Edição 504 | 08 Mai 2017

Pasolini e a nostalgia do sagrado

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João Vitor Santos | Tradução: André Bressane de Oliveira

Massimo Pampaloni destaca como Pasolini, de uma forma mística, apreende a história do Cristo vivo na terra, o revolucionário que busca a transformação de um mundo

A obra de Pasolini é capaz de gerar inúmeras sensações, como diz o doutor em Ciências Eclesiásticas Orientais, o padre Massimo Pampaloni: “quando eu leio e releio Pasolini, alterno entre admiração e decepção, raiva e ternura, mas nunca, nunca, uma página sua me deixa indiferente”. Talvez esses sentimentos só não sejam mais contraditórios do que explicar o fato de o artista produzir um filme sobre Jesus Cristo com tamanha densidade como o Evangelho segundo São Mateus (1964) sem saber ao certo se crê no messias. Para o professor Pampaloni, a explicação para isso está na percepção do artista. “O Cristo de Pasolini, para Pasolini, não é Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nos salvar”, mas o ser humano que vem para revolucionar. “O Jesus do Evangelho de Mateus é deliberadamente privado de quaisquer características divinas. É uma obra, no entanto, para questionar, assim como se pode questionar a qualquer sábio do passado”, completa o professor.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Pampaloni ainda destaca que “Pasolini era um homem profundamente humilde, pronto para aprender com a realidade”. Por isso, segundo ele, é fascinado pela história que é reconstituída por Mateus. “Não há dúvida acerca de a sinceridade de sua busca pelo homem, de seu verdadeiro amor pela humanidade, pelos pobres e simples de sua terra”, pontua. E o momento em toma contato com o texto também é cheio de significados que acabam ecoando no roteiro do filme. “O clima daqueles dias rodava em torno de dois polos: o famoso discurso do secretário do Partido Comunista Italiano, e membro influente do Comitê Soviético Central, Palmiro Togliatti e a Pacem in Terris, do Papa João XXIII”, recorda. “Na verdade Pasolini foi e se manteve um ateu. Mas a sua busca pelo homem e sua profundidade não poderia impedi-lo de encontrar-se, mais cedo ou mais tarde, com o Transcendente estritamente dito”, completa Pampaloni.

Massimo Pampaloni, jesuíta, é doutor em Ciências Eclesiásticas Orientais pelo Pontifício Instituto Oriental, de Roma, instituição em que também foi vice-reitor entre 2010 e 2016. Desde 2016, é decano da Faculdade de Ciências Eclesiásticas Orientais da mesma universidade, na qual também leciona Teologia Patrística oriental e Patrologia Siríaca. Também é professor convidado no programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – Faje, de Belo Horizonte, na Facoltà Teologica dell’Italia Meridionale (Sezione San Luigi) em Nápoles e no Instituto Patristico Augustinianum de Roma na área de teologia patrística siríaca. É membro de Syriaca, a associação dos siriacistas italianos. Entre suas publicações, destacamos o livro organizado por ele Le vie del sapere in ambito siro.mesopotamico dal III al IX secolo (Roma: Edizioni Orientalia, 2013).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em uma das entrevistas que o senhor concedeu à IHU On-Line , disse que o cinema pode ser lugar de expressão do Mistério. Entretanto, destaca que para isso é preciso que quem faça o cinema busque o Mistério. No seu cinema, Pier Paolo Pasolini busca o Mistério? Como?

Massimo Pampaloni – No que se refere àquela entrevista, eu disse: “O Cinema torna-se lugar de Expressão do Mistério se quem faz cinema deixa, em sua vida, aberta a porta ao Mistério”. O que quis dizer foi que, na medida em que o autor do filme tem a intenção de usar a mediação do filme para realmente comunicar uma ideia e sabe como fazê-lo, então o resultado certamente será expressão dessa ideia. Portanto, se a consciência do diretor é uma consciência cuja busca do Mistério tem importância, é claro que ela vai aparecer no resultado. Atenção: isso não significa automaticamente que os espectadores entenderão (e isso aconteceu seja com Pasolini, seja com todos os grandes diretores). E isso por duas razões básicas: a primeira é que não basta ter olhos e ouvidos para entender a linguagem do cinema, ou seja, nem todos os espectadores são capazes de ler um filme. A segunda, é que em qualquer modo a busca pelo Mistério deve ser uma realidade também na consciência do espectador, caso contrário o filme vai responder a uma pergunta que não existe.

Dito isto, a questão de saber se Pasolini buscava expressar o Mistério é mais complexa do que podemos pensar. Por isso vem a tentação de responder "sim e não". Eu diria que se nós entendemos o Mistério e a Transcendência, como faziam — para colocar alguns exemplos muito especiais para mim — A. Tarkovsky (1932-1986), ou Federico Fellini (1920-1993) de La Strada (1954), La Dolce vita (1960) e também La voce della Luna (1990), então eu diria que não. Porém, com certeza encontro em Pasolini aquilo que meu mestre, o jesuíta Nazareno Taddei (1920-2006), chamou, com uma feliz expressão, de "a nostalgia do sagrado". Isto é o que encontramos em muitos dos filmes de Pasolini (não todos), porque é isso que o animava.

IHU On-Line – Como o senhor compreende a figura de Pasolini, essencialmente a sua mística, alguém que se intitula ateu e produz um filme com tamanha densidade como O Evangelho segundo São Mateus (1964)?

Massimo Pampaloni – Pessoalmente, acho que a minha relação com a produção de Pasolini envolve uma contínua alternância de estados de ânimo. Pasolini está localizado dentro do mundo italiano comunista do pós-guerra, com toda a sua estrutura ideológica. Mesmo quando, em 1945, seu irmão Guido foi morto no massacre de Porzûs pelos guerrilheiros comunistas , Pasolini, ainda que condenando o massacre e pedindo justiça , não mudou de ideia. Mesmo quando, no dia 26 de outubro de 1949, ele foi expulso do Partido Comunista Italiano - PCI por "indignidade moral" (havia sido denunciado como resultado de um escândalo de fundo homossexual, considerado na época uma ofensa contra a moral pública, punível por lei) , ele declarou: “apesar de vocês, continuo e continuarei comunista no sentido autêntico da palavra” .

No entanto, não há dúvida acerca da sinceridade de sua busca pelo homem, de seu verdadeiro amor pela humanidade, pelos pobres e simples de sua terra. O grito de horror quase desesperado ao ver desaparecer os rostos “de filhos dignos e humildes, com os seus belos pescoços, seus belos rostos claros sob os ferozes tufos inocentes” , dando lugar “às máscaras horríveis que os jovens colocam no rosto, tornando-se feios como prostitutas velhas de uma injusta iconografia”, indica a grande mutação antropológica a qual, como um observador atento da realidade, sentiu a chegada, mas, preso na gaiola ideológica marxista, não pôde ver todas as implicações. Por isso, quando eu leio e releio Pasolini, alterno entre admiração e decepção, raiva e ternura, mas nunca, nunca, uma página sua me deixa indiferente.

Então, como você observa, na verdade Pasolini foi e se manteve um ateu. Mas a sua busca pelo homem e sua profundidade, disse Nazareno Taddei, não poderia impedi-lo de encontrar-se, mais cedo ou mais tarde, com o Transcendente estritamente dito. Ele o encontrou? Talvez sim, no nível inicial. A trágica morte interrompeu um caminho do qual não podemos saber o resultado. Taddei escreveu: “É certo que Pasolini tinha encontrado esse ponto [...] no qual o estudo do homem acaba tendo que lidar com o Transcendente e com a religião, que é o elo entre aquele Transcendente e o homem. Como estudioso e artista, Pasolini não esconde que não é possível estudar o homem sem a sua dimensão religiosa. E, então, automaticamente o estudo do homem torna-se o estudo daquela dimensão. Do homem se passa à religião; do humano se passa ao sagrado. Portanto, religião, sagrado” .

O padre servita David Maria Turoldo (1916-1992), poeta, escritor e filho da mesma terra de Friuli, como Pasolini, e único sacerdote presente em seu funeral, segue esta linha. Pasolini sempre se manteve um comunista , mas era "uma alma religiosa sem religião; um crente sem fé; uma alma inquieta porque não encontrava ponto absolutamente brilhante e totalmente convincente de todas as coisas que procurava. Na verdade, foi a imagem da inquietação universal: sempre oprimido pela carga moralista. Independentemente do que se possa dizer, talvez até mesmo em seu pecar quotidiano, foi um dos mais inocentes, um dos mais puros. Ninguém sofreu mais do que ele a sua condição, e ninguém pagou como ele para ser ele mesmo” .

