Edição 507 | 19 Junho 2017

Eu Laerto, tu Laertas...

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Fernando Del Corona

Documentário da Netflix expõe lado vulnerável da cartunista que vive fortemente sob os holofotes nacionais desde que assumiu sua identidade de mulher trans no final dos anos 2000

Foto: Divulgação/Netflix

Em um quadro branco da casa da cartunista Laerte Coutinho, onde se passa a maior parte de Laerte-se, o primeiro documentário nacional produzido pela Netflix, em parceria com a produtora Tru3lab, ela separou sua lista de coisas para fazer em três colunas: corpo, trabalho e casa. Em muitos aspectos, parece que o próprio filme revolve em torno dessas palavras.

A casa já se expõe como personagem no começo do filme, quando, em uma série de e-mails trocados com a diretora Eliane Brum, Laerte revela seu receio de começar as gravações ali, em sua casa, no dia seguinte e pede para adiar, esperando por um momento melhor. Sempre que recebe visitas para entrevistas rápidas, diz ela, fica nervosa e ansiosa – e dessa vez não vai ser rápida. Pelo que conversam, entende-se que não foi a primeira vez que ela pedira isso, mas Brum insiste com carinhosa firmeza: esses encontros devem ter sua dose de desconforto. Laerte aceita, e abre para Brum e sua codiretora Lygia Barbosa da Silva as portas de seu lar assumidamente bagunçado, repleto de pilhas de livros e de seus gatos, com quem senta no chão na frente de casa para que eles possam passear um pouco.

Laerte, uma das cartunistas mais famosas do Brasil, viu-se fortemente sob os holofotes nacionais ao assumir sua identidade de mulher trans no final dos anos 2000. Ela diz ter começado a fazer a descoberta da sua identidade em 2004, aos 53 anos, após publicar uma tirinha em que seu personagem Hugo se travestia na personagem que ficaria conhecida como Muriel. Em 2005, seu filho Diogo, de 22 anos, morreu em acidente de carro. Receosa de citar a morte como “faísca” para sua mudança, ela deixa claro o impacto que o evento teve em sua vida, e como isso influenciou sua decisão de vir a público em 2009, em uma entrevista para a revista Bravo!, quando ainda se identificava como crossdresser – efetivamente, um homem ainda. Com o tempo, conforme se aproximava dos 60 anos, assumiu-se como mulher trans, ainda que siga questionando e elaborando sua própria identidade.

A enorme fama e visibilidade de Laerte como cartunista colocou-a logo como figura importante na discussão sobre a transexualidade no Brasil – país que mais mata travestis e transexuais no mundo, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia. O que Laerte-se revela, porém, é a relutância com que ela lida com essa posição. A personagem que o filme encontra em sua intimidade demonstra inseguranças, dúvidas, medos. Ela é tímida, e parece muitas vezes inquieta por ser colocada diante da câmera. Tem medo que as pessoas descubram que ela é uma fraude, como diz. Fica claro sua relutância de ser vista como uma porta-voz da comunidade transgênero, ao mesmo tempo que parece entender a importância de seu papel como figura pública e procura se pronunciar, revelando suas dúvidas e aprendizados, sem nunca se propor a ser uma especialista no assunto.

Conhecida pelo humor ácido que revela no seu trabalho e por sua postura pública vocal e desinibida, conhecer Laerte pelo modo como o filme a apresenta é um choque muito bem-vindo. É preciso entender essa fragilidade que se esconde por trás da coragem que exibe ao viver da maneira pública que vive.

Em seus questionamentos – que, muitas vezes, parecem ser feitos na hora, conforme fala com a câmera –, Laerte parece em constante trabalho de elaboração sobre sua própria identidade. Perguntas importantes são lançadas: o que é ser mulher? Ela reformula: o que é se sentir mulher? Ela não tem a resposta. Explica sua escolha de, até o momento, não fazer uma operação de mudança de sexo. Mais do que isso, expõe seu corpo nu tanto na intimidade de um banho, conforme se depila, quanto na sua vida artística, ao posar para uma sessão de fotos, ou ao se desnudar ao lado de sua modelo após desenhá-la. Ao longo das filmagens, debatia-se com a ideia de colocar ou não seios, uma questão que permeia todo o filme. Para ela, a questão pode ser dividida em quatro verbos: querer, dever, precisar, poder. Precisar é o pior desses, diz ela, que parece temerosa ao reforçar papéis de gênero, pouco convencida de que precisa de um peito para ser mulher. Rita Lee a adverte: peito é um saco. Ela rebate: saco é um saco.

A câmera entra no quarto de Laerte, onde a vemos experimentar roupas e colocar maquiagem. Em uma entrevista durante uma exibição de seus trabalhos, lhe perguntam sua marca de batom favorita, e sua reação simpática é indecifrável – o quanto é alegria, o quanto é aquele desconforto que vemos em suas cenas íntimas? Provavelmente um pouco dos dois. A primeira vez que se vestiu de mulher foi quando tirou seus pelos pela primeira vez e viu seu corpo de outra maneira. Visivelmente mais à vontade com sua posição de mulher trans, ela ainda afirma que não está buscando construir uma identidade feminina, apenas sua própria identidade. Outra questão surge: virar mulher ou nascer de novo? Decidiu não trocar seu nome, fortuitamente agênero, e ficou feliz ao saber de outra mulher chamada Laerte.

Como ela coloca, o corpo é central, mas não é tudo – não gosta de usar a biologia como um norte definitivo. Isso também se expande para o filme. Ainda que a identidade de Laerte, e sua relação com seu corpo, seja o fio condutor do filme, Brum e Barbosa se voltam também para seu trabalho como desenhista, e, enquanto em suas entrevistas ela aparece insegura, em seus desenhos demonstra toda a eloquência que pode lhe faltar no discurso verbal. Muitas vezes os questionamentos sobre os quais ela se debruça longamente são melhor explicitados pelas tirinhas que aparecem animadas na tela ao longo do filme. Sua relação com o desenho fica ainda mais clara nas suas tirinhas de Hugo e Muriel. Nas histórias dos dois, Laerte explicitava cada vez mais seus desejos, que inicialmente supria com saídas noturnas vestida de mulher, mas que cada vez mais começou a tomar espaço na sua vida – assim como na vida de Hugo. Suas próprias angústias são representadas visualmente conforme Hugo começa com experiências cômicas e casuais com o crossdressing apenas para se ver cada vez mais se transformando em Muriel – ainda que, ao contrário de Laerte, tenha permanecido assim e nunca assumido uma identidade trans.  

Ao longo de Larte-se, acompanha-se a cartunista em projetos variados, resolvendo problemas banais, em consultas ao médico ou com sua família e amigos. Ainda que brevemente, se conhece um pouco sobre seus pais, sua juventude e seu processo de aceitação. Ela também elabora um pouco sobre seu processo de criação – “é uma coisa que dá uma ereção mental” – e sobre sua posição política. Declara-se de esquerda, mas questiona a validade dessa definição. As diretoras apresentam cenas dos protestos políticos que dominaram o país durante a produção do documentário – que começou em 2013, sendo lançado apenas em 2017 – e, em certo momento, se vê uma gravação de Laerte inserida em um deles.  Através da mescla dessas cenas com as outras discussões levantadas ao longo do filme, a mensagem fica clara: a maneira de Laerte se expor como está fazendo é, em si mesmo, um ato político.

Ela questiona a própria coragem: ao se assumir como trans, já era separada – três filhos de três casamentos –, tinha uma posição profissional estabelecida, já se aproximava dos 60 anos, não tinha muito a perder. “Eu não sou uma pessoa conhecida pela audácia”, diz, para surpresa de todos. Laerte é uma figura forte e importante no Brasil, e, sim, conhecida pela audácia. Em 2016, processou – e ganhou – grandes veículos de comunicação e não mede as críticas afiadas sempre que compartilha em abundância, seja através de sua arte ou não. Sim, em Laerte-se pode-se ver, talvez pela primeira vez com tamanha clareza, a fragilidade e a insegurança por trás desse personagem necessário no país, mas se isso produz algum efeito, é apenas reforçar sua audácia. É preciso muita coragem para revelar o que Laerte revela, para mudar como ela mudou. Enfim, para Laertear-se. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição