Edição 504 | 08 Mai 2017

A tolerância geradora de guetos

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João Vitor Santos

Davi Pessoa analisa Pasolini, a partir das entrevistas concedidas por ele, como artista problematiza a ideia do “diferente”

São muitos os que destacam a dificuldade de enquadrar Pasolini em apenas uma perspectiva. “Gosto muito de pensar seu percurso a partir de limiares, já que é um pensador múltiplo. Pasolini põe em movimento zonas transversais, oblíquas, com o intuito de confrontar os saberes instituídos dentro de espaços limitados”, pontua o professor e tradutor Davi Pessoa. Observando o pensamento do artista italiano, destaca sua atenção para pensar “o diferente”, que em Pasolini é o criminoso, homossexual, pobre ou meridional, a vítima em potencial do linchamento social. “Nesse sentido, o personagem que emerge de suas entrevistas e de seus trabalhos trama uma rede de muitos contágios e contaminações, e isto é um gesto político”, analisa.

É por essa contaminação, destaca Pessoa, que Pasolini formula, por exemplo, a ideia de que a tolerância cria guetos, vista por ele como “aspecto mais atroz” da falsa democracia. Assim, o artista observa a tolerância como algo mais perverso do que a proibição. Por essas perspectivas é que Pessoa reconhece a atualidade do italiano. “Estamos vivendo atualmente violências por todo o país, e por todo o Mundo, ou como diria Pasolini, em sua última entrevista: ‘Estamos todos em perigo’”, refere o professor. Reconhecendo que ainda se tem muito o que descobrir do Pasolini para além do cinema, provoca: “seu pensamento, sua presença entre nós, sua inserção na nossa paisagem como luta pela vida, deve ser sempre um motivo de alegria, visto que seu pensamento e seu corpo se colocaram sempre contra toda forma de Poder”.

Davi Pessoa é professor de Literatura Italiana na Universidade Estadual do Rio de Janeiro - Uerj. É autor de Terceira Margem: Testemunha, Tradução (Rio de Janeiro: Editora da Casa, 2008). Atua também como tradutor de literatura e filosofia italiana. Entre as obras que traduziu, destacamos A razão dos outros (São Paulo: Lumme Editor, 2009) e Ou de um ou de nenhum (São Paulo: Lumme Editor, 2010), de Luigi Pirandello, O tempo que resta (Belo Horizonte: Autêntica, 2016), Meios sem fim (Belo Horizonte: Autêntica, 2015), do filósofo Giorgio Agamben, e Uma gozação bem-sucedida (São Paulo: Carambaia, 2017), de Italo Svevo. Atualmente está trabalhando na tradução do texto Petróleo, de Pier Paolo Pasolini. O livro deve ser publicado pela Editora 34.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como você compreende a figura de Pier Paolo Pasolini?

Davi Pessoa – Compreendo Pasolini tal como se compreendia a noção de “figura”, na Idade Média – período que, como sabemos, é fundamental para o percurso do pensamento de Pasolini. Nesse período, “figurae” não significava a apreensão de algo, não algo passível de representação ou a apreensão e representação do aspecto visível das coisas, mas muito mais a transferência de um sentido a outro, como impossibilidade de apreensão de certa visibilidade. Assim, a figura Pasolini reúne muitas categorias heterogêneas, as quais só se tornam acessíveis a partir de um procedimento anacrônico.

Posso dar como paradigma, nesse sentido, a leitura a contrapelo de O Decameron – ressalto a presença do artigo no título do filme de Pasolini em detrimento do livro de Boccaccio – ao lado de uma reflexão trazida à tona por ele, em 1969, sobre a sobrevivência e o desaparecimento de cidades históricas em seu mundo contemporâneo, como é o caso do filme Os muros de Sanaá (1970), que é um curta-manifesto direcionado à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco para o reconhecimento da cidade como patrimônio histórico da humanidade. Além disso, Pasolini conseguia perceber, naquele momento em que estava procurando locações para seu filme-homenagem a Boccaccio , que a população daquela cidade já sofria uma fortíssima mutação antropológica em decorrência da chegada do mundo capitalista. Assim, era seu modo de ler outro tipo de “peste” que estava obliterando toda uma cultura.

