre ação daqueles que seriam os responsáveis pelo progresso.

Há também as interpretações que atribuem ao Estado o papel de operador da transição entre esta disposição tradicional e as sociedades industriais modernas, entendida não como revolução (burguesa), mas como modernização conservadora. Sob esta perspectiva, os governos nacional-populistas teriam sido capazes de engendrar dinâmicas redistributivas capazes de incluir (no mundo do direito e do mercado) parcelas até então excluídas da população, ultrapassando os limites determinados pela mentalidade latifundiária e agroexportadora das oligarquias tradicionais – ainda que não tenham de fato rompido com elas.

Avançando no tempo, observa-se que, nas décadas de 1980 e 1990, a controvérsia acerca dos desdobramentos políticos do populismo perde espaço para um conjunto de considerações que dissertam sobre seus efeitos econômicos, caracterizados como uma herança maldita responsável por impedir a efetiva modernização dessas sociedades. Enquadradas no assim chamado Consenso de Washington , essas abordagens atribuem às estratégias nacional-desenvolvimentistas o fracasso no processo de industrialização que teria resultado na criação de uma burguesia parasitária e em uma imensa dívida pública. Populismo econômico torna-se uma expressão utilizada para tipificar não apenas os programas de industrialização do passado, mas qualquer política monetária ou fiscal de natureza redistributiva.

Populismo e fase neoliberal

Formou-se, então, um consenso entre parte das elites nacionais, credores e atores internacionais em torno da implementação de medidas de estabilização baseadas na contenção do gasto fiscal e no congelamento dos salários. Neste contexto, surge no horizonte político latino-americano um conjunto de líderes comprometidos, de modo mais, ou menos, explícito, com essa agenda desenvolvida através de programas de reajuste executados com a assistência do Fundo Monetário Internacional. Os principais exemplos do período são Carlos Menem , na Argentina (1989-1999), Fernando Collor de Mello , no Brasil (1990-92), e Alberto Fujimori , no Peru (1990-2000).

No entanto, observando sua trajetória política é possível perceber que, embora críticos do nacional-desenvolvimentismo, estes personagens reúnem uma série de atributos políticos que os aproximam do populismo clássico, como o personalismo, a crítica às instâncias de representação tradicional e a concentração de poderes no Executivo. Em comum com o populismo do passado, esses novos líderes apresentam uma retórica voltada ao cidadão comum, em oposição às elites. Esta categoria, todavia, é ressignificada para abarcar outros atores, em particular aqueles que representavam a base de sustentação do populismo nacional-desenvolvimentista, isto é, os trabalhadores formais e a burguesia nacional, organizados, respectivamente, em sindicatos e entidades patronais (Schneider, 1991; Stein, 1980).

Em sua fase neoliberal os discursos populistas se dirigem a uma base social ampliada pelas reformas ortodoxas: desempregados, trabalhadores informais, excluídos, oprimidos e pobres de maneira geral. Em seus atos de fala, todavia, estes sujeitos são apresentados em uma relação de antagonismo que ignora o impacto do neoliberalismo, enfatizando os privilégios concedidos pelo nacional-desenvolvimentismo às elites a ele associadas. Não obstante, em virtude de sua abrangência, estas categorias encontram aderência em um panorama marcado por profundas alterações no mercado de trabalho, além de serem capazes de agregar uma multidão de indivíduos que passaram a uma situação de pobreza e desemprego, cujas esperanças são depositadas na recuperação econômica a ser alcançada através dos ajustes.

Populismo laclauniano

É da frustração dessas expectativas que surge a mais recente viragem no conceito de populismo, propiciada pela insatisfação com os resultados alcançados através da agenda neoliberal e com os líderes com ela comprometidos. Este sentimento se traduz, no despontar do século XXI, em uma conjuntura de grave crise econômica e política, que culmina com a vitória eleitoral de atores que representavam uma mudança de rumos . É nesse contexto que surge o conceito laclauniano de populismo.

Com Ernesto Laclau, a categoria perde sua feição pejorativa, assumindo uma perspectiva que se apresenta como descritiva, embora assuma uma função criptonormativa. Essa segunda característica está associada aos propósitos políticos do autor, no contexto da luta hegemônica travada na região por uma nova elite política, que chega ao poder no século XXI. Com esse objetivo, o termo foi redefinido com o propósito de tipificar estas novas lideranças, destacando seus principais elementos comuns: a recuperação de um ideal nacional-desenvolvimentista, discursivamente construído pela polarização da sociedade entre oprimidos e opressores e pela rejeição da agenda neoliberal.

