Edição 503 | 24 Abril 2017

Contra o eufemismo reducionista, a luta por uma flexibilização justa

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Ricardo Machado | Tradução: Walter O Schlupp

Jamie Woodcock analisa como as ocupações mediadas por dispositivos digitais transformaram o que seria a liberdade dos trabalhadores em escravidão ao sistema financeiro

Na disputa narrativa sobre as transformações do mundo do trabalho, o termo “flexibilização” tornou-se um eufemismo quase sempre invocado, mas nem por isso menos poderoso. A questão, porém, é que esta palavra tende a ter a própria complexidade reduzida. “Muitos de nós queremos uma relação de emprego mais flexível, que se adapte a nossas vidas e a outros compromissos. No entanto, muitas vezes essa flexibilidade é oferecida via marketing, mas a realidade é que se trata de flexibilidade apenas nos termos do capital, criando trabalho flexível que assume os riscos do trabalho”, analisa Jamie Woodcock, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “É possível lutar contra a precariedade sem perder a flexibilidade, mas isso exige criatividade para pensar sobre que tipos de demandas podem ser conquistadas”, complementa.

Ao analisar o cenário da precarização do trabalho na Inglaterra, Jamie Woodcock destaca que as novas formas de ocupação mediadas por dispositivos digitais geram subempregos, com falta de garantias e salários baixos. O que está em jogo é a subsunção do trabalho ao capital especulativo. “Essa terceirização é feita mediante classificação errônea, alegando que os trabalhadores na verdade seriam empreiteiros autônomos e independentes. Isso torna as empresas mais atraentes para os investidores potenciais, pois mantém os trabalhadores fora dos livros da empresa e permite que a empresa transfira o risco da demanda para os trabalhadores, ao invés de arcar com esse risco. Não é inovador, exceto no sentido de encontrar uma nova forma de lucrar com mão de obra e trabalho alheios”, critica. “A ascensão dessas empresas tem sido apoiada por um excesso de dinheiro disponível para investimento, o qual precisa ser aplicado, e a ‘economia do biscate’ tornou-se um local para investir, embora a maioria das plataformas ainda esteja por apresentar lucro ou retorno sério”, explica.

Jamie Woodcock é doutor em Sociologia pela Universidade de Londres e tem suas pesquisas voltadas à economia digital e às transformações no mundo do trabalho.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o atual cenário do mundo do trabalho na Inglaterra atualmente?

Jamie Woodcock – O estado atual do mundo do trabalho na Inglaterra caracteriza-se por uma série de tendências no longo prazo. A primeira é a desindustrialização na década de 1970/1980, que levou à substituição dos postos de trabalho da indústria por serviços de baixa remuneração. Isto implicou uma relação de trabalho cada vez mais precária, com aumento do trabalho temporário e de tempo parcial. Em particular, isto envolveu o aumento dos contratos de zero hora (em que os trabalhadores não têm garantia de determinado número de horas semanais de trabalho) e a chamada "economia do biscate [gig]", em que o trabalho é organizado através de plataformas on-line sem proteção tradicional do emprego. Esta precariedade está alcançando cada vez mais categorias de emprego, tanto no setor privado como no público. A segunda tendência importante é o declínio das formas tradicionais de sindicalismo. Os sindicatos restam concentrados no setor público, com perfil etário avançado. Não foram capazes de se organizar com êxito em novos setores, embora haja sucessos emergentes como o IWGB [Sindicato Independente dos Trabalhadores da Grã-Bretanha] a se articular com trabalhadores da Deliveroo [serviço de entrega de refeições, via aplicativo].

IHU On-Line – Como as startups estão transformando o mundo do trabalho?

