Edição 505 | 22 Mai 2017

A necessidade de uma outra política a partir da lei inoperante

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Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi| Tradução: Luísa Flores

Colby Dickinson afirma que a potência destituinte permite que a lei seja desativada e assim se faça um novo uso dela

Precisamos pensar para além da oikonomia e da glória, a partir de uma nova perspectiva sobre a política, suspendendo-a e retornando com um viés diferente. De acordo com o filósofo norte-americano Colby Dickinson, “pensar o papel da inoperatividade, para Agamben, significa lançar um olhar renovado sobre como a suspensão do nomos ou da lei é, na verdade, o que está no coração de toda a lei – o ‘Impolítico’, como é chamado por ele, que funda toda a política”. E acrescenta: “A maneira como uma forma de vida é capaz de tornar inoperante esta maquinaria antropológica pastoralmente concebida – e assim manifestar outra forma de glória além do que vimos – é o que Agamben faz questão de destacar a fim de atingir algo como a vida para além da sua inscrição na lei e na representação política”. A política ocidental, pontua Dickinson, investe suas energias em demonstrações militaristas que aprofundam relações hierárquicas e hegemônicas em termos globais.

Colby Dickinson é professor de Teologia na Universidade Loyola, em Chicago. É autor de Agamben and Theology (London: T&T Clark, 2011) e Between the Canon and the Messiah: The Structure of Faith in Contemporary Continental Thought (London: Bloomsbury, 2013) e de vários artigos sobre a filosofia e teologia continental contemporânea. É editor de The Postmodern ‘Saints’ of France (London: T&T Clark, 2013) e The Shaping of Tradition: Context and Normativity (Leuven: Peeters, 2013).

Dickinson é conferencista no VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, que ocorre nos dias 23 e 24 de maio de 2017..

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Tomando em consideração a biopolítica e a glória enquanto faces da máquina governamental bipolar, quais são os principais desafios da democracia em nosso tempo?
Colby Dickinson – Como Agamben estrutura em sua série Homo Sacer, especialmente em seu conclusivo volume O uso dos corpos, precisamos aprender a estabelecer uma forma de potência destituinte que nos permita tornar a lei inoperante, talvez, como ele incita (embora inspirado nos escritos de Platão ), através da formação de comissões que se concentra na retirada ou na negação de leis específicas. Ou seja, ser capaz de romper com leis que englobam as nossas identidades e, assim, promover esta forma de suspensão messiânica, é o desafio ao qual precisamos aprender a pensar, para ver com novos olhos as formações democráticas que norteiam uma boa parte da nossa ordem política atualmente.

Além disso, seria interessante notar como a existência de certas ONGs globais e até mesmo de certos tribunais internacionais já estão concretizando um pouco deste sentido, pois desafiam as leis existentes buscando a sua revogação. Mas isso, naturalmente, é pragmático demais para Agamben se dedicar em um contexto cotidiano, e eu não o culpo por não abordar esta questão diretamente. Precisamos levar em conta as nuances da discussão teórica e filosófica dessas questões. Gostaria apenas que alguém em algum lugar fosse curioso o suficiente para ouvi-lo em relação às comissões e refletir mais a fundo sobre se os grupos atuais em nosso mundo já estão atuando nesta direção ou não.

Além disso, e segundo os recentes argumentos de Achille Mbembe , é preciso fazer uma distinção entre as forças neoliberais do capitalismo que são verdadeiramente niilistas, sem qualquer tipo de base moral, e o legado de um humanismo liberal que ainda fala muito diretamente à era contemporânea, incluindo a nossa visão de mundo secular. Recentemente, ao ler o estudo histórico A Invenção do Indivíduo, de Larry Siedentop , fiquei impressionado pelos paralelos que parecem existir entre a sua defesa do liberalismo humanista ocidental e o projeto de Agamben para recuperar a mensagem messiânica do pensamento paulino. Ambos os autores parecem estar na mesma direção em termos de oferecer uma perspectiva para a recuperação de formas vitais do pensamento ocidental e cristão, mesmo e sobretudo quando estas formas contestam e desafiam a própria Igreja (ou as instituições políticas ocidentais que a Igreja ajudou a estruturar, como no caso da monarquia soberana).

IHU On-Line – A fratura detectada entre teologia e oikonomia, em outras palavras, entre ser e agir, é a explicação de Agamben para a práxis livre e anárquica. A ação política resultante de tal configuração tem sua fundamentação, portanto, não no ser, mas no agir. Poderíamos afirmar que é essa a raiz lógica administrativa que permeia a política ocidental? Por quê?
Colby Dickinson – Sim, e em um sentido muito literal. Os políticos normalmente adoram demonstrar seu poder (ou pelo menos o desempenho do poder de sua posição), através de sua capacidade de agir e, de um jeito ainda mais schmittiano, decidir (e em qualquer contexto em que seu exercício de poder possa ser exercitado, não importando, para alguns, o quão pequenas tais decisões possam ser – o que costumamos chamar de 'microgestão', em cujas minúcias vários líderes se perdem). Alguns políticos ainda gostam de insinuar que um bom líder é aquele que age, que toma as decisões importantes, até mesmo se elas forem equivocadas ou destrutivas. Em um sentido muito explícito, simplesmente ser a pessoa que decide e que age como o soberano deve agir é o que demonstra que alguém detém o poder – um desempenho de poder que legitima sua percepção como sendo soberanos retroativamente.

A política ocidental, principalmente no período moderno, gasta boa parte de sua energia e recursos (especialmente em um sentido militarista) no exercício de tais demonstrações de poder e capacidade, aumentando quaisquer noções de poder de decisão que precisem ser destacadas, a fim de estabelecer relações hierárquicas e hegemônicas globalmente. Podemos considerar, por exemplo, como 'hawkish', como é geralmente chamado, um líder que é capaz de agir e tomar decisões, de forma a reinar em sua supremacia de soberano em uma escala global. Nos Estados Unidos, pelo menos, estamos muito acostumados às retóricas ideológicas que ressoam profundamente com a análise do ser e do agir de Agamben.

O que é realmente importante para Agamben, no entanto, é compreender o papel do uso para além dessa dicotomia de ser e agir, uma vez que é o que nos empurra para além de qualquer sentimento de posse e, portanto, para a suspensão (ou negação) da própria identidade. A partir desta perspectiva, pode-se perceber por que os debates franciscanos sobre posse e uso são tão cruciais para Agamben: eles apontavam para uma outra maneira de pensar o estar no mundo, mais alinhado à leitura paulina da vocação messiânica. Com certeza, não é isso o que o mundo valorizaria como um líder eficaz; no entanto, para ser claro, tanto para Paulo como para Agamben este é o único sentido em que um líder seria realmente eficaz: através da sua capacidade de regredir ao ponto de potencial onde a sua identidade foi desfeita, desfazendo também o senso de ser em posse do poder.

IHU On-Line – Por que a glória é considerada por Agamben como o arcano central do poder?
Colby Dickinson – Como Agamben conclui de forma sucinta no epílogo de O uso de corpos, a glória visibiliza o Arcano central do poder, a sua inoperosidade, simbolizado pelo trono vazio do soberano (ou do Papa, nas obras de arte de tantas igrejas). Somos fascinados pela glória, diz ele. No entanto, ainda não sabemos o que fazer com ela. Nós certamente reconhecemos, no entanto, sua centralidade para as operações de poder e todas as suas relações – o 'último mistério da divindade e do poder'. Pensar o papel da inoperosidade, para Agamben, significa lançar um olhar renovado sobre como a suspensão do nomos ou da lei é na verdade o que está no coração de toda a lei – o 'Impolítico', como é chamado por ele, que funda toda a política. A glória simboliza essencialmente o impolítico ou inoperante, e é fácil imaginarmos isto quando vemos como, ainda hoje, as pessoas glorificam e são fascinadas por famílias reais cuja existência cotidiana não parece ter nenhum outro sentido do que a sua própria existência.

IHU On-Line – A partir da perspectiva analisada por Agamben, por que o poder necessita da inoperosidade e da glória?
Colby Dickinson – O principal foco de Agamben é mostrar como a glória funciona e, assim, tornar o poder inoperante, no sentido de suspender sua construção do sujeito (ocidental). Com isso, ele parece estar sugerindo outra forma de glória, diferente da que tem circundado a soberania ocidental por séculos, uma forma de glória aberta à suspensão da lei e que serviria para explicar o uso paulino (ou bíblico) de glorificar a Deus, que circula na suspensão messiânica de todas as identidades (a revogação de todas as vocações, como ele chama).

A análise de Michel Foucault do poder pastoral nos mostra a influência de tais poderes na formação e gestão de subjetividades, e Agamben não subestima a importância destes estudos para o seu próprio trabalho. O poder pastoral certamente esteve lado a lado com determinadas justificativas teológicas ao longo dos séculos, embora também não sem dificuldades advindas de dentro da Igreja, especialmente em relação às formas de vida monásticas, que Agamben também deseja recuperar de maneira significativa em seu projeto Homo. A maneira como uma forma de vida é capaz de tornar inoperante esta maquinaria antropológica pastoralmente concebida – e assim manifestar outra forma de glória além do que vimos – é o que Agamben faz questão de destacar a fim de atingir algo como a vida para além da sua inscrição na lei e na representação política.

Estou menos convencido de que Agamben esteja tentando escapar permanentemente a esta inscrição na subjetividade do que tentando sujeitar as operações de poder a uma crítica que se encontra permanentemente fora do seu alcance. A conclusão de O uso de corpos, a meu ver, parece indicar tanto quanto a ideia paulina de que Cristo não veio para abolir a lei, mas para suspendê-la. Nesta obra, acredito que ele compartilha da ênfase de Jean-Yves Lacoste sobre as tensões e oscilações inerentes no mundo e na liturgia (que compartilha certas afinidades com a noção de Agamben da suspensão messiânica). A nota de conclusão de Lacoste em sua obra Experiência e absoluto, que afirma que nós devemos, em última instância, abraçar a pobreza de nossa existência (citando São Francisco de Assis ), se encaixa muito bem com os objetivos globais de uma potência destituinte de Agamben (que Alain Badiou denominou de busca da "pobreza ontológica"). Lacoste procura também pela maneira como a inexperiência litúrgica no coração de toda a vivência torna-a, em última análise, inoperante, mas que também nos permite revisitar o conhecimento através das lentes de uma experiência para além de todo o conhecimento e que, acredito, nos leva ao limite da experiência do sublime, como Kant propunha. Se conseguirmos observar como essa trajetória se desenrola, começamos então a compreender o papel do trabalho de Jean-Luc Marion e seu fenômeno saturado (derivado diretamente do sublime kantiano e do infinito cartesiano) ou de Jean-Luc Nancy e sua “kenologia”, centrada no estado kenótico da existência, na nossa compreensão do escopo do projeto de Agamben em relação à filosofia contemporânea.

IHU On-Line – Como podemos compreender a expressão “democracia gloriosa” que Agamben menciona no limiar do capítulo 7 de O reino e a glória?
Colby Dickinson – A “democracia gloriosa” de que Agamben fala aqui considera que a “oikonomia está totalmente resolvida na glória”, e, portanto, tem permeado todos os aspectos da vida social e política, o que ele critica como o verdadeiro objetivo da ação comunicativa ou da criação de unidade, mas que também parece caracterizar o fascismo, até certo ponto – o que Debord chamou de 'sociedade do espetáculo', como observa Agamben. É também, se é que se pode considerar assim, o ponto em que a liturgia e a vida social tornam-se indistinguíveis. Os sonhos utópicos de vários teólogos e capitalistas foram construídos sobre essas fundações também, devo acrescentar. Agamben chama a nossa atenção, no entanto, para a maneira como é preciso ir além da oikonomia e além da glória, a fim de pensar a política com novos olhos, de um lugar onde ela esteja suspensa, para que possamos retornar a ela novamente, mas de uma perspectiva totalmente nova. ■

Leia mais
- A estrutura da fé no pensamento continental contemporâneo. Entrevista especial com Colby Dickinson, publicado nas Notícias do Dia de 24-11-2013.

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