Assim, a primeira resposta à sua pergunta é esta. A outra está na definição acima mencionada: nostalgia do sagrado, porque não podemos esquecer que Pasolini teve uma infância profundamente católica, que permeou a sua cultura de base nos moldes do catolicismo camponês típico do Friuli. Depois se afastou e explicitamente o deixou. Porém ficou uma espécie de saudade, um profundo desejo por algo (nunca chegou ao ponto que nos autorizaria a dizer “por Alguém”), que iria preencher o vazio deixado pelo abandono. Mesmo em suas expressões mais violentas e críticas contra a Igreja, contra o Vaticano, contra a Democracia Cristã etc., sempre se sente ressoar os passos de uma marcha na direção de um amadurecimento espiritual, especialmente desde que ele entrou no mundo do cinema, desde os anos 1960 .

A "mística" de Pasolini, então, talvez seja encontrada em outra definição, que pode impressionar à primeira vista, dada por Turoldo: “Ele era um missionário, se sentia em uma missão; Ele tinha a tarefa de denunciar o mal. Ele sempre sonhou com libertação do pecado, ainda que fosse um pecador, e um grande pecador! O senso do mal nele é trágico. Ele sempre sonhou com uma igreja que o salvasse, apesar de ter desistido de qualquer igreja. Na verdade, no final das contas, ele desiste inclusive da igreja marxista” .

Finalmente, uma observação muito aguda de Taddei. Ingmar Bergman (1918-2007) ou o mesmo Fellini, embora abertos ao Transcendente (especialmente Fellini) no sentido mais amplo em comparação com Pasolini, quando descrevem o homem se detém naquilo que o homem se tornou, naquilo que é no momento em que o descreve. Pasolini, no entanto, está sempre aberto ao futuro, “procurando as raízes no antigo e na natureza. E é substancialmente o pano de fundo sobre o qual se pode vislumbrar seu anseio pelo Sagrado” .

IHU On-Line – Por que o Evangelho segundo São Mateus é considerado uma das melhores representações fílmicas de Jesus, inclusive pelo Vaticano?

Massimo Pampaloni – Vou dizer algo que talvez pareça “herético”, mas em se tratando de Pasolini eu não posso calar. Eu acho que é um grande filme, porque foi feito por um grande diretor, com essa abertura interior dentro dos limites mencionados no início desta entrevista . Mas, de acordo com meu mestre Taddei — e eu concordo plenamente —, quando Pasolini grava o filme, essa nostalgia do sagrado não está ainda totalmente em ação. Certamente, diz Taddei, estamos um passo à frente em relação à primeira fase da sua filmografia (Accattone de 1961, Mamma Roma de 1962, La Ricotta de 1963, filme que implicou na sua condenação por desacato à religião). Estamos ainda na dimensão totalmente terrena, embora sempre centrado no ser humano.

O Evangelho segundo São Mateus (1964) e Édipo Rei (1967) são uma pesquisa a respeito das raízes antigas, da sabedoria do passado. Mas o Jesus do Evangelho de Mateus é deliberadamente privado de quaisquer características divinas. É uma obra, no entanto, para questionar, assim como se pode questionar qualquer sábio do passado. O mesmo Pasolini disse: “Eu quero fazer uma obra de poesia. Não é uma obra religiosa no sentido usual do termo, nem uma obra de alguma forma ideológica. Em palavras muito pobres e simples: eu não acredito que Cristo é o filho de Deus, porque eu não sou um crente — pelo menos na consciência. Mas eu acredito que Cristo é divino: eu penso, isto é, que nele a humanidade é tão elevada, rigorosa, um ideal para ir além dos termos comuns da humanidade. Por isso eu digo "poesia": um instrumento irracional para expressar os meus sentimentos irracionais em relação a Cristo” . Não é difícil compreender que “divino” aqui é identificado com o irracional e não com a fé na divindade de Cristo (pelo menos no início ele não se preocupava com as questões acerca da existência de Cristo) .

Digo isto porque Pasolini era um homem profundamente humilde, pronto para aprender com a realidade. Durante uma exibição do filme Édipo Rei para os alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Católica de Roma, organizada por Nazareno Taddei, Pasolini também foi. No final do filme se estabeleceu um diálogo entre Taddei e Pasolini. Em certo ponto Taddei diz a Pasolini que ele percebeu uma certa nostalgia de Deus, tomando como exemplo alguns elementos do filme. No início Pasolini negou veementemente: “Não, não. Não há nostalgia de Deus; há apenas o contraste entre o mundo racional e irracional”. Mas, no final do diálogo, ele exclamou: “Mas sabe que você tem razão? Agora que penso sobre isso, quando eu estava fazendo o filme, estava lendo um livro (e citou o livro) que tratava de como, da natureza, é possível elevar-se a Deus. É perceptível que, sem querer, na verdade, eu expressei este desejo de Deus” . Porém, a clara presença deste desejo aparece em uma outra obra-prima que se intitula Teorema de 1968.

Agora sim, posso responder a sua pergunta. O filme deixa essa maravilhosa sensação de “religiosidade”, porque o assunto é tratado com grande respeito e abertura ao texto do Evangelho. Mas todas as dimensões divinas no sentido pleno da palavra foram removidas. Certamente, o Cristo de Pasolini, para Pasolini, não é Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nos salvar. Porém a sua atuação é tão fina e delicada, é tão respeitosa em acompanhar o ritmo do texto de Mateus, que o fiel que assiste ao filme consegue facilmente "integrar" aquilo que está faltando. Não surpreende que um incrédulo aprecie o filme por sua carga “revolucionária”, pois Pasolini a colocou; e esta pessoa vai estar alinhada a reduzir Cristo a uma simples imagem poética, ou a um personagem socialmente engajado. O crente, ao contrário, admirando esta obra, vai integrar sem perceber aquilo que está faltando e terá uma grande experiência estética que, para ele, vai adquirir dimensão espiritual. Aquele que conhece a linguagem do cinema, e pode ler o filme, vai distinguir, assim como Taddei, a ideia central que Pasolini quis comunicar através da linguagem do cinema: “O Evangelho de Mateus é um texto antigo que — através da história de Cristo, homem misteriosamente nascido de uma virgem, que viveu misteriosamente fazendo milagres e depois torturado por suas doutrinas contrárias ao estabilishment de seu tempo — tornou-se emblema para uma vida plena de humanidade, mas obrigatório em relação à luta contra os poderes tirânicos que se sucedem nas diferentes épocas da história” .

IHU On-Line – No que a representação do Martírio de Jesus Cristo feita por Pasolini difere de tantas outras? Que Jesus é esse que ele apresenta no filme?

Massimo Pampaloni – Eu diria que cada representação cinematográfica da história de Jesus Cristo é diferente uma da outra. Assim colocada sua pergunta, poderia parecer que estas “outras” sejam homogêneas e que, ao contrário, esta representação de Pasolini seria diferente das outras em alguma coisa. Todas são expressões do mundo interior e do horizonte de consciência do autor. Nenhuma delas é a “verdadeira” história de Cristo! Cada filme é uma visão que o diretor queria dar, é a sua visão: da figura de Jesus, ou de um aspecto particular da sua história. Todos os filmes seguem este raciocínio.

Tome A Última Tentação de Cristo, o filme de Martin Scorsese (1988), adaptado do romance N. Kazantzákis (1883-1957) . Aqui Scorsese imaginou que Jesus, na cruz, teve que lidar com a sua maior tentação: acreditar que a Cruz era desnecessária; que não era necessário ir até o fim com a sua oferta de amor ao homem; e que ele poderia viver uma vida “normal”. Da mesma forma, o filme muito criticado — na minha opinião injustamente — A Paixão, de Mel Gibson (2004), tem uma dimensão teológica de grande profundidade, mas para ser lida e identificada exige conhecer não só a linguagem do filme, mas também a teologia e a patrística. Neste filme podem ser encontrados todos os grandes temas cristológicos dos Padres da Igreja dos primeiros cinco séculos. Pasolini está interessado em Cristo como um símbolo dos ideais em que acreditava no momento em que ele fez o seu filme: um revolucionário, uma vítima do sistema que não tolera aqueles que vão contra.

IHU On-Line – Como compreender a opção de Pasolini pelo Evangelho de Mateus e não por outra narrativa bíblica sobre o Martírio de Cristo?

Massimo Pampaloni – O Evangelho de Mateus se presta, mais do que qualquer outro, a uma narrativa que se encaixava no horizonte de Pasolini. Mas aqui há um paradoxo, que passou despercebido por muitos comentaristas. Muitos justificam dizendo que o motivo pelo qual foi escolhido este evangelho seria porque manifesta em modo exuberante a dimensão humana de Cristo. Na realidade não é assim. O Evangelho de Mateus tem como objetivo mostrar que Jesus é o Messias esperado, o Filho de Deus. Porém, mesmo tendo declarado repetidamente a sua intenção de não tocar ou acrescentar nada ao texto simples de Mateus, Pasolini corta claramente as partes que mostram a divindade de Cristo .

IHU On-Line – Como foi a preparação de Pasolini para rodar O Evangelho segundo São Mateus?

Massimo Pampaloni – Toda a história já foi bem explicada em outros lugares . Limito-me a chamar a atenção para algumas coisas. No dia 4 de outubro de 1962, Pasolini se hospedou no Pro Civitate Christiana, fundada em Assis em 1939, por um padre da diocese de Milão, Don Giovanni Rossi. O trabalho apostólico desta organização destacou-se significativamente, sobretudo no pós-Vaticano II , como um lugar de paz e evangelização no espírito do Concílio . Foi durante a sua estadia em Assis, na ocasião visitada por João XXIII , por ocasião da abertura do Concílio Vaticano II, que Pasolini teve a ideia de fazer um filme a partir do Evangelho de Mateus, porque tinha lido uma cópia deste evangelho no quarto onde estava hospedado. O clima daqueles dias girava em torno de dois polos: o famoso discurso do secretário do Partido Comunista Italiano, e membro influente do Comitê Soviético Central, Palmiro Togliatti , realizado em 20 de março de 1963 sobre a abertura para o mundo católico; e a Pacem in Terris , do Papa João XXIII, de 11 de abril de 1963. O roteiro do filme, que terminou em 8 de maio de 1963, foi influenciado por esta atmosfera . Lembremos que após a morte do Papa em junho do mesmo ano, Pasolini dedicou o Evangelho segundo Mateus à “querida, feliz, memória familiar de João XXIII”.

Quando João XXIII morreu, Pasolini estava na Palestina para fazer algumas inspeções, que deram origem ao documentário Inspeções na Palestina para o Evangelho de Mateus. De certa forma desapontado, porque não tinha encontrado a atmosfera que queria, ele passou a buscar o lugar ideal em Matera (onde filmou nas famosas “pedras”, ou seja, casas rupestres, assim como fez Mel Gibson para The Passion), Massafra, o Etna...: tudo foi filmado no Sul da Itália; bem como para a escolha do elenco, Pasolini foi levado pelo desejo de ter rostos que não lembravam atores profissionais, sobretudo para a figura de Cristo. Foi escolhido Enrique Irazoqui , que na época era um sindicalista catalão de menos de vinte anos. Para o papel de Nossa Senhora já idosa, tomou uma decisão que acabou famosa, quando escolheu sua própria mãe, Susanna.

Assim, a busca de lugares onde filmar e a escolha do elenco mais uma vez giram em torno do homem. Em sua viagem para a Palestina foi dito que “[Pasolini não estava interessado] nas formas arquitetônicas das cidades da Palestina ("pré-cristã e todas um pouco fúnebres"), queria sobretudo ir ao encontro dos homens, do cheiro e da cor das estradas, sentir a poeira e do ar daqueles lugares um pouco 'perdidos no tempo….” . Inclusive o rosto “verdadeiro” dos protagonistas fazem parte dessa busca inquieta e febril da profunda humanidade que via desaparecer lentamente, substituída pela vulgaridade e pela violência da mudança antropológica em andamento, em nome de uma forma sutil, mas igualmente horrível, de controle totalitário em nome de um hedonismo de massa.

IHU On-Line – Pasolini teve uma espécie de consultor para produzir O Evangelho segundo São Mateus? O que o senhor sabe sobre essa história de bastidor acerca do filme? 

Massimo Pampaloni – Houve várias partes interessadas. Algumas são conhecidas. Por exemplo, o padre Giovanni Rossi era um daqueles que, de alguma forma, apoiaram Pasolini para o filme. Houve, então, a figura de Pe. Andrea Carraro, um biblista ligado ao Pro Civitate Christiana que o acompanhou na viagem à Palestina, de que já falamos. Mas, surpreendentemente, menos conhecida é a contribuição de meu professor de linguagem cinematográfica, já mencionado várias vezes, Nazareno Taddei . Eu gostaria de oferecer aos leitores da IHU On-line algumas informações não muito conhecidas.

