Edição 504 | 08 Mai 2017

O incisivo, persuasivo e afetivo Pasolini das páginas dos jornais

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos

Cláudia Alves estuda a produção jornalística do escritor italiano que, segundo ela, numa época de ebulição política e cultural leva o debate intelectual ao cidadão comum

A faceta cineasta de Pier Paolo Pasolini é reconhecida e celebrada por muitos, enquanto seu lado poeta é enaltecido por outros. Entretanto, pouco ainda se ouve sobre o articulista, que manifestava suas ideias nas páginas da imprensa italiana. Olhar para essa perspectiva do pensador é o objetivo da pesquisadora Cláudia Tavares Alves. Para ela, é importante analisar esses textos, pois “as ideias que circulam em seus escritos jornalísticos se encontram com suas produções em vários momentos de sua obra, porque Pasolini é sempre poeta, é sempre articulista, é sempre cineasta”. “O grande mérito do escritor italiano foi conseguir se comunicar com os cidadãos de uma forma muito mais incisiva, persuasiva, e também afetiva em certa medida”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Cláudia recorda que Pasolini pertence a uma geração de pensadores extremante engajados politicamente, mas também muito preocupados em levar a discussão do momento político italiano para as ruas. “Foram pessoas que viram e viveram o fascismo, a segunda guerra mundial e a Itália do pós-guerra, e nessas circunstâncias se envolveram profundamente com essas questões”, explica. A postura polêmica de Pasolini, expressa em seus textos, geraram muitas respostas de leitores, criando redes de interações e fazendo com que o escritor assumisse “o papel de alguém disposto a denunciar de maneira enfática e polêmica as mudanças sociais e culturais que estavam ocorrendo na Itália naquele período”.

Cláudia Tavares Alves se dedica à pesquisa sobre Pasolini desde 2007, quando ainda cursava Estudos Literários pela Universidade de Campinas - Unicamp. Durante seu mestrado, pesquisou o ensaísmo corsário no livro Scritti corsari, período que fez estágio de pesquisa em Bolonha, na Itália. Em 2016, ingressou no doutorado de Teoria e História Literária pela Unicamp, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp para o projeto de pesquisa sobre o jornalismo italiano dos anos 1970 e a importância que Pasolini assumiu nesse contexto. Entre seus artigos publicados, destacamos Diálogos com o caos: a produção jornalística de Pasolini nos anos 1960 (Revista Darandina, v.9, 2016), Pasolini ensaísta: um estranho numa terra hostil (Revista Letras Escreve, v. 6, 2016) e O jornalismo corsário de Pier Paolo Pasolini nos anos 1970 (Revista Passagens, v. 7, 2016 – esse volume foi especial sobre Pasolini).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como era o jornalismo italiano nos anos 1970? E como os textos de Pier Paolo Pasolini se inserem nesse contexto?

Cláudia Tavares Alves – Pasolini foi de uma geração de escritores bastante engajada politicamente, isto é, de escritores que, para além de seus trabalhos literários, estavam preocupados em discutir o momento político italiano. Foram pessoas que viram e viveram o fascismo, a segunda guerra mundial e a Itália do pós-guerra, e nessas circunstâncias se envolveram profundamente com essas questões políticas e sociais.

Esse engajamento criou uma espécie de atmosfera intelectual em que era comum haver um intenso debate de ideias entre eles. Os jornais italianos, tanto os especializados quanto os de grande circulação, funcionavam como um meio para que esse debate acontecesse. Para se ter uma ideia, em 1972, Pasolini foi convidado para manter uma coluna fixa em um dos maiores jornais italianos, o Corriere della Sera. Ele já era um escritor marxista muito conhecido na Itália e, naquele momento, acreditaram que ele poderia contribuir com um jornal tradicionalmente visto como de direita.

