Edição 502 | 10 Abril 2017

O rastilho de pólvora das notícias falsas no pavio da intolerância

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Ricardo Machado

Nas novas sociabilidades web, as redes sociais permitiram a criação de um terreno fértil para a propagação da desinformação de modo exponencial

A “pós-verdade” foi a palavra do ano em 2016, segundo o dicionário Oxford. Também pudera. A corrida eleitoral nos Estados Unidos, que levou Donald Trump ao posto de presidente de uma das maiores potências mundiais, foi de intensa disputa desde as primárias dos partidos Democrata e Republicano. As redes sociais, entretanto, tiveram papel importante na disputa. Durante esse período, uma notícia chamou atenção, não por sua densidade factual, mas por seu engajamento no Facebook, com mais de 1 milhão de interações, de acordo com informações públicas divulgadas pela própria rede social. O título da matéria era “Papa Francisco choca o mundo e anuncia apoio a Donald Trump” e versava sobre uma suposta crítica do pontífice à ineficiência do FBI em investigar Hilary Clinton, adversária no pleito.

Mergulhado no centro da disputa presidencial dos Estados Unidos, o papa Francisco, que por diferentes razões tem chamado atenção em âmbito global por sua atuação geopolítica, tornou-se, de acordo com esta notícia, “cabo eleitoral” de Trump. O problema, no entanto, é que a notícia é falsa. Assim como eram mentirosos milhares de outros conteúdos que circularam na rede. Na era da comunicação instantânea, compartilhar tornou-se um imperativo muito mais forte que apurar. Isso decorre, entre outros motivos, do fato que o Facebook e seu algoritmo levam a sério a desinformação, como o próprio Zuckerberg escreveu em uma postagem (em inglês) dias após o resultado da eleição de Donald Trump.

Embora Mark Zuckerberg tenha classificado como “uma bobagem” a ideia de que o compartilhamento de notícias falsas no Facebook tenha influenciado o resultado da eleição presidencial nos Estados Unidos, foi ele próprio quem reconheceu que é necessário criar um algoritmo mais sofisticado de identificação de notícias falsas. O recuo de Zuckerberg se deu em meio à contestação de engenheiros que trabalham no Facebook e que concederam entrevista anonimamente ao Buzzfeed News.

Ao analisar o fenômeno, 0 professor e coordenador do curso de Comunicação Digital da Unisinos, Daniel Bittencourt, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, complexifica a abordagem. “Não cabe ao Facebook resolver essa questão, até porque ele se beneficia dessa lógica entrópica dos sites de redes sociais - as pessoas passam mais tempo discutindo a veracidade ou não das informações que ali são compartilhadas”, explica. No entanto, chama atenção para a necessidade de pensarmos menos no sentido tecnológico e mais no âmbito social. “Como bom mcluhaniano, não acredito que a resposta seja técnica ou tecnológica. McLuhan falava, na década de 1960, numa espécie de letramento da audiência sobre os meios de comunicação. Sempre acreditei no poder mediador das pessoas, em sua capacidade de discernimento e de aprendizado ao longo do tempo. Passa por um amplo processo cultural, e todo processo cultural leva algum tempo”, aponta.

Para se ter uma dimensão mais precisa do que significa a propagação das chamadas fake news, tomemos em conta o seguinte cenário. No primeiro trimestre da campanha eleitoral nos Estados Unidos, entre fevereiro e março de 2016, o engajamento nas redes sociais de notícias baseadas em fatos reais era de 12 milhões de interações, contra 3 milhões das notícias falsas. À medida que o dia da eleição foi se aproximando, as proporções inverteram-se, até que na semana da votação as notícias falsas alcançaram 8,7 milhões de compartilhamentos e ultrapassaram as verdadeiras, com 7,3 milhões de interações. A apuração leva em conta o relatório apresentado pelo site buzzsumo.com, que mede engajamento de conteúdos web.

Para Ralph Keyes, autor do livro The post-truth era (New York: St. Martin's Press, 2004), a prevalência das notícias falsas na web torna ainda mais difícil as definições do que é, de fato, verdadeiro. Keyes conversou com a reportagem da IHU On-Line por e-mail, em que considerou que “a perda da confiança é a principal desvantagem na era da pós-verdade, tanto na política quanto em outras áreas”. Ao analisar particularmente o fenômeno Trump, o autor sustenta que muito de sua popularidade ocorreu porque ele “deu voz a muitas queixas dizendo o que eles [a população] queriam ouvir, não importando se as informações eram verdadeiras ou não”.

O fenômeno brasileiro

No Brasil, qualquer semelhança com o caso dos Estados Unidos não é mera coincidência. De acordo com dados apurados pelo Buzzfeed Brasil, o número de compartilhamentos de notícias falsas relacionadas à operação Lava Jato, em 2016, foi cerca de um terço maior que as verdadeiras. Enquanto o engajamento no conteúdo falso foi de 3,9 milhões, as notícias apuradas e fundamentadas de modo empírico tiveram 2,7 milhões de interações. Embora as médias de acessos apresentem um panorama geral, elas não ajudam muito na interpretação do fenômeno. Isso porque na lista das dez notícias verdadeiras mais acessadas, somente a matéria do G1 “Por 10 votos a 0, STF decide aceitar denúncia, e Eduardo Cunha vira réu” soma mais de 1,1 milhão de compartilhamentos. Todas as demais notícias verdadeiras mais compartilhadas não somam mais que 350 mil interações.

Já no que se refere às notícias falsas, há um equilíbrio maior entre o volume de compartilhamento dos conteúdos. A notícia com maior acesso, atualmente fora do ar, tinha como manchete “URGENTE: Bolsonaro é citado na Lava Jato”, com mais de meio milhão de interações. Na listagem completa, pelo menos quatro notícias têm mais de 400 mil compartilhamentos e outras quatro mais de 300 mil. Dispersas na rede, há, porém, uma infinidade de artigos e conteúdos totalmente desprovidos de valores noticiosos, apuração jornalística e até mesmo de relação com o mundo concreto. Essa miríade forma a constelação de notícias falsas que iluminam uma parte significativa do debate público nas redes sociais. Ainda que tais conteúdos sejam relativamente impermeáveis aos setores mais esclarecidos, embora eles não estejam imunes, tais produções são capazes de alimentar todo um imaginário coletivo baseado simplesmente em mentiras, mas com implicações sociais verdadeiras.

Evidentemente a produção de notícias falsas serve aos mais variados interesses políticos. No entanto, essa prática é reveladora de um aspecto social ainda mais decisivo em nosso tempo, que é a dimensão do intenso controle micropolítico na era da web. Isso se deve à forma pela qual os sites e as redes sociais são construídos tecnicamente, permitindo a produção de relatórios detalhados de acesso, o que gera, por sua vez, a venda de espaços publicitários nas páginas com volumes expressivos de visitas. Diferente das sociedades de comunicação de massa, pautadas mais pela lógica da disciplinaridade, as metrópoles contemporâneas funcionam ao modo de rede, menos hierarquizadas e com uma capacidade de penetração mais dispersa, embora não menos impactante.

Outro efeito bastante decisivo nas sociedades das interações mediadas por dispositivos conectados à internet é a criação de “bolhas sociais”, a quais funcionam a partir das lógicas dos algoritmos de redes sociais, como Facebook e Twitter, que apresentam a linha do tempo com base no perfil de interações; isto é, tendem a aparecer com mais frequência na página dos usuários aqueles conteúdos compartilhados pelas pessoas com as quais mais nos relacionamos. É nesta dinâmica que as fake news encontram um ambiente propício para se disseminarem. “Compartilhamos com mais frequência aquilo que tem relação direta com o nosso credo, e desqualificamos o que confronta nossas convicções”, frisa. “Para alguns segmentos da sociedade e de usuários de sites de redes sociais, há, ainda, a Suspensão da Verdade – a “informação” é dividida com seus seguidores independentemente de guardar relação e proximidade com fatos reais. Esses dois fatores – um ético e outro estético – funcionam para impulsionar a proliferação de boatos, notícias falsas ou fatos distorcidos para que caibam no Campo de Distorção da Realidade de cada um de nós – termo tão bem cunhado pelo biógrafo de Steve Jobs, Walter Isaacson, para explicar por que as histórias do fundador da Apple eram moldadas sob um ângulo que melhor o favorecesse (não importando se fosse verdade ou não)”, complementa.

A convergência tecno-estética de nosso tempo nos jogou em um espaço digital favorável para a propagação de conteúdos falsos, impulsionado, também, pela velocidade em que tais trocas de informação ocorrem. “As notícias falsas se propagam numa velocidade impressionante - tanto por quem nelas acredita, quanto por quem as combate. É um rastilho de pólvora aceso dentro de um paiol coberto de munição. E redes como Facebook são o melhor lugar para que se toque fogo nesse pavio”, pondera Daniel.■

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