IHU On-Line – Que personagem Pasolini constitui a partir de suas entrevistas, quando fala de si mesmo? O que esse discurso sobre si revela acerca de seu pensamento e ativismo político?

Davi Pessoa – Durante uma entrevista com Giuseppe Cardillo, em 1969, em Nova Iorque, Pasolini lhe diz: “Sou, na realidade, um pastiche”, ou seja, uma mancha em que se acumulam muitos pigmentos. Há em todo o percurso de Pasolini uma tomada de posição em favor das pluralidades, das diferenças. Em 1969, ele escreve para a revista Tempo: “O homem médio – ou seja, a opinião pública representada e, diria, oficializada pelos jornais – requer ainda, como na profundidade dos milênios, o ‘bode expiatório’: isto é, sente a necessidade de linchamento. As vítimas que serão linchadas continuam a ser regularmente procuradas entre os ‘diferentes’. Estamos ainda, em outras palavras, no auge da civilização de Himmler. Os ‘lager’ os esperam”.

O ‘diferente’ (criminoso, homossexual, pobre ou meridional: estas são as atribuições da vítima que será linchada, regularmente procurada) se configura como ‘monstro’. Nesse sentido, o personagem que emerge de suas entrevistas e de seus trabalhos – o pasticheur – trama uma rede de muitos contágios e contaminações, e isto é um gesto político.

IHU On-Line – Traduzir é um modo peculiar de ler um texto? Por quê? E, no caso de Pasolini, quais os desafios para tradução e compreensão de seus pensamentos e provocações?

Davi Pessoa – Esta minha proposição “traduzir é um modo peculiar de ler um texto” provém de outra, de Italo Calvino , quando diz que “traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto”. A tônica, portanto, não se encontra no verdadeiro, mas na singularidade da leitura. Desse modo, a tradução, muito mais que dar mais sacralidade ao “texto original”, tal como o nomeamos, ela profana o texto original, ela restitui ao uso comum dos homens o que se encontrava separado.

No entanto, para que haja profanação no gesto da tradução é necessário que se coloque em ação um novo uso do texto a ser traduzido. E para que isso possa ocorrer, podemos compreender a tradução como uma brincadeira que desarticula certas normatizações de leitura em torno da produção de um escritor, como é o caso de Pasolini, que possui uma vastíssima fortuna crítica. A tradução, nesse sentido, abre uma nova série de leituras sobre seu pensamento, um novo uso.

Pasolini, na passagem do ano 1959 para o ano 1960, recebe o convite do ator Vittorio Gassman e do diretor Luciano Lucignani para traduzir A Oresteia (ou A Orestíada), de Ésquilo, para o Teatro Popolare Italiano – Tpi, e o aceitou, mesmo se achando despreparado, e a respeito desse desafio, ele escreve: “Como traduzir? Eu já possuía um ‘italiano’: e era naturalmente aquele das Cenere di Gramsci (com alguma parte expressiva sobrevivida em L’usignolo della chiesa cattolica); sabia (por instinto) que poderia fazer uso dele.” O uso dessa língua menos sublime, mais “civil”, como ele a nomeia, provocou um imenso mal-estar aos olhos dos helenistas e filólogos mais conservadores, porém, Pasolini via que nesta “brincadeira”, nesta profanação, se encontrava um modo peculiar de leitura do texto de Ésquilo naqueles anos. Sua provocação era, portanto, mediante o gesto da tradução, profanar a discussão política presente no texto clássico aos olhos de seu presente. Creio, em última análise, que traduzir os textos de Pasolini significa colocar em movimento um novo olhar – diante de nossas catástrofes atuais – sobre seu pensamento.

IHU On-Line – Quais as características mais marcantes na poesia, no texto de Pier Paolo Pasolini?

Davi Pessoa – Em toda a poesia de Pier Paolo há um nível de contaminação muito intenso de muitos estilos, bem como há um corte entre os chamados gêneros literários. Podemos, assim, ler As cinzas de Gramsci como uma espécie de ensaio. Na linguagem de sua poesia há traços de materiais estilísticos muito disparatados, como aqueles da poesia dialetal, da poesia decadentista, socialista etc. Como ele diz numa certa entrevista com Jon Halliday : “Não tenho um estilo pessoal, completamente inventado por mim, embora possua um estilo reconhecível. Não sou reconhecível porque sou inventor de uma forma estilística, mas pelo grau de intensidade a que levo a contaminação e a fusão de diferentes estilos.” Ainda: aquilo que lemos com muita intensidade na poesia de Pasolini é o grau de violência, de intensidade, a profundidade do sentimento, a paixão que se encontra em seus versos.

IHU On-Line – Como classifica a obra de Pasolini? É possível associar o artista a algum movimento estético, seja do cinema ou da poesia da Itália da época?

Davi Pessoa – Difícil traçar fronteiras na obra de Pasolini. Aliás, a própria noção de obra é ali colocada em xeque o tempo todo, por isso mesmo sua predileção pelo termo “appunti”, isto é, anotações, esboços, aquilo que está constantemente em processo de metamorfose. Gosto muito de pensar seu percurso a partir de limiares, já que é um pensador múltiplo. Pasolini põe em movimento zonas transversais, oblíquas, com o intuito de confrontar os saberes instituídos dentro de espaços limitados, ou ainda, para confrontar a famosa tríade tão importante, paradigmaticamente, a Michel Foucault : Saber, Poder, Subjetividade. Lembro-me de Éric Dardel , geógrafo francês, autor de L’Homme et la Terre (1990), quando aponta que “a paisagem não é, na sua essência, feita para ser olhada, mas sim inserção do homem no mundo, lugar de luta pela vida, manifestação do seu ser com os outros”.

Assim, muito mais que enquadrá-lo numa moldura, numa paisagem específica e imóvel, é mais interessante, e muito mais rico, aproximá-lo, por sua vez, daquilo que pode, a priori, nos parecer muito distante, isto é, aproximá-lo, ao mesmo tempo, de Carlo Carrà (1881-1966) e Masaccio (1401-1429), para ver o que pode emergir desse choque, dessa luta pela vida como inserção humana numa determinada paisagem.

IHU On-Line – Qual a atualidade de Pasolini? Por que o poeta, cineasta e ativista político, essa personalidade tão ímpar, está sendo redescoberta agora?

Davi Pessoa – Talvez seja melhor, diante dos tempos em que vivemos, falar da inatualidade de Pasolini. Não se trata de redescoberta, e no caso de nosso país tudo ainda caminha bem devagar. Nos anos 1970, por exemplo, surgiram as primeiras traduções dos textos de Pasolini entre nós. Depois, entramos num hiato, e ainda hoje se traduzem muito pouco os textos de Pasolini por aqui, e certamente há um grupo que faz um imenso esforço para que seus textos, poemas, entrevistas, sejam lidos em revistas, visto que as editoras brasileiras ainda têm muita resistência de publicar seus livros.

Estou, neste momento, traduzindo Petróleo, o romance inacabado, que sairá pela Editora 34, depois de um longo processo de negociação por causa dos direitos etc. Maurício Santana Dias preparou uma antologia da poesia de Pasolini, que saiu pela Cosac Naify, no ano passado, que certamente também foi resultado de um esforço para que o projeto fosse adiante. Maria Betânia Amoroso está traduzindo, também para a 34, os Escritos corsários, que será publicado, em breve, na íntegra, já que em 1990 foi publicada uma antologia dos textos desse volume, preparada por Michel Lahud, com tradução dele e da Amoroso. E ainda há livros que jamais tiveram uma única tradução no Brasil. Vamos ver se tudo isso muda de figura, interesse há por parte de estudiosos da obra do Pasolini, falta mesmo é mais coragem por parte de nossos editores.