Assim como ele, outros tantos escritores mantiveram colunas ou contribuíram esporadicamente em diversos periódicos desse tipo, de forma que essa dinâmica estabeleceu diálogos essenciais para se pensar a sociedade italiana. Entre os grandes escritores da época, podemos pensar em Elsa Morante , Italo Calvino , Natalia Ginzburg , Alberto Moravia , entre outros. Todos tiveram passagens importantes pelo jornalismo italiano. Nesse meio, Pasolini se destacou como um dos mais polêmicos, por isso era comum que seus textos gerassem uma série de respostas escritas por outros escritores, publicadas em outros jornais. Ou seja, havia uma teia constante de circulação de ideias, em que Pasolini acabou por assumir o papel de alguém disposto a denunciar de maneira enfática e polêmica as mudanças sociais e culturais que estavam ocorrendo na Itália naquele período.

IHU On-Line – Que rupturas e continuidades há entre as produções jornalísticas de Pasolini da década de 1960 e 1970?

Cláudia Tavares Alves – Enquanto escritor, Pasolini esteve envolvido desde muito cedo com publicações em jornais. Nos anos 1960, esse trabalho se tornou um pouco mais esquematizado e constante. Nos periódicos Vie Nuove e Tempo, manteve as colunas “Diálogos com Pasolini” e “O Caos”, nas quais suas análises políticas começaram a ganhar mais corpo e notoriedade. Quando, no início dos anos 1970, recebe o convite para escrever para o grande Corriere della Sera, Pasolini passa a falar com um público cada vez mais amplo e diversificado, logo suas estratégias discursivas também se adaptam a essas circunstâncias. Fica cada vez mais polêmico em seus escritos, fazendo denúncias, apontando nomes e situações políticas que o colocam em destaque.

É também nesse período que alguns de seus conceitos mais conhecidos se consolidam, como a ideia de “mutação antropológica” e o “novo fascismo”, e tais ideias são repetidas à exaustão a cada oportunidade. Sem dúvida, há uma linha progressiva de ideias entre esses dois momentos de sua produção jornalística, mas de um ponto de vista discursivo e literário, suas escolhas posteriores demonstram uma necessidade quase visceral de se colocar como um intelectual disposto ao que fosse preciso para manifestar sua indignação.

IHU On-Line – O que representam esses textos de Pasolini publicados em jornais no contexto de sua obra? Quais as conexões possíveis entre o cineasta, o poeta e o articulista?

Cláudia Tavares Alves – É sempre difícil lidar com essa noção de várias faces em Pasolini. Foi um grande poeta, e na Itália é muito reconhecido por isso. No Brasil, chegou como cineasta e grande parte de seu reconhecimento por aqui se deve à sua produção cinematográfica. Atualmente, é visto mundialmente como um grande intelectual que publicou críticas violentas em jornais e polemizou sempre que possível. Ou seja, estamos falando de uma única pessoa que produziu muito e que procurou sempre se reinventar para encontrar novas formas de se expressar.

Sendo assim, as ideias que circulam em seus escritos jornalísticos se encontram com suas produções em vários momentos de sua obra, porque Pasolini é sempre poeta, é sempre articulista, é sempre cineasta. Quando escreveu o primeiro texto de jornal de que se tem notícia, publicado em 1942, Pasolini já escrevia poesia. E assim todas as suas produções foram se entrelaçando, tratando das mesmas temáticas, interessando-se em compreender a realidade que tanto o intrigava. A dificuldade existe então por tentarmos fragmentar esse escritor que foi sempre um só. Por isso, é comum entre a crítica pasoliniana falar do caráter poético de seus ensaios ou da perspectiva ensaística de seus filmes. Estamos sempre falando de um único homem cheio de ideias e de sensibilidade o bastante para expressá-las das mais variadas maneiras.

IHU On-Line – Como você analisa a crítica política e social feita por Pasolini nas páginas dos jornais? As temáticas abordadas por ele se mantêm atuais? De que forma?

Cláudia Tavares Alves – O fenômeno da “mutação antropológica” conceituado por Pasolini surge a partir de uma percepção muito apurada do escritor de que a sociedade italiana apresentava sinais de mudanças sociais, sobretudo no comportamento dos jovens. Segundo Pasolini, o modelo capitalista ganhara força na Itália após o fim da segunda guerra mundial e a segunda revolução industrial, que teria ocorrido tardiamente ali. Mas era um modelo feroz, cruel, que contaminava toda a população com a ideia de consumismo desmedido, a ponto de todos se tornarem mercadorias, segundo seu ponto de vista. Ainda como consequência, ele enxergou o crescimento de alguns setores, como a mídia e as escolas, na manipulação da opinião pública, de maneira que toda a sociedade passou a responder a um mesmo tipo de comportamento burguês. Os cidadãos que fugissem desse padrão seriam no máximo tolerados pelo sistema, mas sempre segundo uma falsa ideia de tolerância e liberdade.

Esses são temas recorrentes na sociologia, e por isso muitos outros autores chegaram às mesmas conclusões que Pasolini, mas acredito que o grande mérito do escritor italiano foi conseguir se comunicar com os cidadãos de uma forma muito mais incisiva, persuasiva, e também afetiva em certa medida. O que quero dizer com isso é que é relativamente fácil encontrar comparações entre nossos tempos atuais e as críticas elaboradas por Pasolini e por tantos outros intelectuais. Continuamos a viver em um mundo onde a lógica capitalista dá o tom das nossas relações econômicas, políticas e sociais, e o consumismo é ainda o padrão de comportamento que influencia, de alguma maneira, qualquer indivíduo inserido nesse sistema como um ser social. Seja na sociedade italiana, seja na sociedade brasileira, esses estímulos estão ainda muito presentes e acho que é difícil fugir do “mal burguês” denunciado por Pasolini.

Porém, por outro lado, é inegável que existam iniciativas interessantes hoje em dia que buscam questionar esse modelo de vida. Me parece um movimento natural, possível de existir justamente porque as análises de tipo pasolinianas estão mais consolidadas com o passar do tempo. Digo, não há mais dúvidas de que a ideia de produção desmedida de bens de consumo não vai dar certo, por exemplo. Décadas se passaram, há mais gente atenta às catástrofes iminentes, então é natural que o próprio ser humano encontre estratégias de sobrevivência.

IHU On-Line – Por ocasião de sua pesquisa de mestrado, você esteve na Universidade de Bolonha, em contato com todo acervo de Pasolini, além de ter acesso à bibliografia e a críticas sobre sua obra. O que o contato com esses materiais revelou sobre a figura de Pasolini?

Cláudia Tavares Alves – Como mencionei, Pasolini chegou ao Brasil como cineasta e aqui é conhecido pelo grande público como diretor de cinema. É muito comum eu contar a alguma pessoa que estudo o jornalismo de Pasolini e ela reagir dizendo que não sabia que o Pasolini do cinema foi também escritor. Quando comecei minha pesquisa, lá em 2007, eu também só conhecia o Pasolini do cinema e foi aos poucos que o resto de sua obra foi aparecendo para mim. Com o mestrado e a ida à Itália, essa primeira impressão se desfez completamente, e foi surpreendente, e emocionante ao mesmo tempo, perceber que, na Itália, Pasolini é uma figura conhecida e adorada por muitos italianos. Seus livros de poesia estão expostos nas vitrines de várias livrarias, seu rosto está grafitado nas paredes, há diversos eventos e exibições sobre ele... enfim, eu estava inserida em um ambiente em que o escritor era amplamente conhecido.

O contato com seu acervo foi mediado então por essa minha experiência. Encontrei diversas dissertações e teses sobre o escritor, não faltaram materiais bibliográficos e recortes de jornais e revistas sobre o assunto que eu estava pesquisando, e com cada pessoa que eu conversava, Pasolini assumia uma importância única, como se todo mundo tivesse uma história para contar sobre um filme, um poema, um texto. Essa sensação se tornou ainda mais forte quando pude visitar a cidadezinha em que sua mãe nasceu, Casarsa della Delizia, onde o escritor passou alguns anos de sua vida. Naquele lugar, Pasolini estava em tudo. Então posso dizer que cheguei à Universidade de Bolonha como uma pesquisadora focada nos objetivos da pesquisa, mas saí muito emocionada por perceber que, na Itália, Pasolini é o intelectual que se comunicou, que se conectou ao seu país, e esse vínculo resiste até hoje.

IHU On-Line – Qual era a percepção de Pasolini sobre o dito terceiro mundo?