Deste modo, ainda que seja possível detectar no populismo do passado a configuração de fronteiras de antagonismo, em sua nova fase elas se distinguem por uma dimensão identitária, que se revela na intenção de reconhecer atores que se mantiveram em uma posição de invisibilidade e subalternidade ao longo da história. Nessa nova acepção, o líder populista não guia ou lidera o povo, ele o representa porque faz parte dele, uma vez que compartilha sua identidade.

IHU On-Line – O populismo de Laclau é um conceito que vai além das orientações polares entre esquerda e direita? De que forma? Por quê?
Mayra Goulart da Silva – Para responder a esta questão, precisarei adiantar elementos que configuram o que podemos entender como lógica populista. Isto porque, em A Razão Populista , Laclau deixa claro que a agregação das demandas em uma cadeia de equivalência pressupõe uma assimetria essencial entre a comunidade como um todo e suas partes constitutivas. Esta unidade, por sua vez, depende de um processo de catacrese, no qual uma das partes (a que se percebe como excluída na situação atual) se identifica com o todo, almejando empoderar-se para superar uma situação de exclusão. A lógica desta operação é o que o autor denomina de razão populista e seu corolário é a noção de soberania popular.

Desta forma, se considerarmos esquerda e direita como categorias relativas à manutenção ou conservação de um status quo excludente, o populismo tem afinidade com a primeira. Esse é o sentido empregado por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe , em Hegemonia e Estratégia Socialista (1985) . No texto, os autores apresentam uma definição de contra-hegemonia como projeto de democracia radical que depende de uma articulação artificial e contingente entre os diferentes sujeitos coletivos, cada qual portador de uma demanda não atendida pela ordem atual. O populismo é, então, apresentado como operador preferencial desse tipo de articulação. Por esse motivo, embora ele seja uma forma de identificação sem um conteúdo determinado, ao meu ver são inequívocas as suas afinidades com movimentos de contestação ao status quo.

Por outro lado, o conceito se define como uma categoria de entendimento voltada para a compreensão de um tipo imediato de representação, estabelecido entre um líder e um conjunto de indivíduos que até então se percebiam desagregados e excluídos. Ele é, portanto, uma forma de identificação sem conteúdo determinado, podendo ser associado a movimentos de esquerda e de direita, desde que estes se estruturem a partir da denúncia de formas de exclusão passíveis de serem sanadas pelas funções redistributivas do Estado. São discursos que enfatizam uma relação de antagonismo entre uma parcela da população que se percebe injustiçada por não ter suas demandas contempladas – embora se considere majoritária (são uma parte que se reivindica como todo, isto é, como povo e, por conseguinte, soberano) – e os grupos que são identificados como os responsáveis por tal exclusão (elite).

Sujeitos coletivos

Não obstante, como abordarei nas próximas questões, a peculiaridade do conceito consiste em demarcar uma diferença quanto a outros tipos de vínculos representativos, que pressupõem a ação de elementos de mediação referentes a algum tipo de identificação prévia: com uma ideologia, com uma classe, com um grupo de interesses, com um conjunto de símbolos etc. Em dinâmicas populistas, é através da identificação com o líder que os indivíduos se conectam, tornando-se um sujeito coletivo.

Nisto consiste uma limitação da razão populista, quando comparada a outras formas de representação que, ao meu ver, são mais adequadas a propósitos efetivamente emancipatórios sob a perspectiva do demos. Ademais, ao configurar um sujeito político através de uma relação de antagonismo, este operador pode resultar em visão unitária de povo, que comprime a pluralidade de identidades e grupos inerentes ao tecido social das coletividades contemporâneas.

IHU On-Line – O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump , e o papa Francisco podem ser considerados como expressões do populismo? Como? Por quê? Em que medida podemos, a partir das experiências da Espanha (Podemos) e da Grécia (Syriza), falar em limites e potencialidades da perspectiva do populismo?
Mayra Goulart da Silva – De início, deixo claro que não acompanho de perto as trajetórias de nenhum dos atores mencionados: papa, Trump, Podemos, Syriza. Mesmo assim, no tocante ao primeiro, a resposta é mais fácil: não. A razão populista é um operador da soberania popular, conferindo coesão a um grupo de indivíduos que se transforma em um sujeito político, exatamente porque ambiciona constituir-se como povo soberano em um determinado território. O papa fala aos católicos do mundo, grupo que não apresenta essa pretensão.

No caso dos discursos de Trump, há uma outra singularidade no conceito laclauniano que dificulta sua aplicação, pois não me parece que ele se dirija aos excluídos, isto é, aos que se definem por uma relação de opressão e subalternidade a ser sanada através de iniciativas redistributivas operadas a partir do Estado. Ao contrário, assim como outros líderes apressadamente tipificados como populistas, o presidente estadunidense é um crítico deste tipo de política pública.

É claro que há ambiguidades e que, em alguns momentos, estas lideranças mobilizam a ideia de soberania popular e a indignação das classes populares. Afinal, estes são corolários incontornáveis em qualquer atividade e discurso político realizado em um ambiente democrático. Porém, de modo geral, é possível perceber que o núcleo normativo dos discursos de Trump são brancos de classe média. São indivíduos passíveis de serem favorecidos por um conjunto de políticas voltadas a aumentar a rentabilidade dos investimentos econômicos, mas não necessariamente por iniciativas direcionadas à distribuição de renda e ao favorecimento das classes populares. É neste ponto que Trump se diferencia dos outros atores mencionados (Podemos e Syriza), aos quais acredito que o conceito laclauniano de populismo se aplique com maior adequação.

Essa discussão me permite ilustrar a importância de decompor os elementos que constituem esta categoria, impedindo que ela perca seu potencial analítico, sendo utilizada aleatoriamente para se referir a qualquer fenômeno político novo, apenas pela dificuldade (ou preguiça) de observá-lo em sua singularidade. Reconheço que o conceito possui uma feição abrangente (multiclassista, poli-ideológica etc). Esta, por sua vez, advém do caráter fugidio que o próprio conceito de povo adquire em um horizonte marcado pela “dissolução dos marcadores de certeza”, na terminologia de Lefort . No entanto, para ser útil enquanto tipo ideal, a noção de populismo deve servir para diferenciar fenômenos mediante a tipificação de um conjunto de características singulares; mesmo que nem todos os casos reúnam todas elas, é preciso ter um núcleo comum.

Ao meu ver, pode ser encontrado em discursos de contestação ao status quo, que utilizem a ideia de exclusão e se dirijam ao Estado enquanto ator capaz de suprir as demandas que configuram esta situação de opressão. São discursos proferidos por atores que se apresentam para a disputa política, com o propósito de galgar cargos capazes de permitir o uso da máquina estatal com propósitos redistributivos.

IHU On-Line – Como a lógica da política populista é construída?
Mayra Goulart da Silva – Esta é uma pergunta importante, pois permite refletir sobre as limitações da formulação de Laclau, que, por estar direcionada à análise de perfomances discursivas, carece de elementos capazes de nortear aqueles que desejam utilizar a noção de populismo para analisar políticas públicas e práticas de governança. Atualmente, tenho me dedicado a este tema, buscando sobrepor algumas camadas heurísticas à categoria laclauniana, capacitando-a para a observação crítica dos governos nela enquadrados. Essas camadas se estabelecem em dois planos complementares. Primeiramente elas se referem à dimensão material, relativas aos componentes abordados ao final da última pergunta quando ressaltei a natureza redistributiva do conceito, estando, portanto, atreladas à adoção de medidas e políticas públicas que favoreçam economicamente as classes populares. Aqui a ideia é atender às demandas materiais que, por não serem contempladas pelo status quo anterior, criavam uma situação de opressão.

Por outro lado, elas se dirigem ao plano formal (jurídico-político) e dizem respeito à criação de canais que superem a opressão política destes grupos que se percebiam excluídos dos processos decisórios anteriormente configurados. Tais canais podem assumir diferentes formatos. No entanto, observo (em termos empíricos e conceituais) uma afinidade com dinâmicas que espelhem as feições cesaristas e plebiscitárias da razão populista, estabelecendo vínculos imediatos que aproximem o povo do líder e, por conseguinte, dos processos decisórios por ele determinados. Isto tem sido feito, por exemplo, por meio de mecanismos de participação direta, sobre os quais cabe uma reflexão mais atenta que passa pela questão da “crise da representatividade”.