Em 1962, o padre Taddei já era conhecido no campo da comunicação de massa e da leitura de filmes. Graças a ele a televisão estatal italiana, RAI, ganhou dois prêmios internacionais de melhor documentário em 1958 e 1959. Pe. Giovanni Rossi enviou-lhe uma pré-visualização, por intermédio do padre jesuíta Favaro, do roteiro do filme, para que fizesse uma avaliação. No arquivo Taddei ainda se conserva a resposta do padre Nazareno: “Muito boa como sugestão de tradução cinematográfica inspirada no evangelho. Mas é apenas uma sugestão: ainda existem muitos elementos faltantes para a redação de um roteiro que possam dar uma ideia de como será o resultado das imagens sugeridas. Além disso, a partir de uma única sequência, não podemos ver como todo o trabalho estará sob o perfil rítmico e de composição do todo”. Como é possível ver, Taddei não podia dizer nada sobre o roteiro, exceto que as condições iniciais pareciam ser boas. Taddei foi convidado para a pré-visualização do filme, que teve lugar precisamente na sede da Pro Civitate Christiana em Assis. E aqui está um detalhe que poucos sabem. Na pré-visualização, o filme não mostrava o episódio do Primado de Pedro. Além disso, após a projeção, Taddei, que ainda não havia conhecido Pasolini em pessoa, o viu descer sozinho para o bar do edifício. Sem usar de muita gentileza, Taddei disse então a Pasolini:

“Você acredita em Cristo?”
Pasolini disse: “O que você quer dizer?”
“Em Cristo como realidade histórica e como filho de Deus.”
“Não”, respondeu Pasolini.
“Está muito claro no filme”, disse o padre Taddei.
“O que quer dizer?” - respondeu Pasolini – “é o primeiro católico que me diz isso.”
“Você tocou os aspectos humanos de Cristo, do nascimento e a primeira parte geral até ….”
“... a chamada dos Apóstolos”, completou Pasolini.
“Sim, e também a morte. Mas o resto, onde Cristo se destaca dos assuntos puramente humanos e entra em uma dimensão transcendente, você de certo modo foi respeitoso, mas o entendeu como se fosse uma fábula, como uma lenda.”
“Eu não acredito em Cristo... não acredito em Cristo... bom, também não é exato. Aos poucos, conforme filmava eu senti a força deste grande personagem.”
“Que para você nem sequer existiu.”
“Mas eu não sei, e não me importo”
“Lenda, precisamente”
“Poesia!”
“Certo, poesia! Tudo bem! Mas o discurso foi sobre a história.”
“Mas eu respeitei a história”
“A história de quem? Do Cristo, o Filho de Deus? Por que, então, nas tentações você colocou aqueles dois enquadramentos longos após a partida do diabo e não após a última resposta de Cristo?”
“Mas eu não acredito que Cristo era o Senhor do mundo: ele foi tentado pelo diabo e é pronto, só isso”
“Então é lenda” .

Taddei apontou, então, que faltava o Primado de Pedro e outros elementos. Pasolini respondeu que ele o tinha filmado, mas não tinha ficado satisfeito. Desde esse dia uma amizade nasceu, intensa e frutuosa, com Taddei, até a morte de Pasolini. Taddei disse que quando ele foi alugar pela primeira vez o Evangelho segundo Mateus em 16 mm, para o seu curso, ele percebeu que Pasolini tinha cortado as duas cenas em longo alcance e tinha inserido a cena do Primado de Pedro .

Taddei frequentemente convidava Pasolini em seus cursos, outras vezes, quando Pasolini sabia que Taddei faria uma leitura de um de seus filmes, muitas vezes aparecia na plateia. Taddei sempre era convidado por Pasolini para a pré-visualização de seus filmes.

Termino com uma outra memória de Pasolini contada por padre Taddei. “Quando telefono para ele, do outro lado do fio se escuta o ambiente familiar; quase sempre atende ao telefone a mãe, ou a sobrinha que vive com eles desde que ela era criança. Telefonei no dia de Natal: Pasolini estava lá com sua mãe. Ora, um homem com a fama de Pasolini, que passa a vida entre trabalho e casa, acho que aí estão presentes algumas características humanas dignas de consideração” .■

Leia mais

- O cinema como lugar de possibilidade de expressão do Mistério. Entrevista com Massimo Pampaloni, publicada na revista IHU On-Line número 403, de 24-9-2012.

- Divina Comédia. A relação entre poesia e Deus. Entrevista com Massimo Pampaloni, publicada na revista IHU On-Line número 301, de 20-7-2009, disponível em http://bit.ly/2qIBiXE.

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