Cláudia Tavares Alves – Apesar de esse conceito de terceiro mundo já não fazer mais muito sentido para nós, naquele momento se referia aos países subdesenvolvidos, que passaram pelo processo de descolonização tardiamente e que, por isso, possuíam e possuem até hoje problemas significativos de desenvolvimento econômico e, consequentemente, de desenvolvimento humano. Porém, aos olhos de Pasolini, eram justamente esses os países menos contaminados pela lógica burguesa, que já dominava a Itália.

Seu interesse por esses países se justifica então pela possibilidade de encontrar ali resquícios de sociedades ligadas a tradições culturais e religiosas que ainda não foram totalmente usurpadas pelas práticas do capitalismo e do consumismo. É daí que surgem as locações cinematográficas em países asiáticos e africanos, e o olhar sempre atento aos países latino-americanos. Para Pasolini, esses locais eram ainda redutos de práticas sociais que já estavam soterradas pelo capitalismo na Itália. Ele chegou até a esquematizar o roteiro de um possível filme sobre esse terceiro mundo, interessado em explorar a África, a Ásia e a América Latina, mas infelizmente não teve tempo de realizar devido à sua morte prematura.

IHU On-Line – Como pensar a crítica social de Pasolini hoje, em uma Europa dividida e inábil para lidar com questões como imigrações, em um mundo em que a recusa do outro e o não diálogo parecem ser constantes?

Cláudia Tavares Alves – Esse exercício de pensar as críticas de Pasolini no mundo de hoje tem sido bastante recorrente entre aqueles interessados em sua obra. É interessante porque, de um lado, os pensamentos deixados por ele estavam relacionados a um lugar e a um tempo específicos, isto é, à Itália do pós-guerra. Por outro lado, os movimentos que ele reconheceu naquela sociedade durante aquele período são fenômenos característicos de todos os países que passaram pela industrialização tardia e, de maneira mais ampla, que se modificaram à medida que o sistema capitalista se consolidava.

Pensar Pasolini hoje é sempre arriscado de um ponto de vista, mas bastante lógico de outro. Não posso afirmar que, enquanto intelectual interessado em compreender a sociedade italiana, Pasolini chegou a pensar a questão da imigração, por exemplo. Apesar dos movimentos migratórios existirem desde sempre, ele parecia mais interessado em pensar as fronteiras existentes dentro da própria Itália e em como elas se diluíam e se tornavam invisíveis conforme a lógica do consumo igualava a todos. Nesse sentido, uma crítica que sempre fazia era em relação aos jovens do sul e do norte. Na Itália, essa divisão é bem marcada e está relacionada à região norte, mais desenvolvida e industrializada, e à região sul, mais rural e menos rica. Até certo ponto, suas diferenças econômicas eram determinantes também para as distinguirem culturalmente, a ponto de terem dialetos e costumes muito diferentes entre si.

Pasolini denuncia justamente o momento em que essa diversidade começa a desaparecer e todos os jovens se tornam iguais por vestirem as mesmas roupas, se interessarem pelas mesmas coisas, falarem a mesma língua. Acredito então que, no limite – e excluindo os casos das migrações ocasionadas por guerras ou por regimes ditatoriais, pois envolvem questões humanitárias indiscutíveis –, o intelectual identificaria nas sociedades de hoje um movimento em busca à estabilidade econômica, mas também às consequências sociais que essa busca poderia gerar: tradições populares cada vez mais ausentes e com as particularidades de cada povo cada vez mais em vias de desaparecer. Só que, para o escritor, essa ideia de defender a tradição estaria distante dos argumentos conservadores, justificando-a pela via contrária, que seria a padronização total, a eliminação completa do que diferencia uma cultura da outra.

É um posicionamento forte, muito retórico, quase ambíguo e que, por vezes, foi mal interpretado, mas para Pasolini parecia não haver outro caminho para combater a homogeneização causada pelo capitalismo se não o de defender um tempo anterior à sua implementação. Seria, portanto, catastrófico pensar que o mundo caminha para uma unificação baseada em valores capitalistas e em bens de consumo. Pasolini diria que “quando o mundo clássico estiver exaurido, quando todos os camponeses e artesãos estiverem mortos, quando a indústria tiver tornado o ciclo de produção incontrolável, daí então nossa história estará acabada”. Com certeza caminhamos rumo ao fim de uma história, mas seguimos com esperança, para ver qual começará a partir de então.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição