Edição 505 | 22 Mai 2017

O impensado como potência e a desativação das máquinas de poder

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Márcia Junges | Edição: João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

Para Rodrigo Karmy, razão neoliberal e projeto de apropriação do comum sequestram a democracia. Antes que o rei “nos deixe nus”, nós deveremos fazê-lo através da profanação

Giorgio Agamben é o pensador do impensado não como negatividade, mas como “a forma mais extrema de positividade na qual se desenvolve uma noção singular de potência que habita as sombras do ‘submundo’ da tradição”, reflete Rodrigo Karmy na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Poderíamos dizer que toda a arqueologia filosófica agambeniana consiste em desbloquear o impensado da máquina, abrir o campo do possível que toda máquina tenta conter. Aqui se encontra o que Agamben chama provisoriamente de a potência destituinte, que pode ser definida como um movimento de constituição e destituição, uma vez que possibilita múltiplos usos possíveis”. Nesse sentido, Paulo de Tarso se configura, para Agamben, como o “impensado da tradição cristã (e, especialmente, de sua máquina política e jurídica), cujo gesto permitirá revogar seu anticristo, deixando o rei nu”.

Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidade do Chile, onde leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Humanidades. É autor de Políticas de la interrupción. Ensayos sobre Giorgio Agamben (Santiago de Chile: Editorial Escaparate, 2011), Políticas de la excarnación. Para una genealogía teológica de la biopolítica (Buenos Aires: UNIPE: Editorial Universitaria, 2013) e Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporaneo (Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2016).

Karmy é conferencista no VI Colóquio Internacional IHU – Política, Economia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio Agamben, que ocorre nos dias 23 e 24 de maio de 2017.

A seguir publicamos um extrato da entrevista cuja íntegra pode ser conferida em Cadernos IHU ideias, no. 258. A edição estará disponível nesta página a partir da próxima 3ª feira, dia 23 de maio.

Eis o extrato da entrevista.

IHU On-Line – Quais são os pontos cruciais formulados por Agamben em sua crítica ao presente?
Rodrigo Karmy – Giorgio Agamben é um pensador do impensado. Esta seria a fórmula de leitura que proponho. Assim, na tradição filosófica estruturada sob a noção aristotélica do ato repousa, intacta, uma ontologia da potência. Nas múltiplas máquinas do poder e seus efeitos gloriosos, habita o trono vazio. Na violência extrema do estado de exceção, a possibilidade de sua própria revogação. Em toda a operosidade, existe uma inoperância que lhe excede e que, de certa forma, tem sido capturada. Como você pode perceber, Agamben é um pensador da imanência, pois não há necessidade de buscar em outro lugar as coisas que a própria tradição deixou como legado sem necessariamente saber. Poderíamos dizer que a tradição sempre possibilita prever uma herança que lhe ultrapassa, seu descanso impensado que está sempre por vir. Não se trata de um "já foi" que, eventualmente, tenha sido excedido (aufheben), mas um "nunca foi" que assume a dimensão radical de uma potência. Neste sentido, o impensado não é uma negatividade, mas a forma mais extrema de positividade na qual se desenvolve uma noção singular de potência que habita as sombras do "submundo" da tradição.

A fórmula que proponho, Agamben, o pensador do impensado, pode ser aclarada se nos remetermos à obra A Linguagem e a Morte. Um Seminário Sobre o Lugar da Negatividade que, de longe, funciona como uma espécie de livro-laboratório no qual, discutindo com Hegel e Heidegger (o pensador do "final" e do "princípio"), Agamben define as condições para pensar a Voz sem a negatividade que a tradição lhe atribuiu. Nesse sentido, a metafísica é, para Agamben, a tradição da negatividade, onde o logos se baseia apenas em função da sua própria suspensão, na aposta pelo que "já foi" de uma Voz que permanecerá como indizível. Neste contexto, o excursus 7 de tal livro é mais do que decisivo: nele, a questão da negatividade da Voz surge remetendo-a a uma figura antiga – o Homo sacer.

Esta vida inteiramente "desnuda" e posta à mercê do poder tem sido o reduto "negativo" no qual é fundada a ordem política e que, a partir da exceptio, permitirá capturar a imanência de uma práxis que, longe de qualquer "metafísica da vontade" (veja O homem sem conteúdo), definirá o que Agamben colocará em jogo em L’Uso Dei Corpi como uma verdadeira relação de uso.

Potência destituinte

No entanto, a problemática da Voz negativa terá um tratamento propriamente político na saga Homo sacer, cujo "ponto crucial" poderia, talvez, ser resumido com a seguinte fórmula: deixar o rei nu antes que ele desnude a nós. Com o termo "nu", refiro-me aqui a uma dupla acepção: por um lado, "deixar o rei nu" significaria ser capaz de exibir o "trono vazio", que lhe é constitutivo e sobre o qual o rei assenta toda a sua "máquina". Por outro, com a afirmação, "antes que ele desnude a nós", quero dizer que a operação fundamental de toda a "máquina governamental" não consistirá em nada além de produzir vida desnuda. Esta última é o que permanece na forma de uma exclusão e, por conseguinte, revela-se como um efeito da máquina e não um pressuposto "natural" como conceberia uma filosofia contratualista. Da mesma forma em que em A linguagem e a morte, Agamben mostra a maneira em que a Voz é incluída ao logos na forma de uma exclusão, assim também ocorre com a vida desnuda anunciada na figura do Homo sacer. Por isso, poderíamos dizer que toda a arqueologia filosófica agambeniana consiste em desbloquear o impensado da máquina, abrir o campo do possível que toda máquina tenta conter. Aqui se encontra o que Agamben chama provisoriamente de a potência destituinte, que pode ser definida como um movimento de constituição e destituição, uma vez que possibilita múltiplos usos possíveis.

Neste sentido, o gesto agambeniano da potência destituinte trabalha na direção oposta de como faz Tessalonicenses 2, 3, onde o Apóstolo Paulo anuncia a aparição do Anticristo ou o Filho da Perdição. Contrariando este texto, cuja leitura nutriu o horizonte teórico de Carl Schmitt , Agamben contrasta a problemática anticristã, aberta por Paulo com a Carta aos Romanos, onde o apóstolo insiste na figura do messias que renuncia ao poder na forma do "como não". Messias significa o gesto de revogação de toda máquina ou, de forma equivalente, a abertura de um vazio que deixa o rei nu e torna-o inteiramente inoperante (a fórmula paulina usada por Agamben é a de que o messias é o telos da Lei). Messias – da mesma forma que Jaques Lacan denominava a "mulher" – designa o "não-todo", frente à pretensão de totalidade característica da máquina, o "não-todo" concebido como uma singularidade. Paulo de Tarso será, para Agamben, o impensado da tradição cristã (e, especialmente, de sua máquina política e jurídica), cujo gesto permitirá revogar seu anticristo, deixando o rei nu.

É aqui onde a crítica agambeniana adquire sentido foucaulteano de "arquivo", desenvolvido no final de O que resta de Auschwitz (um texto que deve ser lido para além da problematização da figura do campo de concentração, atentando ao subtítulo "O arquivo e a testemunha", que faz alusão a uma teoria da subjetividade): a testemunha não se encaixa no arquivo, pois é literalmente o seu resto. Se o arquivo é precisamente o campo que se refere a tudo o que foi dito (e, portanto, ao âmbito do "ato"), a testemunha se torna "(...) um sistema de relações entre o que há dentro e fora da langue, entre o dizível e o indizível em todas as línguas (...)" (p. 151) com o qual a testemunha exibe o sujeito em um "trono vazio" que, ao contrário do arquivo, habita o terreno da possibilidade e da impossibilidade de dizer, na área da potência. O "sujeito" deixa de coincidir com a figura clássica herdada da metafísica soberana (o Eu penso) e passa a situar-se como um efeito da fratura in-fantil entre o "dentro e fora da langue". Com isso, Agamben deixa o rei nu (neste caso, "rei" é o "sujeito psíquico substancial" característico da metafísica ocidental), desbloqueando o impensado imanente à máquina.

IHU On-Line – A partir desse diagnóstico, qual é a contribuição de Agamben para pensarmos acerca dos limites da democracia e sua proximidade aos fascismos e, por consequência, de um “império” da biopolítica?
Rodrigo Karmy – Uma das contribuições mais decisivas desenvolvida pela reflexão agambeniana na saga Homo sacer é a insistência sobre o "ponto de conexão" entre as técnicas individualizantes e os dispositivos totalizantes, entre os dispositivos totalitários das democracias gerenciais e as formas de gestão dos regimes totalitários. No entanto, a contribuição agambeniana não é nova; nova é a maneira de abordá-lo: a sempre atual crítica da Escola de Frankfurt, com Adorno e Horkheimer , já haviam mostrado, em seu livro-chave Dialética do Esclarecimento, os limites da democracia liberal a partir da problematização da "iluminação". Esta última é vista como um mito cuja ressonância pulsa no interior de democracias liberais, conduzindo-as para a constituição de campos de concentração. Para Adorno e Horkheimer, tudo começa em Ulysses e termina em Auschwitz, um périplo mítico em que a "iluminação" assume uma dinâmica propriamente mortífera.

O trabalho agambeniano, de certa forma, revitaliza essa tese, mas em novos marcos de inteligibilidade definidos em dois ciclos problemáticos que atravessam a saga Homo sacer: um primeiro ciclo, o da soberania, onde o autor fundamental é Carl Schmitt e o dispositivo em questão é o estado de exceção, configura todo um primeiro ciclo da saga, onde a figura do Homo sacer aparece como um enigma arqueológico da Modernidade. Um segundo ciclo, o do governo, onde o autor principal é Michel Foucault (especialmente o Foucault das aulas no Collège de France de 1978, intituladas Segurança, Território, População), em que o dispositivo em questão será a glória, onde Agamben termina mostrando a dimensão litúrgica reproduzida nas democracias contemporâneas, entendidas como "democracias gloriosas". A soberania e o governo, o primeiro e o segundo ciclos, configuram um tipo de conjunto denominado tecnicamente de "máquina": um dispositivo bipolar em cujo centro habita um vazio (o que todo poder disputa é justamente a possibilidade de capturar o vazio).

IHU On-Line – Em que medida o neoliberalismo enquanto dispositivo aprofunda a financeirização da vida e o domínio da economia sobre os outros aspectos da vida?
Rodrigo Karmy – O neoliberalismo poderia ser pensado a partir do paradigma da oikonomia oferecida por Agamben. Embora o filósofo concentre seus esforços para rastrear sua genealogia no campo do Cristianismo helenístico, em Opus Dei ele estende esta análise ao Cristianismo latino, dando ênfase especial ao modo em que o "ofício" perturba a noção de "virtude" que sustentava toda a ética aristotélica, transformando-a em "dever". O núcleo desta pergunta não será tanto os conceitos teológicos problematizados em O reino e a glória quanto a posição do sacerdote e da liturgia, no qual o primeiro realiza a "obra de Deus". É claro que o interesse implícito de Agamben aqui é problematizar a burocracia moderna e, em particular, o fato de que o sacerdote opera na Igreja Católica da mesma maneira como o funcionário público é uma engrenagem a mais da máquina. Apenas neste horizonte é que adquire inteligibilidade o fenômeno descrito por Hannah Arendt sobre o extermínio operado por Eichmann durante o nacional-socialismo: a "banalidade do mal".

O funcionário realiza um "serviço", mobilizando uma máquina despersonalizada que carrega consigo o "mistério" de funcionar sozinha, de operar sem sujeito algum. É aí, na própria figura do ofício que o mistério (a força oculta de Deus) e o ministério (sua expressão administrativa) acabam convergindo. E é nas figuras de Kant e Kelsen que este paradigma encontrará sua consumação moderna: "A 'revolução copernicana' – escreve Agamben – operada em Kant, não consiste tanto em colocar no centro o sujeito ao invés do objeto – ainda que ambas as contribuições sejam inseparáveis – ou melhor, em haver substituído uma ontologia da substância com uma ontologia de comando". (Tradução nossa, p. 140). Duas coisas me parecem fundamentais. A primeira é que Agamben transmuta seu léxico: a partir da importância que a noção de "biopolítica" tenha recebido no primeiro ciclo, dedicado à soberania, no segundo ciclo, o termo inicialmente associado à estrutura excepcionalista de soberania é deslocado pela noção de "governamentalidade" (ou, se preferir, por oikonomia). Isto resulta em um terceiro deslocamento operado em Opus Dei, quando Agamben usa o conceito de "efetividade" e/ou "comando" para descrever a implementação latina da oikonomia.