Tal ação em conjunto é fundamental para que os limiares – sobre os quais destacava anteriormente – possam ser transcorridos pelos leitores brasileiros, já que por aqui Pasolini ainda é muito visto, isto é, sua produção cinematográfica, mas pouco lido, conhece-se muito pouco de sua poesia, bem como de suas relações com as artes plásticas. Por isso, no ano passado e neste ano, no Rio de Janeiro, primeiro, na Casa de Rui Barbosa, depois, no Museu Mar, eu e o Manoel Ricardo de Lima, poeta, crítico e professor da UniRio, decidimos fazer o Seminário Pasolini, com o objetivo de ampliação da figura do escritor – como destaco no início desta entrevista, assim, muitos pesquisadores de diversas áreas já puderam contribuir para translações de sentido com o pensamento de Pier Paolo.

IHU On-Line – Em seus estudos, o senhor refere a preocupação do autor com a traduzibilidade. No que consiste essa traduzibilidade de Pasolini e qual o significado dessa postura?

Davi Pessoa – Pasolini, na entrevista já citada com Jon Halliday, destaca seu desacordo com os estruturalistas franceses, embora nutrisse uma profunda admiração por Lévi-Strauss , e ali argumenta a importância do uso do termo “processo” em detrimento do termo “estrutura”. Nesse sentido que poderíamos ler o conceito de traduzibilidade, a partir do ensaio A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin . No gesto da tradução, o mais importante não é a “tradução”, isto é, o fim, mas a “traduzibilidade”, o modo de “vir-a-ser”, os meios, a experiência, o contato e o contágio entre linguagens.

IHU On-Line – Que associações é possível se fazer entre Walter Benjamin e Pasolini?

Davi Pessoa – Há, sem dúvida, muitas analogias que poderíamos traçar aqui, mas vou me referir a uma, que creio que seja aquela que desdobra tantas outras linhas a partir do choque entre seus pensamentos. No fragmento Escavar e recordar, de Benjamin, lê-se: “A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a prospecção do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava”. Pasolini, em todo seu percurso, de modo análogo ao de Benjamim, se aproximava do mais distante para realizar uma observação incansável do mais próximo.

IHU On-Line – Que outros artistas e escritores são importantes para se compreender e aprofundar a análise sobre o legado de Pasolini?

Davi Pessoa – A lista é imensa, mas aconselho a leitura de Roberto Longhi , Paul Valéry , Gianfranco Contini , Elsa Morante , Ernesto De Martino , Antonio Gramsci , Rimbaud , Giuseppe Ungaretti , Dostoiévski , como ele mesmo dizia, “minhas leituras traumáticas”.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Davi Pessoa – Em 1972, numa entrevista dada a Dacia Maraini para o jornal L’Espresso, Pasolini lhe diz: “É a tolerância que cria os guetos, porque é através da tolerância que os ‘diferentes’ podem vir à tona, porém, sob a condição de serem e permanecerem minoria, aceita, mas caracterizada e circunscrita. A tolerância é o aspecto mais atroz da falsa democracia. Poderia lhe dizer que é realmente muito mais humilhante ser ‘tolerado’ que ser ‘proibido’ e que a permissividade é a pior das formas de repressão”. Estamos vivendo atualmente violências por todo o país, e por todo o Mundo, ou como diria Pasolini, em sua última entrevista, poucas horas antes de ser assassinado: “Estamos todos em perigo”. Assim, seu pensamento, sua presença entre nós, sua inserção na nossa paisagem como luta pela vida, deve ser sempre um motivo de alegria, visto que seu pensamento e seu corpo se colocaram sempre contra toda forma de Poder.■

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