Jamie Woodcock – As startups estão buscando aplicar o modelo "Uber para X" para descompor setores e indústrias existentes, aplicando o modelo de plataforma que a Uber usou com sucesso para competir com as empresas de táxi existentes. Isso envolve um truque contratual, classificando erroneamente os motoristas como autônomos contratados independentes, eximindo a empresa de suas obrigações, como salário mínimo, pagamento de férias e subsídio de doença [sick pay, pago pelo empregador]. Este tipo de trabalho pode continuar flexível para os trabalhadores [mesmo fora das plataformas digitais], uma vez que no Reino Unido existe uma categoria de emprego para "trabalhadores" diferente de "empregado", que mantém mais direitos do que o estatuto de trabalhador autônomo. O estatuto jurídico em voga cria condições precárias e difíceis, implica perda de impostos para o governo e conduz a piores condições no mundo do trabalho.

IHU On-Line – Quais as questões de fundo, referentes ao mundo do trabalho, por trás do marketing discursivo das startups da moda? Trata-se de uma cortina de fumaça à precarização dos trabalhadores?

Jamie Woodcock – Flexibilidade é um termo poderoso. Muitos de nós queremos uma relação de emprego mais flexível, que se adapte a nossas vidas e a outros compromissos. No entanto, muitas vezes essa flexibilidade é oferecida via marketing, mas a realidade é que se trata de flexibilidade apenas nos termos do capital, criando trabalho flexível que assume os riscos do trabalho. É possível lutar contra a precariedade sem perder a flexibilidade, mas isso exige criatividade para pensar sobre que tipos de demandas podem ser conquistadas.

IHU On-Line – Como estas estratégias de criar empregos por demanda implicam, por exemplo, que existam trabalhadores que não recebem nem mesmo o salário mínimo?

Jamie Woodcock – A "criação" de postos de trabalho por demanda não está satisfazendo as necessidades de muitos trabalhadores desde a crise econômica de 2008. Trata-se, em grande parte, de subemprego, com os trabalhadores assumindo vários “biscates” [gigs] para satisfazer as suas necessidades. O aumento desses tipos de emprego tem sido a premissa de baixos salários e falta de segurança, com muitos trabalhadores ganhando significativamente abaixo do salário mínimo.

IHU On-Line – No cenário atual, como se dão as mobilizações dos trabalhadores?

Jamie Woodcock – A mobilização dos trabalhadores está ocorrendo de maneiras novas e antigas. Por exemplo, os motoristas da Deliveroo se reúnem regularmente nas estradas e perto de restaurantes movimentados, trocando informações de contato e se comunicando em mídias sociais. As greves do ano passado foram feitas em resposta a uma mudança no contrato que a empresa estava tentando forçar, foram enfrentadas com uma recusa de mão de obra e um protesto fora da sede. Não se deve esquecer que os trabalhadores nessas plataformas compartilham uma localização geográfica e permanecem capazes de se comunicar e organizar. Esses tipos de mobilização ocorrem quase que inteiramente fora das estruturas sindicais tradicionais do Reino Unido e estão passando por novos modos de organização, que se adaptam a seus próprios esquemas de trabalho.

IHU On-Line – Como os novos dispositivos digitais reorganizam a forma de mobilização dos trabalhadores em torno de melhores condições de trabalho? De que forma isso ocorre?

Jamie Woodcock – O uso generalizado de dispositivos digitais para organizar os trabalhadores também fornece um novo canal de comunicação para os próprios trabalhadores se mobilizarem. Os portões tradicionais das fábricas mudaram e se dispersaram, mas o capital ainda exige que os trabalhadores se comuniquem e cooperem, com novos pontos de encontro e possibilidades de organização. Muitos desses são experimentos e terão êxitos e fracassos, mas há um processo de recomposição à medida que os trabalhadores aprendem a se organizar nesses novos contextos.

IHU On-Line – De que forma estas mobilizações vão contaminando diferentes tipos de serviços baseados em aplicativos?

Jamie Woodcock – A campanha na Deliveroo foi amplamente compartilhada através das mídias sociais, atingindo trabalhadores em diferentes plataformas e amplo leque de outras pessoas. Esse tipo de visibilidade aumentada pode ajudar a ganhar ímpeto e solidariedade, espalhando a informação sobre iniciativas muito mais rápido do que acontecia anteriormente.

IHU On-Line – Qual a relevância dos sindicatos tradicionais dentro desta nova organização do trabalho e dos trabalhadores? De que maneira a forma tradicional de mobilização se tornou obsoleta?

Jamie Woodcock – Como sindicalista, acredito que é crucial os trabalhadores se organizarem. No entanto, muitos sindicatos estão desconectados das novas condições de trabalho e não são capazes de se organizar dentro delas. Em parte, isso é um reflexo do estado dos sindicatos de hoje, com taxas de adesão decrescentes e concentrados em setores e indústrias tradicionais. Assim sendo, não é muito surpreendente que os sindicatos não se arrisquem a organizar-se nessas novas áreas de trabalho. Mas é preciso tentar combinar as melhores tradições do sindicalismo com as novas experiências de trabalho, procurando métodos de organização adequados. A IWGB está começando a fazer isso, porém mais experimentos são necessários.

IHU On-Line – Qual impacto trouxe à Grã-Bretanha a decisão do Tribunal do Trabalho da Inglaterra, ao admitir que um trabalhador do Uber não é autônomo, mas tem vínculo empregatício? Que tipos de mudanças podem ocorrer nas relações entre prestadores de serviço e as startups? Quais podem ser os efeitos em nível global?

Jamie Woodcock – As ações judiciais que têm acontecido no Reino Unido são importantes, especialmente por causa da errônea classificação dos trabalhadores como autônomos contratados independentes. No entanto, há também o risco de as campanhas acabarem desmobilizadas em função de as pessoas se fiarem no direito do trabalho, em vez de fazerem a iniciativa coletiva conquistar mudanças. Os exemplos mais marcantes foram aqueles que combinaram a auto-organização dos trabalhadores com as ações judiciais, em vez de os trabalhadores ficarem apenas esperando por decisões. Isso enfraquece a base do modelo de negócios que essas empresas começaram a usar, fiando-se em baixo pagamento dos trabalhadores e deixando-os a arcar com os custos acessórios. Para que isso evolua para além dos países localmente é preciso envidar maiores esforços para defender padrões mínimos e demandas conjuntas a fim de melhorar as condições dos trabalhadores.

IHU On-Line – Como as startups de serviço autônomo inauguram um novo tipo de economia formal, a gig economy? No fundo, de que trata essa ideia de gig economy?

Jamie Woodcock – A “gig economy” [economia do bico ou biscate], como tem sido chamada, é uma nova maneira de gerir as empresas pela eficaz terceirização da mão de obra necessária para o trabalho. Essa terceirização é feita mediante classificação errônea, alegando que os trabalhadores na verdade seriam empreiteiros autônomos e independentes. Isso torna as empresas mais atraentes para os investidores potenciais, pois mantém os trabalhadores fora dos livros da empresa e permite que a empresa transfira o risco da demanda para os trabalhadores, ao invés de arcar com esse risco. Não é inovador, exceto no sentido de encontrar uma nova forma de lucrar com mão de obra e trabalho alheios. A ascensão dessas empresas tem sido apoiada por um excesso de dinheiro disponível para investimento, o qual precisa ser aplicado, e a "economia do biscate" tornou-se um local para investir, embora a maioria das plataformas ainda esteja por apresentar lucro ou retorno sério.

IHU On-Line – Dada a atual conjuntura, quais são os limites e as possibilidades para novas organizações no mundo do trabalho?

Jamie Woodcock – A organização dos trabalhadores enfrenta uma série de novos desafios no trabalho. O trabalho foi transformado, os trabalhadores se encontram em situações mudadas, às vezes sem locais físicos de trabalho. No entanto, existe o risco de exagerar a novidade. O trabalho tem sido continuamente transformado ao longo da história, sua composição técnica muda em função de novos processos de trabalho, uso de tecnologia e técnicas de gestão. Isso também acarretou novas composições políticas dos trabalhadores ao resistirem e se organizarem de novas maneiras. A tarefa da pesquisa não é fornecer soluções para os novos desafios de organização, mas explorar como os trabalhadores já estão experimentando novas formas e contribuir para a generalização dos sucessos. ■

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