Liturgia do capital

Esta é a graça do neoliberalismo: ao reivindicar a liberdade, "democratiza" as relações de exploração, não apenas no âmbito do "trabalho", mas em toda a vida. Hayek não é um liberal no sentido clássico: se este último ainda concebia uma noção de natureza humana, para Hayek o homem carece de toda a natureza, porque a "liberdade" é uma descoberta que a cultura ocidental havia feito. E, por esse motivo, apesar de todos os descentramentos incorporados por Hayek para fazer do neoliberalismo um discurso capaz de desafiar o historicismo marxista, a matriz da "filosofia da história" é indispensável. Uma "filosofia da história" que é acusada de ser uma das últimas (no entendimento de que sua teleologia é imanente em seus próprios processos e que, por isso mesmo, está muito mais dessubstancializada que as filosofias da história do século XIX) e que, por essa razão, apresenta-se como uma defesa do "Ocidente", já que teria sido esta "cultura" a que teria descoberto a "liberdade".

Para Hayek, o marxismo e o nacional-socialismo conduziram o Ocidente ao seu declínio precisamente porque fizeram com que se esquecesse de sua essência libertária. E a "filosofia da liberdade" opera como um Cristianismo para o povo que vem para lembrar o Ocidente de sua verdadeira "alma". Como uma "filosofia da liberdade", o neoliberalismo é apresentado como a filosofia definitiva da história, orientada para salvar a "alma" (a "liberdade") da prisão do "corpo" (o Estado) a que tanto o marxismo quanto o nacional-socialismo submeteram o Ocidente. E o termo "êxito" funcionará como o operador que confirma a salvação ou não de tal "alma". Se for bem-sucedida, a alma será salva, senão, será condenada (a sentença dependerá exclusivamente do "êxito" obtido pelo indivíduo, e jamais da sociedade ou do Estado).

Por esta razão, as formas de endividamento (que Agamben meramente anuncia em sua arqueologia do ofício, mas que a filósofa Elettra Stimilli desenvolveu com maior contundência em Il debito del vivente. Ascesi e capitalismo e em seu outro livro, Debito e colpa) dependerão e serão direcionadas exclusivamente para cada indivíduo. Enquanto o empreendedorismo for um "dever", o indivíduo deverá sempre empreender para endividar-se, uma vez que a dívida não será uma anomalia do sistema, mas a maneira como a liturgia do capital se consuma, como o empreendimento pode ter lugar.

Como filosofia da história (ou, como discutido por Sergio Villalobos-Ruminott , enquanto "filosofia da história do capital"), a "filosofia da liberdade" pretende libertar a alma do Ocidente (a economia) do corpo (o Estado). Portanto, o neoliberalismo, em sua matriz neokantiana, leva o "ofício" da liturgia característica do Cristianismo latino à sua consumação. E, justamente nesta última "filosofia da história do capital", presenciamos uma revisão da noção de "vanguarda". Como já disse em outros lugares, se o marxismo situava o proletariado como sua vanguarda histórica, o neoliberalismo o substitui pelos "empresários". Estes deveriam guiar toda a sociedade para uma "criatividade" governamentalizada e, portanto, para Hayek é legítimo que os ricos dominem a sociedade, uma vez que são eles que fornecem a sua inventividade, o seu empreendedorismo, a sua "criatividade".

