Edição 501 | 27 Março 2017

Independência ou Guerra no Saara Ocidental

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Rodrigo Duque Estrada e Renatho Costa

Diretores de documentário sobre o conflito do Saara relatam situação de conflito iminente no Norte da África

Nos acampamentos de refugiados, a organização política impressiona a qualquer estrangeiro. Em meio às adversidades climáticas e à carência de recursos – os saharauis sobrevivem basicamente de ajuda humanitária –, uma democracia pujante e uma sociedade igualitária foi construída no deserto dos desertos, com instituições representativas plenamente operantes e políticas públicas com altos índices de inclusão social.

Rodrigo Duque Estrada é internacionalista e Renatho Costa é professor de Relações Internacionais da Unipampa, campi de Livramento.

Eis o artigo.

Um século de colonização espanhola. Quatro décadas de ocupação militar do Marrocos. Vinte e seis anos de fracasso retumbante da Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental – Minurso. O saldo não parece ser nada favorável aos saharauis, povo nômade do norte da África que, mesmo negligenciados pelo mundo, construiu um Estado-em-exílio na região mais inóspita do deserto, a Hamada. Cercados por milhões de minas terrestres e divididos por um muro com mais de 2.740 km de extensão, construído pelo então rei do Marrocos, Hassan II, tanto os saharauis que vivem nos acampamentos de refugiados, na Argélia, como os que vivem nas terras ocupadas sentem e lamentam que os ventos da guerra aproximam-se uma vez mais. “Independência ou Guerra” é uma expressão que frequentemente ouvimos durante nossa viagem ao Saara Ocidental, em dezembro de 2016, para a realização de um documentário sobre a última colônia africana.

A Frente de Libertação de Saquía el Amra e Río de Oro (Frente Polisário), representante legítima do povo saharaui de acordo com o direito internacional, ainda aposta na resistência pacífica. “Ainda possuímos um fio de esperança”, contou-nos em entrevista Ibrahim Gali, Presidente da República Árabe Saharaui Democrática (RASD). Após quase vinte anos de luta armada contra o imperialismo financiado por Estados Unidos, França, Israel e monarquias do golfo árabe, a Frente Polisário assinou, em 1991, um acordo de cessar-fogo com o Marrocos, e creditou à ONU a realização de um referendo de autodeterminação. A resposta seria simples: independência ou anexação à jurisdição marroquina, que havia invadido o território em 1975, logo após a retirada da Espanha e em retaliação à opinião consultiva da Corte Internacional de Justiça, que em outubro daquele ano havia rejeitado a tese de que o Saara Ocidental pertencia ao Marrocos. Nos acampamentos também ocorre uma revolução de costumes: “Nós mulheres construímos os acampamentos de refugiados e a vida política. Lutamos diariamente por uma sociedade mais justa, onde as mulheres sejam protagonistas da luta contra a opressão”, contou-nos Fatima Mehdi, presidente da Associação Nacional da Mulheres Saharauis, uma das primeiras organizações de resistência política, criada em 1974.

Malogrado o referendo, a Frente Polisário obteve, no entanto, inúmeras vitórias políticas e culturais em sua resistência ao longo dos anos. Na década de 1980, a Organização da Unidade Africana – hoje União Africana (UA) – admitiu a RASD como membro pleno, causando a imediata retirada do Marrocos da organização e levando ao seu isolamento político no continente. Hoje são mais de 80 países que reconhecem a independência do Saara Ocidental, e, mais recentemente, a Frente Polisário ganhou uma batalha jurídica inédita na União Europeia, quando sua mais alta corte reconheceu a separação entre o que é território marroquino e saharaui, excluindo assim o Saara Ocidental de tratados comerciais que a monarquia mantém com a órgão supranacional.

Mesmo com a solidariedade internacional, capitaneadas principalmente pela Argélia e Cuba, ao lado de diversas associações civis ao redor do mundo, as vitórias que os saharauis tiveram não suplantaram as ambições geopolíticas do Marrocos, hoje lideradas pelo monarca absolutista, Mohamed VI. Por traz da imagem geralmente propagada de “país democrático” e “ponte entre ocidente e oriente”, mascara-se uma brutal violação aos direitos humanos. Nos territórios ocupados, os saharauis vivem sob constante medo da repressão e da tortura. Sendo proibida a liberdade de expressão e associação política, os saharauis organizam-se clandestinamente para combater o processo de colonização e o espólio dos seus recursos naturais (o Saara Ocidental possui uma das maiores reservas de fosfato e uma das costas pesqueiras mais abundantes no mundo). Tamanho é o esforço de silenciamento que o lobby marroquino investe no mundo inteiro, que muitos poucos sabem que foi num campo de protesto nos territórios ocupados que desencadeou o processo da Primavera Árabe. Antes do fatídico evento em que um tunisiano ateou fogo sobre o próprio corpo em praça pública, os saharauis se reuniram em Gdeim Izik para exigir independência de seu território, e foram brutalmente dispersados pela polícia marroquina. Quando fomos a Laayoun, capital do território ocupado, para entrevistar ativistas saharauis para o documentário, a sensação era que estávamos num Estado policial sob regime de exceção. Éramos seguidos a todo o momento por policiais à paisana, que frequentemente nos paravam, como se estivéssemos em checkpoints, perguntando o que fazíamos, se tínhamos “conhecidos ou contatos no facebook com pessoas daqui”.

O Brasil é um dos únicos países na América Latina, ao lado da Argentina e do Chile, que ainda não reconhece a independência do Saara Ocidental. Oficialmente, o Itamaraty se posiciona em favor do processo de paz da Minurso, inclusive tendo contribuído com o envio de observadores militares à operação. No entanto, após quase três décadas de fracasso, a maioria dos saharauis percebe a Minurso como um símbolo de normalização da ocupação marroquina. Frente a um opressor e um oprimido, a posição de neutralidade não resolve, mas mascara a realidade política, contribuindo para um processo de violência sistemática. Além disso, o Brasil importa recursos ilegais dos territórios ocupados, como fosfato e sardinha, constituindo uma violação aos instrumentos do direito internacional que versam sobre territórios não-autônomos. O documentário que estamos dirigindo, “Um Fio de Esperança: Independência ou Guerra no Saara Ocidental”, visa questionar justamente a posição do Brasil, e conscientizar da necessidade de solidariedade com a causa saharaui, na medida em que o apoio à autodeterminação e a solidariedade com os povos oprimidos constituem, supostamente, os pilares fundadores da política externa brasileira.■

Expediente

Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf Paes Leme

Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

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