Edição 503 | 24 Abril 2017

Leitura de Guimarães Rosa ensina a viver sentindo e dando sentido à vida

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Vitor Necchi

Kathrin Rosenfield afirma que a obra rosiana é um monumento único, quase inexplicável e incomparável na literatura brasileira

Antes mesmo de aprender português, a austríaca Kathrin Rosenfield se fascinou pela escrita de Guimarães Rosa. “A primeira característica que me chamou atenção era a musicalidade da obra. Ela me encantou antes mesmo de eu falar português, ela me seduziu a continuar lendo o que eu mal compreendia (Grande Sertão: Veredas). O segundo fator que tornou esse encanto um fascínio durável foi a descoberta de que esse romance pode ser um guia para o incauto se orientar no Brasil, ou, pelo menos, aceitar a desorientação que é o choque cultural para o forasteiro recém-chegado”, explica a professora radicada no Brasil em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Kathrin é uma entusiasta de Rosa. Para a pesquisadora, ao mesmo tempo em que “frisa e reelabora obras da história da literatura e do pensamento brasileiros, ele inova a língua brasileira como ninguém antes, criando um idioma poético que nos envolve numa aura de simpatia e no encantamento da beleza. Nesse sentido, a obra rosiana é um monumento único, quase inexplicável e incomparável na literatura brasileira”.

Ao projetar o alcance da linguagem rosiana, a pesquisadora afirma que ela “é uma precursora do multiculturalismo – mas de um multiculturalismo que não se fecha, não hostiliza as outras culturas, nem promove uma cultura reivindicando direitos contra as outras”. Para ela, “ler Rosa é aprender a viver menos mecanicamente – viver sentindo e dando sentido à vida”.

Kathrin Rosenfield nasceu na Áustria e vive no Brasil desde 1984. Possui graduação em Letras pela Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (1981), mestrado em Antropologia Histórica pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1981) e doutorado em Ciência da Literatura pela Universidade de Salzburg (1984). É pesquisadora do CNPq e leciona nos programas de pós-graduação em Letras e em Filosofia da UFRGS. Entre outros livros, publicou Desenveredando Rosa: Ensaios sobre a obra de J. G. Rosa (Rio de Janeiro, Topbooks).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o lugar de Grande Sertão: Veredas na literatura brasileira?

Kathrin Rosenfield – Rosa teve – e ainda tem – o poder de revelação. Retomando e modulando o título do famoso ensaio de Euclides da Cunha , Os Sertões, Rosa reiterou de modo poético e envolvente a grandiosa cantoria de Euclides, que foi o primeiro a mostrar aos brasileiros a terra, o homem e a luta que se trava nesse país ignorado pelos que moram nas grandes cidades do litoral. Euclides apresenta as realidades do Brasil com a objetividade de um observador instruído; seu olhar é o do geólogo, do antropólogo e do jornalista fazendo um magnífico panorama da riqueza geográfica e humana do Brasil, ao mesmo tempo que lamenta a ignorância e a indiferença das elites morando preguiçosamente no litoral, fazendo pouco caso das necessidades e dos potenciais peculiares do vasto interior e, em particular, desconhecendo o serrado e o sertão. Rosa interioriza essa crítica da epopeia euclidiana. Suas narrativas respiram não apenas o amor pelos habitantes e as paisagens do sertão, mas mostra também um minucioso conhecimento e uma simpatia humana que redime sua obra da acusação terrível que abre e fecha Os Sertões de Euclides. No ensaio de Euclides, o leitor percorre as três partes – A Terra, O Homem e A Luta –, assistindo de fora a um drama com sangrento desfecho. Grande Sertão: Veredas adota um percurso semelhante, mas o ponto de vista é deslocado para dentro da experiência dos sertanejos. Isso permite ao leitor sentir como eles vivem, sentem e pensam essa realidade e compreender que esse universo é tão rico e inteligente quanto o do litoral – apenas diferente e menos conhecido.

Uma grande gama de figuras – o fazendeiro e o peão, o jagunço e o agregado, o sertanejo e o forasteiro, o padre, comerciantes, meninos, mulheres etc. – encarnam a fascinante diversidade social, política e humana do sertão. Os nomes dos personagens – indígenas, portugueses e afro-brasileiros – aludem à longa história da miscigenação, dando vida às análises que ensaístas como Gilberto Freyre [2] e Sérgio Buarque de Holanda prepararam na forma de ensaios baseados em pesquisas antropológicas e sociológicas. Assim, o Brasil miscigenado e interiorano, anteriormente visto como um estigma ou emblema do atraso, aparece pela primeira vez como uma riqueza – não mais romantizada como no indianismo, mas afirmada e refletida em conjunto com os inúmeros problemas nos quais ela está enredada (exploração e injustiça social, a cordialidade, a falta de educação, entre muitos outros). Ao mesmo tempo em que Rosa frisa e reelabora obras da história da literatura e do pensamento brasileiros, ele inova a língua brasileira como ninguém antes, criando um idioma poético que nos envolve numa aura de simpatia e no encantamento da beleza. Nesse sentido, a obra rosiana é um monumento único, quase inexplicável e incomparável na literatura brasileira.

IHU On-Line – Por que a senhora resolveu investigar esta obra?

Kathrin Rosenfield – Eu era medievista antes de vir ao Brasil, trabalhava com Jacques Le Goff , meu orientador no doutorado, e, portanto, tinha absorvido os ensinamentos da antropologia histórica francesa. Autores hoje muito bem conhecidos como Michel Zink , Jean-Claude Schmitt , Vernant , Vidal-Naquet , Marcel Detienne sempre usavam a literatura e a arte como fontes para a reconstrução do contexto histórico. Esse treinamento me familiarizou com os modos ardilosos como narrativas aparentemente simples – contos, lendas, vidas de santos, mitos indo-europeus ou cristãos etc. – são sempre de novo reutilizados para expressarem reflexões cada vez mais complexas. É claro que isso, e o fato de eu não conhecer ainda muito bem o Brasil, aguçaram meu olhar para a complexidade da obra rosiana.

IHU On-Line – Que atributos mais lhe encantam ou tensionam nesta obra de Guimarães Rosa? Por quê?

Kathrin Rosenfield – A primeira característica que me chamou atenção era a musicalidade da obra. Ela me encantou antes mesmo de eu falar português, ela me seduziu a continuar lendo o que eu mal compreendia (Grande Sertão: Veredas). O segundo fator que tornou esse encanto um fascínio durável foi a descoberta de que esse romance pode ser um guia para o incauto se orientar no Brasil, ou, pelo menos, aceitar a desorientação que é o choque cultural para o forasteiro recém-chegado. Eu me senti um tanto “perdida” como Riobaldo, que em certo momento refere a si mesmo como “pobre menino do destino...” e se compara àqueles cãezinhos vira-lata “que esperam viajante em ponta de rancho”. Então peguei carona no romance de Rosa e desenveredei o sertão.

IHU On-Line – A senhora nasceu na Áustria e fez sua formação em Salzburg e Paris. Quão impactante Grande Sertão: Veredas pode ser para um estrangeiro?

Kathrin Rosenfield – Depende. Quem lê em outra língua, talvez não fique nada impressionado – lembro de minha mãe, que tinha lido em alemão e depois redescobriu um romance totalmente diferente em português. Ela achou muito fraco o Guimarães Rosa em alemão e virou sua grande admiradora depois de relê-lo em português. Recolhi a mesma impressão de leitores na França e na Inglaterra. O impacto grande fica para o estrangeiro que está disposto a entrar na cultura Brasileira.

IHU On-Line – Como a senhora caracteriza a linguagem que constitui a obra de Guimarães Rosa?

Kathrin Rosenfield – A maior inovação linguística de Rosa foi ver que a língua portuguesa do Brasil é particularmente apta a dialogar com outras línguas e culturas. Ele pesquisou e anotou todos os tipos de vocabulários de origem africana, tupi, cabocla, portuguesa, estudando suas misturas locais, ampliando assim o português habitual com uma imensa grama de modos de expressão que mostram a engenhosa criatividade linguística, a beleza e a agilidade intelectual daquilo que então era considerado (e depreciado como) Hinterland, rusticidade provinciana e inculta. Não contente com esse feito, ele enxertou nesse linguajar tão típico para o Brasil reflexões e sentimentos que vêm de uma tradição universal milenar e que foram, ao longo do tempo, refinados como monumentos da altíssima cultura espiritual e literária.

Em outras palavras, a linguagem rosiana é uma precursora do multiculturalismo – mas de um multiculturalismo que não se fecha, não hostiliza as outras culturas, nem promove uma cultura reivindicando direitos contra as outras. O dom poético e a simpatia humana de G. Rosa certamente sensibilizaram o autor pelo fato de que se mover entre línguas e culturas, ter que fazer o esforço de repensar e traduzir o que se pensa numa para uma outra é um riquíssimo aprendizado – talvez o único que nos obrigue a realmente pensar-e-sentir o que é “natural” numa língua, mas não na outra, e, com isso, a revisar os valores e conceitos que parecem óbvios, mas talvez não o sejam.

Acredito que Rosa tinha noção dessa diferença interior que permite e obriga a traduzir os conteúdos universais sempre de novo em diferentes formas de expressão. Cada indivíduo pode fazer a experiência de que sua angústia existencial não é a mesma aos 18 e aos 28 anos, que as esperanças e os medos físicos-e-metafísicos requerem sempre novas traduções ao longo da história da filosofia e segundo o lugar geográfico. Rosa emancipou o sertanejo, evidenciando que ele pensa – e pensa muito bem –, embora numa linguagem que não tem o mesmo refinamento formal (mas tampouco os defeitos) das linguagens intelectuais formalizadas. Rosa reencontra as grandes verdades religiosas e filosóficas, tanto nas falas sertanejas, como na poesia popular, ou nos mitos tupis e africanos, germânicos ou gregos. Ele criou um idioma novo, mas ao mesmo tempo autenticamente brasileiro. Os aparentes “neologismos” e as estranhezas fizeram com que os leitores brasileiros redescobrissem a riqueza da sua própria língua (muito do que parece ser alheio é, de fato, autenticamente brasileiro). Assim, ele integrou as experiências vanguardistas nos hábitos próprios, unindo as formas de expressão mais regionais com um português da cidade e com as línguas de outros mundos. Desta maneira, a sabedoria milenar de outras culturas e as conquistas literárias mais recentes (a livre-associação freudiana e o fluxo de consciência) conservam o sabor autenticamente brasileiro.

IHU On-Line – A aura estética de Guimarães Rosa é um entrave para tradutores?

Kathrin Rosenfield – Sem dúvida, a riqueza estética da linguagem rosiana é um problema. Maior problema, porém, é o contexto. Poucos brasileiros conhecem o sertão e o cerrado e precisam de certo preparo literário e intelectual para apreciar essa realidade mental e geográfica não urbana, não globalizada. O mundo além-Brasil pouco sabe das realidades básicas, e muito menos desse Hinterland que nós brasileiros tivemos que aprender ao longo das últimas décadas. Portanto, faltam certos registros estilísticos e sentimentais para os quais pudéssemos traduzir essa outra realidade brasileira. Precisaria de um grande poeta-pensador que tivesse de recriar na língua de chegada o registro exato no qual as andanças de Riobaldo pudessem fazer sentido.

IHU On-Line – Que questões filosóficas estão presentes em Grande Sertão: Veredas?

Kathrin Rosenfield – Nas ruminações de Riobaldo, são evidentes as questões do bem e do mal, do ser e da aparência, do diálogo socrático em busca da clarificação dos enganos – todo o arco que leva das mitologias mais antigas aos filósofos pré-socráticos, e de Platão ao neoplatonismo cristão. Mas todas essas ideias filosóficas aparecem através de uma lente poética que desfoca, instabiliza as certezas, ironiza as abstrações e opõe às convicções exageradas um ceticismo sério e um humor amável.

Renovando a língua dessa maneira, pensava Rosa, poderíamos renovar todo o nosso modo de estar no mundo. Com essa esperança, ele se vincula com a filosofia poética inaugurada no final do século 18 por poetas-pensadores como Hölderlin e Kleist , Nietzsche , Kafka , Robert Musil – uma tradição que Rosa conhecia e apreciava.

Sendo brasileiro, ele despoja essa tradição de toda a sua superestrutura complicada – ele suprime o linguajar abstrato do idealismo alemão, que sentimos, apesar das tentativas de superação, em Nietzsche e Heidegger . Ele prefere fazer a miscigenação do pensamento poético com os “livros sagrados” do oriente e do ocidente, “bebendo água de todos os rios” – da Bíblia, dos Vedanta e Upanishades, dos mitos indígenas, europeus e hindus, de escritos místicos e reflexões morais. O importante é que essa filosofia não fica na abstração conceitual, mas renasce, de modo concreto, vivo, das experiências dos personagens. Assim, a pedra, o burrinho, o boi ou o jacaré podem aparecer, repentinamente, como revelações da eternidade, do absoluto. Rosa idealiza o sertanejo como um potencial mestre Zen: seus sábios (e loucos) têm uma peculiar aptidão de pensar a partir da concretude presente – por exemplo, daquilo que diz a postura do corpo no espaço, a coisa corporal concreta. É isso que modifica a pessoa, não ideias abstratas, mas a atitude existencial e moral, o sofrimento e o prazer de estar vivo. A linguagem artística torna palpáveis de novo conceitos abstratos como “o infinito” – pensemos apenas nas grandes imagens rosianas –, “o sertão está dentro da gente”, o corpo visto como “raiz da alma” ou a identificação do autor-narrador com o jacaré ou o burrinho. Não se trata de símbolos ou alegorias das abstrações filosóficas, mas de convites para o leitor sentir o que deve ser pensado. É claro que esse convite também exige da parte do leitor ou do interlocutor uma disponibilidade, uma abertura para entrar na experiência vivida de estar no espaço de outro modo: ler Rosa é aprender a viver menos mecanicamente – viver sentindo e dando sentido à vida.

É claro que Rosa leu muito, muita filosofia também. Mas ele é um pensador poético – mais poético que Thomas Mann , por exemplo: jamais ele interromperia a errância labiríntica do seu personagem Riobaldo para deixar outros personagens começarem um debate filosófico, como se cantassem uma arieta no meio da ação – como isso acontece na Montanha mágica , quando Mann opõe ao humanismo esclarecido de Settembrini o jesuitismo fanático de Naphta (ironizando o marxismo de G. Lukacs ).

Rosa entra a tal ponto no universo dos seus personagens que inúmeras ideias filosóficas retornam metabolizadas pelo idioma sertanejo nos seus mundos vividos. Talvez não seja um acaso que as primeiras pesquisas sobre o meio ambiente, iniciadas pelo biólogo alemão von Uexküll , tenham modificado profundamente os hábitos de percepção e o antropocentrismo da cultura ocidental. Rompendo com o privilégio do ponto de vista do observador, Uexküll familiarizou o público culto das primeiras décadas do século 20 com a ideia que diferentes seres vivos têm modos de estar no mundo muito diversos e que é preciso aprender a apreendê-los na sua maneira de ver, viver e construir seus mundos (Welt) internos e externos (Innenwelt, Umwelt), sua própria história e temporalidade . Essa ruptura com o privilégio do ponto de vista universal do observador objetivo e o deslocamento do interesse para as coordenadas subjetivas e contextuais têm muita afinidade com o modo de ver, sentir e escrever de Rosa. Pois ninguém aboliu de modo mais vigoroso o ponto de vista condescendente do observador “de fora”, superando o humanismo sentimental e autoindulgente. Von Uexküll influenciou pensadores como Cassirer e Heidegger, que Rosa conhecia, e sem dúvida tem afinidades com a ideia mestra do famoso ensaio de Heidegger sobre Ser e Tempo. Menciono Heidegger apenas para salientar a diferença imensa entre o pensamento poético e a formalização filosófica. Rosa fazia muita questão de esconder e negar os conteúdos filosóficos que leitores identificam na sua obra. Ele refere-se à abstração filosófica com a metáfora da “megera cartesiana”, a pretensão do pensamento formalizado, res cogitans, subjugando a concretude que deve ser pensada, a res extensa. Quando ele fala da metafísica do sertão ou do gosto especulativo dos sertanejos, está se referindo ao pensamento dentro das coisas concretas.