O neoliberalismo é uma espécie de "aristocratismo econômico", porque configura a sociedade em um regime meritocrático, mas que, ao contrário da "virtude" grega que tinha uma dimensão ético-política, Hayek situa o mérito como um "dever" de cunho exclusivamente econômico-administrativo. Sobre isto, seria interessante assistir à série brasileira "3%", onde o "mérito" constitui o pilar de um novo aristocratismo que depende exclusivamente das habilidades e inventividades dos candidatos que procuram o "sucesso" (essa salvação intramundana) para ir viver no "Outro Lado" (o lugar em que vivem os superiores em habilidades de empreendimento individual).

IHU On-Line – Qual é o peso do “operador cristão” em nossa política moderna? O Estado laico é uma utopia?
Rodrigo Karmy – Estamos diante de um dos conceitos mais importantes da história moderna: a "secularização". Em sua arqueologia de conceito intitulada La querella de la secularización, Jean-Claude Monod nos mostra como esse termo surge no direito canônico para designar a expropriação das propriedades eclesiásticas e o modo em que tal entidade jurídica adquiriu um forte senso na Modernidade, tornando-se uma verdadeira "filosofia da história".

Portanto, haveria dois modelos de secularização: o modelo francês, que estabelece uma descontinuidade radical entre o mundo religioso e o mundo moderno, situando a Revolução como o seu acontecimento-chave, e o modelo alemão, que estabelece uma identidade e uma diferença entre o mundo religioso e o mundo moderno, situando a Reforma Protestante como seu principal evento. Mas o que é mais relevante no trabalho de Monod é a importância de ter entendido que "secularização" é um termo de forte cunho jurídico e econômico.

Sendo assim, há que se perguntar sobre o lugar que teve – e continua tendo – o termo "secularização" nas pesquisas contemporâneas. Muitas vezes penso que "secularização" é um termo que funciona exatamente como o aufhebung hegeliano (no caso de não serem idênticos, ao menos se a "secularização" na versão alemã não funcionar de outra maneira que em aufhebung) e que, de certo modo, é utilizado como um coringa nos jogos de cartas, pois pode assumir qualquer valor, possibilitando que o jogo prossiga. Funciona como uma espécie de "anjo" que permite o translado entre um lugar e outro, entre um mundo e outro. E, como tal, esse anjo abre espaço para deslocamento, mas ao preço de ficar totalmente na sombra. Geralmente refletimos sobre o que é "secularizado", mas não necessariamente sobre o termo "secularização" em si. Acredito ser absolutamente fundamental iniciar uma reflexão como a de Monod, mas a partir de outro lugar: O capitalismo como religião, de Walter Benjamin.

Neste trabalho, de cunho fragmentário e, portanto, que sempre tem algo por vir, Benjamin não apenas levanta a tese central de que "o capitalismo é uma religião", mas que esta implica uma discussão aprofundada com Max Weber (ou melhor, com uma certa linha weberiana), que projetou uma forma de "secularização" arraigada no fenômeno do "desencantamento do mundo". Ao contrário da tese de Weber, de acordo com a qual o capitalismo obedeceria a um certo "espírito protestante", para Benjamin, o capitalismo não constitui uma ordem religiosa "secularizada", mas ele próprio forma uma nova religião.

Talvez a advertência benjaminiana seja medida pela possibilidade de que insistir no trabalho sob a noção de "secularização" signifique, cada vez mais, sermos prisioneiros da oikonomia e suas máquinas. Se "secularização" é um termo oikonômico, talvez seja melhor ir além e tratar o capitalismo não como religião "secularizada", mas como uma nova religião, diferente das antecessoras. Neste registro, trabalhar sob o paradigma da secularização significa manter as prerrogativas de uma "filosofia da história do capital" que permanece intacta. "Secularização", "filosofia da história" e oikonomia seriam o próprio dispositivo, a mesma Gestell desenvolvida planetariamente.

Religiões inversas

Pensar o capitalismo como religião vai além das duas formas que assumiram o paradigma da secularização. Por um lado, o modelo francês amplia uma descontinuidade entre o mundo religioso e o mundo secular. Por outro, o modelo alemão debate uma relativa continuidade (como identidade e diferença) entre o mundo religioso e o mundo secular. Pensar o capitalismo como religião implica debater a descontinuidade entre duas formas de religião – de uma religião "monoteísta", de corte clássico, a uma religião "pagã", de caráter moderno, se quisermos.

A primeira encontra seu equivalente geral na figura de Deus. A segunda, encontra seu Deus no equivalente geral. A primeira viu nascer a segunda, mas acabou sendo devorada pela mesma. Pensar o capitalismo como religião permite dividir o nexo oikonômico que a noção de "secularização" (seja em versão francesa ou alemã) carrega consigo e fazer um questionamento radical sobre o capitalismo. No entanto, também devemos ser prudentes, pois no mesmo ano (1921) em que o próprio Benjamin escreve O capitalismo como religião, é publicado Para uma crítica da violência, onde o termo central para a investigação da ligação entre violência e direito é o do "mito" e não mais o da "religião". A que se deve esse deslocamento lexical entre o termo "religião" e a opção pelo uso de "mito"? Será que o motor de tal deslocamento poderia ter sido o espectro de Carl Schmitt?

Em todo o caso, talvez, a exigência de nosso tempo seja ensaiar um pensamento radical em torno da questão religiosa que dispense o paradigma oikonômico da "secularização", no qual uma possível entrada seja a aposta benjaminiana, por compreender o capitalismo não como uma religião secularizada, mas como outra religião, diferente das anteriores. O capitalismo pode ser visto como religião por sacralizar tudo o que toca de uma nova forma – a mercadoria. Mas se toda coisa, planta, animal ou ser humano pode tornar-se mercadoria – e, de fato, é, atualmente –, é porque o dispositivo de sacralização da vida emancipou-se das formas clássicas em que as religiões anteriores situavam-no. A exploração sistemática do trabalho e o constitutivo consumo constituirão parte de um enorme ritual desta nova religião que, como bem indicado por Benjamin, carece de redenção, produzindo uma dívida tão infinita quanto a circulação de capital.

ISIS, vanguarda do capitalismo

Seguindo esta via absolutamente questionável, atrevo-me a pensar que o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, como três grandes religiões, viram o nascimento do capitalismo, que, finalmente, terminou por incorporá-las sob a sua égide mercantil. As religiões clássicas que o viram crescer a partir de suas próprias entranhas converteram-se em "parasitas" da nova religião capitalista. "Parasita" porque tais religiões foram esvaziadas de suas formas clássicas e ressacralizadas em uma nova forma de mercadoria.

O resultado foi uma mutação interna das grandes religiões em diferentes formas, tais como o protestantismo, o jesuitismo e outras formas modernizadoras, assim como os diferentes tipos de sionismo, no Judaísmo, ou o wahabismo saudita, no Islamismo. Pensar essas transformações como mutações modernizadoras e não simplesmente como "resquícios medievais" implica atentar-se ao modo como essas formas religiosas foram articuladas como vanguardas capitalistas. Este é o caso dos diferentes protestantismos que nasceram em meio a conflitos políticos da Europa do século XIV, os conflitos políticos dos Emirados Árabes sob a égide do Império Turco-Otomano que deu origem ao wahabismo, durante o século XVIII, ou as formas de articulação do projeto sionista de Theodor Herzl , no final do século XIX.

Por isso sempre digo que o verdadeiro Deus do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) é o dinheiro, e não Alá, pois se eles fossem fiéis a Alá como nos tempos medievais, não lhes interessaria nem a extração do petróleo, nem sua distribuição regional (em meu recente livro Escritos Bárbaros, lançado no Chile, sustento a hipótese de que ISIS é a "vanguarda do capitalismo" e não o seu atraso "medieval") .

O que é ISIS senão uma performance hollywoodiana? O mesmo vale para os Opus Dei, que desde os anos 80 ampliaram seu império corporativo-financeiro na América Latina graças às prerrogativas concedidas por Wojtyla. Em razão disso, sempre digo que os sauditas e as suas intenções hegemônicas regionais, os sionistas e seu projeto de colonização da Palestina, assim como os novos movimentos cristãos (os Opus Dei ou os Legionários) referem-se à mesma égide modernizadora de corte imperialista, uma vez que são efeito da mutação sofrida pelas religiões monoteístas anteriores, no novo horizonte de inteligibilidade aberto pelo capitalismo.

Pensar o capitalismo como religião permite abordar os processos de subjetivação implicados nesta nova religião, cujas ações aparecem como abertamente "irracionais", mas que só podem ser entendidas a partir do elemento "religioso" presente na imanência das práticas que subjetivam os corpos neoliberais sob a forma de empresa (como Guadalupe Santa Cruz disse, brincando com o significante "empresa": no neoliberalismo, os homens tornam-se "em-presas" – presos por um poder – e "empresas" – organizações capitalistas). Tomemos uma cena que para todos é cotidiana: por que alguém que ganha um monte de dinheiro quer ganhar mais? Justamente porque ganhar dinheiro é parte da nova forma de subjetividade de natureza litúrgica, a produção gloriosa das formas rituais características da nova religião.

Sacralização de Deus e do Capital

A mutação da oikonomia cristã na religião capitalista foi um processo interno que teve um de seus pontos de emergência no que denomino "imperialidade" ocidental ou "razão imperial", que pode ser definida pelo discurso que estabelece a "ordem das coisas" e que, como tal, pressupõe uma forma antropológica singular – o homem é considerado "sujeito" e agente do pensar cuja consolidação se inicia a partir do debate contra-averroísta proposto durante o século XIII pela Igreja Católica contra os filósofos.

Nesta perspectiva, Dante Alighieri e Tomás de Aquino configuram-se, ao meu ver, em duas linhas de força que começam a lutar no Ocidente latino nascente. Por um lado, há o caminho "averroísta" representado por Dante, que traria a aposta de uma potência de pensamento identificada à "espécie" cristalizada em uma "monarquia temporal" (que Dante tenta emancipar da Igreja e retroceder a essa "época mais feliz", própria de Saturno, indicada em De Monarquia), capaz de proporcionar felicidade aos homens na Terra. Por outro, há o caminho "tomista" que traria uma individualização da potência de pensamento, que em Averróis jazia separada na forma de unidade pessoal cujo modelo político implica uma "monarquia" estritamente pastoral, que garante a liberdade de um homem que só poderia ser feliz na vida após a morte.

Essa tensão entre essas duas linhas de força é fundamental, porque uma expande o campo para uma vida de seção iluminada (onde o intelecto seria uma substância impessoal), cuja agonia será sentida por Spinoza e Marx , e a outra constitui uma vida de seção eclesial capturada ainda pelo dispositivo sacrificial. Esta última, ao que me parece, terminará triunfando, embora a primeira se mantenha clandestina, sempre à espreita dos teólogos e sua oikonomia pastoral. Assim, teríamos exatamente um projeto não pastoral derivado da linha "averroísta" (que permite ser antecipada a partir dos textos políticos de Al Farabi) cuja aposta envolve a articulação de uma política da felicidade, a partir da qual se entende o que conhecemos como República. Mas penso que este projeto foi permanentemente neutralizado pela linha "tomista", que impulsionou a oikonomia pastoral em diferentes momentos da "imperialidade".

Seu primeiro momento – se acaso houve algo como um "primeiro momento" – teria sido o surgimento do imperialismo hispano-português, durante o século XV, e a consequente conquista da América e da África. Esta fase da religião capitalista teve a "evangelização" como dispositivo de glorificação. O segundo momento é a notoriedade imperial ocupada pelo eixo franco-britânico que teve como forma de glorificação a "civilização" (a missão civilizatória). O terceiro e último momento seria o de uma nova relevância apropriada pelo eixo estadunidense-atlântico, cujo modo de glorificação constituirá o discurso da "democratização", que atualmente gerou uma crise duradoura por ter se realizado como modelo desde a queda do muro de Berlim, no final dos anos 80. A trama de evangelização-civilização configura-se no périplo da oikonomia e sua matriz pastoral, que acabou por consumar e transformar internamente o "Cristianismo" em "capitalismo". Insisto: não há relação aqui com a transição de um mundo religioso para outro secular, mas a passagem de uma forma de sacralização para outra, de um modo de sacralização centrado na ideia de Deus para outro modo de sacralização centrado na ideia de Capital.

O "Tomismo" hegemonizou o "Averroísmo" e não o reprimiu de tudo: este sempre manifestou-se da maneira que Freud chamaria de uma formação de compromisso, ou seja, fez circular seus velhos conceitos para reunir novas lógicas pastorais. É o que acontece com a democracia hoje, que constitui o termo imperial por excelência, pois acabou sendo capturado pela nova égide corporativo-financeira. O pastorado usa um termo republicano, esvaziando-o inteiramente de sua força política e transformando a aposta do que Hannah Arendt chamou de felicidade pública em uma verdadeira religião do gozo. Se o dispositivo de sacrifício operava a partir da "renúncia", o gozo aparece como o outro lado do mesmo dispositivo de sacrifício (sua manutenção como poder promotor, desenvolvedor, gozador, profundo, biopolítico) que agora torna-se o "mandato" central da religião capitalista.

Cosmopolitismo pós-estatal

Neste sentido, um Estado "laico" não é suficiente se por "laico" entendermos a conservação das formas pastorais sob uma perspectiva não confessional. A chave disto passa por pensar em uma vida comum emancipada do dispositivo sagrado que, como tal, permita pensar no que posso chamar de um cosmopolitismo pós-estatal. Parece-me que apenas uma restituição do "Averroísmo", no que diz respeito ao que este contenha de felicidade pública e de vida comum não sacralizada, pode ampliar um cosmopolitismo pós-estatal que impugne a globalização do capital. E isto não é uma "utopia", se por este termo entendermos como algo "ideal", inatingível. Pelo contrário, tal cosmopolitismo já vive em nossas ruas, nos milhares de movimentos populares que têm assolado o presente em diferentes latitudes, tal como Marx indicava acerca do "comunismo" – que este era um "movimento real" e, portanto, "utópico" no sentido de que reside em um não-lugar, pois acontece de maneira inoportuna.

O cosmopolitismo pós-estatal não descarta nem o Estado nem a democracia, mas os excede apropriando-se deles em uma experiência de felicidade pública, tal como certa vez Al Farabi concebeu a experiência política e deixou o legado ao Ocidente latino através do "Averroísmo". O cosmopolitismo indica a experiência em que a vida torna-se outra, de onde não é cabível "origem", "autenticidade" ou "identitarismo" algum. Cosmopolitismo designa um lugar de mescla, o ponto em que um corpo se deixa tocar por outros corpos e onde cada língua foge de si mesma, deixando-se transpassar por outros léxicos, sintagmas e formas. Cosmopolitismo designa uma vida comum que, como tal, será absolutamente impessoal e inapropriável pela língua, poder ou identidade alguma. Como proposto por Hamid Dabashi, cujo trabalho tem sido essencial para mim, "cosmopolitismo" é o tornar-se ethos de todo o etnos, uma experiência do habitar, em sentido estrito . Se preferirmos, esta seria a minha versão do que poderíamos chamar de comunismo (ao contrário de Zizek que, em seu último livro, sugere o comunismo como uma experiência puramente "europeia". Na minha perspectiva, ou o comunismo se identifica com um cosmopolitismo pós-estado ou não é nada).

Como tal, o cosmopolitismo desativa o dispositivo sacrificial do globalismo e traz para o presente a felicidade pública como experiência fundamental da política. Tal felicidade foi anunciada pelas múltiplas revoltas populares que eclodiram do Cairo a Wall Street, da Tunísia ao Brasil. Revoltas que estimulam o fluxo de imaginação política na qual podemos nos reinventar. A revolução não alterou o regime, mas mudou o povo, dizia um célebre grafite nas paredes do Cairo.■

Leia mais

- O fascismo vive em nós através do dispositivo do neoliberalismo. Entrevista com Rodrigo Karmy, edição 490 da Revista IHU On-Line, de 08-08-2016. 

- A democracia gerencial em crise e a potência anárquica do poder destituinte. Entrevista com Rodrigo Karmy, edição 468 da Revista IHU On-Line, de 29-09-2015. 

- Agamben leitor de Averroes e as condições de uma “política da inoperosidade”. Entrevista com Rodrigo Karmy, edição 430 da Revista IHU On-Line, de 21-10-2013.

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