Ao lidar com o desafio de considerar normativamente o que acredito ser o núcleo operacional do conceito de populismo, quando direcionado à análise de performances governativas, precisei recorrer a autores que lidem com esta questão, uma vez que as considerações de Laclau se mantêm demasiado presas à dimensão discursiva e aos momentos originários, nos quais se dá a gênese dos fenômenos analisados. Para isso, foi interessante observar a crítica apresentada por Nadia Urbinati , em Democracy Disfigured (2014) , que visa exatamente especular sobre o que consistiria uma governança populista e sobre quais seriam as principais características das políticas públicas e decisões engendradas por estes líderes no poder. No texto, a autora dedica-se a alguns fenômenos contemporâneos que desvirtuam ou, na terminologia do texto, desfiguram os sistemas políticos inseridos em um horizonte de expectativas que visa conciliar democracia e liberalismo. Dentre eles está o populismo.

Hostilidade

Segundo a hipótese apresentada por Urbinati, um dos elementos que fazem parte de sua essência seria a hostilidade ao liberalismo e aos princípios da democracia constitucional (divisão de poderes, direitos das minorias etc.). O que pressupõe o ímpeto de realizar alterações institucionais com o propósito de aumentar a centralização dos poderes nas mãos do líder e de seus seguidores. Por conseguinte, na sua concepção, um dos elementos que fazem parte da razão populista seria a oposição aos princípios da “democracia constitucional” (divisão de poderes e direitos das minorias etc.).

Afastando-se da tradição da filosofia política, que trata de questões de legitimidade a partir de uma analogia com o que seria a “substância” do corpo político, Nadia Urbinati utiliza a ideia de figura. Entendido como fenótipo, o conceito remete a um conjunto de atributos que permite a um observador externo reconhecer um determinado regime, distinguindo-o de outros. Ao falar da desfiguração da democracia, a autora almeja detectar modos de esgarçamento das instituições liberais que, mesmo não alterando nominalmente a forma de governo, podem ser externamente observáveis.

É o caso da relação de hostilidade entre populismo e democracia liberal, definida como uma diarquia, como sistema dual no qual a “vontade” (procedimentos decisórios) e a “opinião” (interesses e desejos que se estabelecem fora do plano institucional) se influenciam mutuamente. Essa dinâmica entre vontade e opinião demanda, por sua vez, um arcabouço institucional caracterizado pelo respeito às liberdades individuais, pela divisão, equilíbrio e controle recíproco de poderes (checks and balances) e pela natureza representativa de seu processo decisório, que inclui a preocupação com a representação de interesses e sujeitos sociais minoritários (pluralismo).

Tal hostilidade, todavia, não se limita à gênese dos movimentos, mediante a configuração de vínculos de identidade entre os líderes e seus seguidores. Uma vez no poder, estas lideranças se constituem como uma ameaça para a democracia liberal, ao tomarem decisões que reduzem o dualismo entre vontade e opinião através de uma simplificação do campo social, operada pela polarização. É neste ponto que as considerações de Urbinati se tornam particularmente úteis para o propósito de ampliar a categoria laclauniana de populismo, tornando-a apta para lidar com a análise de políticas públicas e performances governativas, e não apenas com fenômenos de natureza discursiva .

Embora reconheça a pertinência da crítica formulada por Urbinati, acredito que ela não se aplique ao nosso contexto. Isto porque seus fundamentos normativos se referem à defesa de um tipo de sistema político (ou se quisermos manter o léxico filosófico, de uma forma de vida) que jamais deitou raízes na América Latina: o liberalismo político. Diferentemente de Laclau, mais sensível às particularidades do nosso entorno, Urbinati atribui um caráter inelutavelmente negativo à deriva plebiscitária que acompanha este tipo de fenômeno, cujo inimigo subjacente seria o próprio sistema liberal, no que diz respeito ao pluralismo e ao respeito às minorias. Não obstante, quando olhamos para o nosso contexto, essa conexão direta entre o líder (no caso o chefe do Executivo) e a massa (maioria dos cidadãos) muda de figura. Embora reiteradamente criticada, essa dinâmica – favorecida por sistemas políticos hiperpresidencialistas, como aqueles que encontramos na região – apresenta-se, muitas vezes, como única alternativa para contornar os obstáculos dispostos pelas oligarquias locais, que tradicionalmente se reproduzem nas diferentes instituições constitutivas do nosso arremedo de democracia representativa.

Sob esta perspectiva, o populismo, por um lado, surgiria como uma alternativa às concepções meramente procedimentais da democracia, que a esvaziam de sua substância ética, relativa ao empoderamento das maiorias, instigando a percepção de que a representação é uma panaceia fadada ao fracasso. Em contrapartida, esse preenchimento se dá mediante uma narrativa simbólica que compromete a competência das instituições de atuarem como médium capaz de relacionar e separar os interesses sociais e o Estado, que tornar-se-ia, então, uma expressão direta dos grupos majoritários. Ao identificar imediatamente o político com o social, através da figura do líder, o populismo ameaça o dualismo que caracteriza a democracia representativa, estabelecido a partir de um conjunto de dinâmicas, procedimentos e instituições responsáveis por fazer a mediação entre a opinião pública e as decisões dos líderes. Sem elas corremos o risco de configurar um sistema no qual povo e Estado não se diferenciam, sendo esta uma característica definidora de regimes totalitários que interdita qualquer posicionamento crítico dirigido ao plano político. Na minha opinião, é exatamente neste ponto, isto é, na sua dificuldade de lidar com dinâmicas de mediação que reside a sua maior fragilidade.

IHU On-Line – Por que o modelo da “razão populista” não se reduz à perspectiva de uma razão pura? Como a razão populista concebe os papéis do líder e do povo? E como apreende quem está fora da homogeneidade de povo?
Mayra Goulart da Silva – Penso que você tenha se referido ao conceito kantiano de razão prática, uma vez que a razão pura se refere a objetos alheios à intervenção humana, sendo de certa forma incompatível com questões de caráter político. No que diz respeito à razão prática, esta sim é orientada à ação humana, em particular, aquelas que se estabelecem por dever; sua dissociação com o que Laclau denominou de razão populista pode ser estabelecida remetendo à natureza pós-fundacional que caracteriza o contexto teórico no qual se inserem as contribuições de Laclau.

Ao assumir a ideia de pós-fundacionalismo para definir o horizonte epistemológico marcado pela superação da filosofia do sujeito, Laclau (e Chantal Mouffe, sua esposa e parceira de trabalho) pressupõe a possibilidade de retomar o ideal moderno de autoafirmação (self-assertion) separando-o da noção de autofundação, na medida em que a crença na capacidade da razão humana de encontrar fundamentos últimos para a existência é incompatível com a rejeição de suas bases metafísicas, essencialistas e universalizantes.

Nesse esforço, é formulada uma teoria acerca da formação dos sujeitos políticos despojada de qualquer essencialismo, na qual toda identidade se configura sob uma perspectiva relacional, através de uma relação de antagonismo. Sob este prisma, a identidade de um sujeito não lhe é intrínseca, mas depende da relação que ele estabelece com outros termos num sistema de diferenças historicamente construído e instável, uma vez que composto por estruturas discursivas (e sujeitos) antagônicas que impedem seu completo fechamento em uma só totalidade.

Desde a publicação de Razão Populista em 2005, Laclau tornou-se um teórico requisitado por políticos e acadêmicos para explicar as mudanças ocorridas na hora presente, marcada pela emergência de atores na América Latina e no mundo que, malgrado suas idiossincrasias, se caracterizam por discursos de contestação ao status quo. No entanto, a despeito de suas virtudes analíticas e normativas, o populismo, assim como o carisma weberiano , incorpora um elemento de instabilidade. Por este motivo, conforme abordado na pergunta anterior, o conceito não se situa no plano da racionalidade (instrumental ou deontológica), mas na esfera da vontade (subjetiva e imanente).

Essa característica lhe permite atualizar os elos entre a dimensão fático-institucional e o plano ético/valorativo, renovando suas pretensões de legitimidade. Por isso, enquanto movimento carismático, a razão populista cumpriria o papel de reverter – ainda que por pouco tempo – a tendência rotinizante que afeta todo ordenamento jurídico-político, reaproximando-o de suas bases ético-morais. Este é um elemento que permite ao populismo apresentar-se como uma solução (falível e efêmera) para a chamada crise da representação nas sociedades contemporâneas, como argumentei ao longo deste comentário. Deste modo, em virtude de seus atributos teóricos, mas também do direcionamento prático dado pelo autor, o populismo desponta como operador contra-hegemônico, ou seja, como um instrumento útil na luta pela transformação nas estruturas de poder que perpetuam a opressão das classes populares.

Entretanto, a despeito do reconhecimento de tais atributos, é preciso salientar seus inconvenientes aportados pela incorporação de uma teoria elitista da representação, que encontra sua compreensão mais radical na obra de Carl Schmitt . A conceitualização schmittiana ressalta a dimensão da homogeneidade, apresentando-a como um desdobramento normativo de um corolário realista, isto é, do pressuposto weberiano de que, na modernidade, a representação, enquanto momento de identificação entre governantes e governados, é um componente inextrincável aos sistemas políticos, que não mais podem recorrer a fundamentos transcendentes de legitimidade.

Homogeneidade e representação

A homogeneidade, portanto, é um elemento intrínseco à ideia de representação apresentada por Laclau, embora ela seja mitigada pela consideração de sua precariedade e do hiato entre representantes e representados, que atribui a todo ato de identificação um caráter incompleto. Para o autor, o processo de complexificação não ocorre apenas dentro da sociedade, mas, também, nos próprios indivíduos, que por serem compostos de inúmeras dimensões valorativas deixam de ser capazes de se identificar por completo com qualquer coisa ou pessoa. Toda identidade adquire, então, um caráter parcial e temporário, daí a necessidade de atrelar a legitimidade dos representantes a algo mais do que sua capacidade de identificação para com os representados.

Em contraste com os princípios que orientam o entendimento liberal acerca dos mecanismos representativos, que sublinham a pluralidade de opiniões e a proteção das minorias, o entendimento laclauniano tende a realçar dinâmicas majoritárias. Diante disto, destacam-se dois problemas centrais: (1) o que fazer com as parcelas da população que não partilham da mesma identidade dos grupos majoritários?; (2) quais os limites dessa identificação majoritária, tendo em vista o caráter multifacetado dos indivíduos e grupos sociais?

Neste tocante, é preciso reconhecer o esforço de Laclau em afirmar que, sob uma perspectiva normativa, a aclamação da maioria não é suficiente para conceder legitimidade a um ordenamento político, sendo este um ponto central para a argumentação aqui empreendida, na medida em que evita uma associação precipitada entre populismo e cesarismo. Sob esta perspectiva, o populismo não é a melhor ferramenta para a luta hegemônica, mas não porque dê origem a regimes necessariamente autoritários. Sua incompatibilidade advém do caráter elitista da concepção de política e de representação que o estrutura, a qual, por estar demasiado centrada na função do líder, torna-se pouco emancipatória sob a perspectiva do demos. Este é um ponto que venho tentando desenvolver nas minhas pesquisas, que visam concatenar a exegese deste emaranhado teórico com a análise da conjuntura latino-americana.

Ademais, o próprio pós-fundamentalismo, enquanto epistemologia impermeável a princípios transcendentes, traz consigo alguns inconvenientes. Pois, se o ato de representação constitui simultaneamente representantes e representados, não havendo uma essência coletiva ou vontade geral que o transcenda, torna-se mais difícil subordiná-lo a qualquer ideia de responsabilidade alheia aos seus ditames, visto que não fica claro a quais vontades ou interesses os representantes devem ser responsivos e que tipo de controle o povo deve exercer sobre eles.

Em outros termos, diferentemente das noções de razão e emancipação, que servem como horizonte normativo da tradição marxista em geral e, em particular, da ideia de luta hegemônica apresentada por Antonio Gramsci , a razão populista não opera a partir de critérios valorativos, cuja legitimidade remeta a um fundamento ulterior ao ato de representação estabelecido entre representantes e representados. Na ausência de tais critérios, agrava-se o risco de que, por pressupor uma identidade substantiva com o povo, o líder dele se desvincule, agindo em seu nome como bem entender, inclusive contrariando eventuais compromissos contra-hegemônicos que tenham forjado sua identificação com as camadas populares.■

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