O distanciamente da filosofia enquanto linguagem abstrata e formalizada pode, às vezes, ser bem explícita, como, por exemplo, na entrevista com G. Lorenz:

Como escritor eu devo prestar conta de cada palavra, pensando-a eté o ponto em que ela se torna novamente vida. A linguagem é a porta para a infinitude, mas ela está, infelizmente, sob uma montanha de cinzas. Devo remover este entulho. Uma vez que a linguagem é a expressão da vida, eu devo constantemente “cuidá-la” (umsorgen). Aí tem um eco de Heidegger. Este erigiu sobre sua sensibilidade pela linguagem toda uma filosofia estranha, mas, eu acho, ele deveria ter ficado com a linguagem. (p. 516)


Não sei se essa observação alude, para além da filosofia, também à malograda tentativa heideggeriana de transformar o impacto estético da linguagem em pensamento, na esperança de tornar o discurso eficaz no mundo real. Mas, com certeza, o pendor metafísico-contemplativo de Rosa tem a ver com os perigos da recuperação prática e ideológica do potencial poético da linguagem. Por isso, Rosa atribui aos “sertanejos” (à gente do sertão mineiro e a si mesmo, mas também a Goethe , Dostoïevski etc.) o pendor valorizado da “especulação” contemplativa. Cuidar poeticamente da linguagem já é, para Rosa, um engajamento sério com a verdade e a ética da vida. Não precisa mais outro engajamento intelectual ou ideológico. As últimas linhas sem dúvida frisam os excessos estilísticos da filosofia de Heidegger, a estranha mistura de lucidez e mistificação quase litúrgica que dissolve em aura pseudorreligiosa a concretude de conceitos forjados com metáforas palpáveis.

Acredito que essas balizas são interessantes para avaliar o engajamento de Rosa, sua afirmação de escrever “contos críticos”, por exemplo. O que está em jogo é a rejeição de todo tipo de dogmatismo e, em particular, a doutrinária recuperação da arte em nome de ideologias da “mudança”.


IHU On-Line – A ambivalência de gênero é um tema central em Grande Sertão: Veredas. Neste sentido, pode-se dizer que Guimarães Rosa foi ousado ao compor Riobaldo-Diadorim há 60 anos?

Kathrin Rosenfield – “Ousado” seria o amor de Riobaldo e Diadorim somente para quem acredita dogmática e radicalmente numa ordem heterossexual. Sentimentos fortes e amizades apaixonadas entre homens eram muito comuns em sociedades que admiravam a valentia viril e dependiam da força guerreira para sustentar seu modo de vida. Até hoje, tem culturas nas quais homens (heterossexuais) expressam sua atração pelo amigo masculino de modo bastante aberto, inclusive com carinhos físicos. É claro que esse tipo de amizade evidencia o lastro da bissexualidade potencial da natureza humana, que conhecemos bem desde Freud. Ao longo do século 19 e do 20, assistimos a diversas ondas de grande tolerância e intolerância quanto às demonstrações abertas desses afetos. É apenas natural e consequente que Rosa tenha identificado uma constelação tão comum também aqui no sertão brasileiro. E se as fantasias de Riobaldo com o corpo de Diadorim podem parecer ousadas para o machismo um tanto bruto que ainda reina em certas camadas do Brasil, Rosa tomou o cuidado de fechar seu romance com a revelação do nome Deodorina. Talvez uma cautela necessária nas circunstâncias...

IHU On-Line – No seu entendimento, qual personagem de Grande Sertão: Veredas é o mais instigante ou elaborado e por quê?

Kathrin Rosenfield – Seria mais fácil responder qual é o personagem menos instigante e elaborado – Otacília, evidentemente. O mais elaborado é Riobaldo – o personagem-narrador. Não preciso insistir que Diadorim é um personagem muito instigante – pois ele é o grande enigma andrógino, que nem no final revela-se bem como mulher, mas como algo que “era”, um encanto que se “desencanta” apenas para de imediato se reencantar. Mas são instigantes também Nhorinhã, Maria da Luz e Hortênsia – essas últimas podem ser imaginadas como mulheres muito além da imaginação sertaneja (no Sertão, elas somente poderiam subsistir como divindades); para fazerem sentido no imaginário urbano culto, temos que vinculá-las com mulheres muito mais modernas: elas têm algo das lésbicas de Baudelaire com o espírito da liberação feminina londrina e parisiense dos anos 1970.

IHU On-Line – A senhora escreveu que Guimarães Rosa tem o mérito de mostrar que o imaginário amoroso é bastante acanhado no Brasil e que se dá um jeito para flexibilizá-lo. Comente sua afirmação.

Kathrin Rosenfield – Mulher encantadora e sofredora – raramente, como em Alencar , uma figura autônoma como Aurélia, espirituosa, forte, cheia de recursos, que consegue impor sua vontade e quebrar as convenções, castigando Fernando.

Papéis do Brasil rural antigo: proprietário de terras, padre, agregados, jagunços, políticos como Zé Bebelo perturbam a ordem estática, o “mulheril” reduzido a esquemas: a moça casamenteira, virgem pura, mulher-esposa-mãe ora feliz, ora infeliz e infiel, ou então as mulheres de costumes duvidosos e prostitutas. Vemos esses esquemas se repetir avançando pelo século 20 adentro – de Mario de Andrade (Amar, verbo intransitivo, 1927) a Lucio Cardoso (Crônica da Casa Assassinada, 1959), até Osman Lins (Avalovara, 1973).

A imagem da feminidade tem na literatura brasileira um leque muito pequeno de facetas. É muito semelhante à imagem feminina na literatura alemã dos tempos de Goethe, na qual a mulher aparece em papéis muito convencionais como: virgem, esposa, prostituta, virago. Os franceses já criticaram essa “pobreza” do “eterno tricô” (paródia do “eterno feminino” goetheano). A androginia de Diadorim, como também a aura quase mítica das damas, ou deuses, da libertinagem Hortênsia e Maria da Luz, são lances muito felizes que permitem a Guimarães Rosa escapar de um imaginário erótico e feminino bastante estreito. É importante destacar que ele “escapa” dentro das possibilidades – e dos limites – tipicamente brasileiros, e nisso consiste a verdade de sua arte. ■

Leia mais

- Sertão é do tamanho do mundo. 50 anos da obra de João Guimarães Rosa. Revista IHU On-Line, número 178, de 2-5-2006; 
- Machado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil. Revista IHU On-Line, número 275, de 29-9-2008.
- A fundição do bem e do mal em Guimarães Rosa. Entrevista com Eliana Yunes, publicada na revista IHU On-Line, número 292, de 11-5-2009.
- Uma carta a Guimarães Rosa. Texto de Marcus Alexandre Motta, publicada na revista IHU On-Line, número 275, de 29-9-2008.
- Guimarães Rosa, um amante do saber. Entrevista com Luiz Rohden, publicada na revista IHU On-Line, número 275, de 29-9-2008.
- Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa. Artigo de Eduardo F. Coutinho, publicado no Cadernos IHU Ideias número 73.
- A exploração do conhecimento racional até seu limite. Entrevista com Kathrin Rosenfiled, publicada na revista IHU On-Line número 475, de 19-10-2015.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição