Edição 501 | 27 Março 2017

A poderosa imaginação de Darcy Ribeiro

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João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado

André Borges Mattos analisa a obra de um dos intérpretes do Brasil que transitou em diferentes campos do conhecimento, da antropologia à educação

As contradições que marcam a história social brasileira, profundamente pautada por um processo contínuo de discriminações e desigualdades, é o pano de fundo em que Darcy Ribeiro debruça seu pensamento. Sua obra intelectual, como registra André Borges Mattos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, mostra “uma preocupação com as parcelas marginalizadas da população brasileira e com possíveis soluções para os graves problemas que o país já enfrentava naquela época [a partir dos anos 1950]. Ou seja, primeiro os indígenas, depois, a educação – ou a falta dela”.

Perseguido pela ditadura militar, Darcy deixou o Brasil após o golpe civil-militar de 1964, quando passou a morar em diferentes países da América Latina. Com o retorno do exílio, no final dos anos 1970, Darcy voltou ao cenário político nacional, inicialmente no governo do Rio de Janeiro, mas manteve certa distância da academia. “Seja como for, de um ponto de vista sociológico, gosto de pensar que as trajetórias de Darcy Ribeiro e da antropologia brasileira, a partir de certo momento, tomaram rumos distintos e não mais conseguiram se reconciliar. O que explica porque, após o seu retorno ao país, no final dos anos 1970, ele não conseguiu reinserir-se na academia e no campo da antropologia em sentido mais estrito”, pontua André.

André Borges de Mattos é antropólogo e autor de uma pesquisa sobre a vida e a obra de Darcy Ribeiro que resultou na tese Darcy Ribeiro: uma trajetória (1944-1982), defendida em 2007 no Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp. Atualmente é professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que movia Darcy Ribeiro? Que perspectivas e pensamentos o acompanharam nas mais diferentes fases de sua vida?

André Borges de Mattos - De uma forma geral, Darcy Ribeiro foi um apaixonado pelo Brasil. Além disso, como um típico intelectual público comprometido com a prática, sua obra foi escrita com o intuito de transformar a realidade. Pode-se perceber isso claramente em seus estudos sobre os índios brasileiros, como é o caso do emblemático Os Índios e a Civilização (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), ou em seus livros sobre o Brasil e a América Latina. Mas se olharmos mais de perto, perceberemos, tanto na obra quanto nos projetos em geral, feições variadas oriundas de diversas influências e perspectivas teóricas que foram incorporadas cumulativamente em momentos distintos. É neste sentido que podemos falar de “fases” da vida de Darcy Ribeiro.

Nos anos 1940 e 1950, por exemplo, quando no Serviço de Proteção aos Índios – SPI, Darcy escreveu livros e idealizou projetos fortemente motivado por seu envolvimento com os povos indígenas, os quais, como herdeiro de Rondon , ele passou a defender com ardor. Todas as iniciativas colocadas em prática no SPI guardavam estreita relação com este compromisso. Já no plano teórico, sua produção revela a influência de “clássicos” da época, como a análise funcionalista, além de outros, que ele aprendera com seus mestres da Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo. Podemos dizer, portanto, que este foi o período de formação de Darcy Ribeiro em que ele efetivamente aprendeu a fazer antropologia e a utilizar o seu referencial teórico e metodológico a favor dos povos indígenas.

Isso começa a mudar na segunda metade dos anos 50, quando Darcy aproxima-se do educador Anísio Teixeira e, após deixar o SPI, ingressa no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais – CBPE. Daí em diante surgem projetos mais ligados à educação, que aos poucos se torna um novo espaço de luta. Em um interessante livro sobre esta fase, a pesquisadora Helena Bomeny identifica a influência da Escola Nova no pensamento de Darcy Ribeiro. Aí já é possível perceber o papel de Anísio Teixeira na construção de sua trajetória, intelectual muito admirado e respeitado por ele, que foi um dos principais expoentes desta corrente no Brasil. Mas, como tento mostrar em minha pesquisa, não se pode dizer que houve uma ruptura em seus projetos ou áreas de atuação. Ao contrário, o que se percebe é que a causa da educação representa uma reformulação de preocupações que já existiam durante suas atividades no SPI. Isto é, uma preocupação com as parcelas marginalizadas da população brasileira e com possíveis soluções para os graves problemas que o país já enfrentava naquela época. Ou seja, primeiro os indígenas, depois, a educação – ou a falta dela.

A partir dos anos 1960, Darcy torna-se finalmente um intelectual mais completo e diversificado, comprometido com questões ainda mais amplas. Destacam-se neste período sua atuação como ministro no governo de João Goulart e a experiência do exílio, que o obrigou a viver em diferentes países da América Latina e a voltar aos trabalhos acadêmicos. Uma vez mais, isso não o leva a abandonar os temas anteriores, mas como exilado seu pensamento volta-se para o que ele passou a considerar uma necessidade premente de entender o processo histórico que colocava as sociedades em patamares de desenvolvimento tão distintos. Sobretudo quando comparamos, por exemplo, a Europa ou os Estados Unidos, ricos, e a América Latina, pobre. Essa foi a base de seus Estudos de Antropologia da Civilização.

Após o seu retorno ao Brasil, no final dos anos 1970, Darcy Ribeiro continuou sua luta a favor do Brasil, que se tornou a sua grande causa. Principalmente como político. A partir de então, foram inúmeros os seus projetos e em áreas tão diversas que é difícil listá-los. Mas certamente o desejo de transformar a educação, que o acompanhou até o fim da vida, merece destaque.

IHU On-Line - E como compreender sua obra antropológica?

André Borges de Mattos - Por sua diversidade, é difícil classificar a obra antropológica de Darcy Ribeiro. Se compararmos, por exemplo, seus primeiros estudos sobre os índios do Brasil, escrito nos anos 1940 e 1950, com os Estudos de Antropologia da Civilização, escrito a partir dos anos 1960, veremos que tanto a perspectiva teórica quanto a amplitude temática modificam-se substantivamente. Em meu trabalho de doutorado, sugiro que isso se relaciona com suas múltiplas experiências, sempre uma base para seus escritos. Neste sentido, o exílio é muito interessante porque mostra como Darcy Ribeiro começou a distanciar-se da antropologia no Brasil, e em certo sentido até mesmo daquela que ele praticava, principalmente no que se refere ao recorte empírico. Lembremos que nos anos 1960 diversos países do continente, a começar pelo Brasil, sofreram graves crises políticas decorrentes de golpes militares e de regimes autoritários.

Era natural, portanto, que Darcy, sempre preocupado em conectar teoria e prática, logo sentisse a necessidade de entender os problemas enfrentados primeiro pelo próprio país e depois pelos países que o acolheram. Só que, para uma abordagem de tamanha amplitude, ele precisava de um novo aporte teórico que pudesse dar conta de uma perspectiva histórica de longo alcance, algo incomum na antropologia, que sempre privilegiou objetos mais limitados espacialmente, como os pequenos grupos que, obviamente, não são menos importantes. Esta nova perspectiva, ele encontrou em alguns autores da antropologia norte-americana. Só que este foi um caminho trilhado de forma independente, pois, naquele mesmo período, a antropologia se consolidava no Brasil como uma disciplina de excelência, mais acadêmica, que logo incorporou outras referências teóricas e perspectivas de engajamento. Como observei em meu trabalho de pesquisa, o resultado não poderia ser senão uma rejeição de Darcy e de sua obra pela antropologia e mesmo pela academia, tão logo ele retorna do exílio, no final dos anos 1970.

IHU On-Line - Por que sua influência intelectual no campo da antropologia no Brasil parece minimizada?

André Borges de Mattos - Apesar da evidente tensão que existiu entre Darcy Ribeiro e a academia, de uma forma geral, seria injusto dizer que sua influência na antropologia foi minimizada. Pelo menos quando pensamos na produção mais etnológica de sua primeira fase. Neste sentido, ele foi senão o único, certamente um dos principais fundadores da antropologia no Brasil. E isso dificilmente alguém poderia contestar. Sua obra sobre os indígenas brasileiros abriu um enorme leque de questões e reflexões e teve importantes continuadores, como Roberto Cardoso de Oliveira . Naturalmente, como uma obra escrita há aproximadamente 70 anos, ela não poderia ser atual no que se refere ao seu arcabouço teórico. Afinal, aqui como em qualquer lugar, a antropologia se desenvolveu, incorporando novos conceitos e abordagens metodológicas. Neste sentido, é compreensível que sua obra etnológica seja vista hoje de uma perspectiva preferencialmente histórica, como são as obras de outros autores importantes da antropologia em todo o mundo. Mas a marca de sua antropologia fortemente comprometida com os grupos indígenas permanece atual e possui inúmeros expoentes.

Agora, quanto aos Estudos de Antropologia da Civilização certamente existe um maior distanciamento, a meu ver, devido à sua abordagem teórica e, como mencionado antes, à forma como ele decidiu construir o seu objeto de análise. Sem falar no fato de que em alguns momentos Darcy Ribeiro teceu duras críticas à antropologia brasileira, que ele acreditava ter traído o compromisso com a causa indígena e de outros sujeitos que são nossos “objetos” de estudo. É uma crítica exagerada e até mesmo injusta, mas que talvez faça sentido se a olharmos a partir de sua dolorosa experiência de exilado e ainda considerando a forma como a própria antropologia alijou Darcy. Seja como for, de um ponto de vista sociológico, gosto de pensar que as trajetórias de Darcy Ribeiro e da antropologia brasileira, a partir de certo momento, tomaram rumos distintos e não mais conseguiram se reconciliar. O que explica porque, após o seu retorno ao país, no final dos anos 1970, ele não conseguiu reinserir-se na academia e no campo da antropologia em sentido mais estrito.

IHU On-Line - No que consistia a perspectiva de transdisciplinaridade, transversalidade, na obra, nas pesquisas e na forma de trabalho de Ribeiro?

André Borges de Mattos - Transdisciplinaridade e transversalidade são conceitos espinhosos que talvez sejam compreendidos de forma mais clara quando vistos sob a ótica da prática. Se pensarmos que a feição política de Darcy Ribeiro não se dissocia de sua obra, então fica mais fácil entender sua perspectiva transdisciplinar. Com a ressalva de que alguns de seus primeiros trabalhos não tinham esta característica. Eram estudos de antropologia no sentido mais estrito. Porém, conforme mencionei anteriormente, para falar do Brasil, da América Latina e de outros temas tão amplos, foi necessário recorrer a um arsenal igualmente amplo de conhecimentos, que vai de pensadores brasileiros e latino-americanos a Marx , além dos antropólogos norte-americanos. De todo modo, é importante deixar claro que Darcy Ribeiro foi um intelectual com uma imaginação poderosíssima. Ele foi, portanto, um “criador”, no sentido mais pleno da palavra. Isso significa que, apesar de sua sólida formação intelectual – ou talvez por causa dela –, ele também produziu um pensamento próprio, com categorias e conceitos que não se confundem com a de outros grandes autores. Por isso ele mesmo se tornou um grande autor, um dos maiores de nosso país.

IHU On-Line - O senhor trabalhou com os arquivos pessoais de Darcy Ribeiro. O que esses documentos revelam do pensador?

André Borges de Mattos - Trabalhei com o acervo pessoal de Darcy Ribeiro na época em que realizava minha pesquisa de doutorado, na qual busquei entender a trajetória do autor em um período de aproximadamente 40 anos, isto é, dos anos 1940 aos anos 1980. Note-se, portanto, que não escrevi uma biografia de Darcy Ribeiro e tampouco tentei entender toda a sua vida. Dito isso, creio que o principal ganho dessa pesquisa, no acervo pessoal de Darcy, foi a possibilidade de analisar os acontecimentos com um olhar mais próximo da época e não a partir de uma narrativa pronta e escrita posteriormente, quando já se conhecia o fim da história. O que tentei mostrar, como fizeram outros estudiosos, a partir de um recorte temporal, é que uma vida pode ser narrada de diferentes formas, dependendo do olhar do narrador e dos acontecimentos privilegiados na narrativa. E que, se bem narrada, ela pode ajudar a elucidar o contexto mais amplo em que se desenvolveu.

É óbvio que uma boa parte dos fatos da vida de Darcy Ribeiro são conhecidos – e bem conhecidos – até porque, além de uma figura pública, ele foi um grande narrador de si mesmo. Mas outros, nem tanto. Alguns documentos revelam, por exemplo, como era Darcy Ribeiro no período inicial de sua carreira de antropólogo, portanto jovem e indeciso, buscando algum lugar em um campo científico em fase também inicial de formação. Além disso, existe um número enorme de correspondências pessoais trocadas com colegas de exílio, intelectuais e pesquisadores, entre outros, que permitem acompanhar com muito mais detalhes o surgimento e o desenvolvimento de ideias e projetos que culminariam em grandes obras ou escritos, como os cursos criados por ele, O Museu do Índio, a Universidade Brasília – UnB, além dos próprios livros. Documentos, evidentemente, produzidos quando o resultado ainda não era conhecido, o que os tornam interessantíssimos como reveladores dos dilemas vivenciados pelo autor.

Resumindo, em conjunto, esses documentos ajudaram a entender melhor não só a vida de Darcy, de um ponto de vista biográfico, mas também como ele foi importante, por exemplo, para a história da antropologia, como um incrível idealizador de projetos e autor de obras originais e pioneiras, ou para a política brasileira, ao mesmo tempo em que foi um homem de seu tempo, limitado pelas circunstâncias, como todos nós somos.


IHU On-Line - No que consistia sua concepção de universidade? E em que medida ele consegue pôr em prática essa concepção na fundação da Universidade de Brasília?

André Borges de Mattos - Darcy Ribeiro foi autor de inúmeros projetos institucionais ligados à educação, como os cursos para formação de pesquisadores criados no Museu do Índio e no CBPE ao longo dos anos 1950. Já a universidade, para Darcy Ribeiro, era uma instituição estratégica para o desenvolvimento de uma nação. Não foi à toa que no Brasil e em outros países, durante o exílio, ele idealizou ou “reformou” universidades, como ele gostava de dizer. Este foi, portanto, um tema bastante importante em sua trajetória.

A Universidade de Brasília fazia parte de um projeto utópico e não por acaso Darcy foi uma das figuras mais importantes no processo de sua criação. É que de certa forma ele passou a compartilhar o entusiasmo da onda modernizadora do país, iniciada no governo de Juscelino Kubistchek , que teve na criação de Brasília um de seus símbolos mais expressivos. E, com sua incrível energia e capacidade empreendedora, logo se pôs a frente da difícil empreitada de construir uma universidade na nova capital. Desta forma, ao elaborar o seu projeto, Darcy pensou em uma instituição inovadora, voltada para uma formação de excelência não obstante atrelada às necessidades de desenvolvimento do país. Infelizmente, este projeto ambicioso, pouco depois de concretizado, sofreu um duro golpe com a investida da ditadura militar. O famoso episódio de intervenção na UnB, que levou à perseguição de docentes e a um pedido de exoneração em massa, é descrito com muita tristeza pelo próprio Darcy. De certa forma, foi um momento de interrupção do projeto. Mas se pensarmos na excelência da UnB, hoje, trata-se de um projeto vitorioso.

IHU On-Line - Qual o legado de Darcy Ribeiro?

André Borges de Mattos - Darcy nos deixou um enorme legado. Pensemos, por exemplo, nos projetos de sua autoria ou dos quais ele fez parte e que se tornaram realidade na forma de instituições ou espaços públicos, como o Museu do Índio, a UnB, o Memorial da América Latina, os CIEPs, o Sambódromo, entre outros. Também não podemos esquecer sua luta incansável pelos indígenas, pela educação, pela cultura ou pelo Brasil, um exemplo de conduta sobretudo nos tempos atuais, em que estamos nos acostumando a conviver passivamente com uma realidade tão dura que ainda mata e exclui milhões. Mas eu destacaria sua obra como a parte mais expressiva de seu legado. Neste sentido, Darcy Ribeiro permanece como um dos intelectuais mais importantes de toda a tradição do pensamento social brasileiro. Poucos – e não só no Brasil – conseguiram produzir uma obra tão ampla e tão diversificada, que inclui romances, poesia, reflexões diversas, além de estudos científicos. No conjunto, uma produção monumental que continua imprescindível e que para nós é um grande patrimônio. ■

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