Edição 501 | 27 Março 2017

A paixão de Scorsese

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Fernando Del Corona

O diretor de Silêncio estudou para ser padre antes de optar pelo cinema, e sua relação com a própria fé aparece em filmes desde o começo da carreira

A história da produção de Silêncio, o mais recente filme do veterano Martin Scorsese, se tornou uma lenda contada por mais de 20 anos por todos que acompanham a obra do diretor. Scorsese teria ganhado o livro, escrito por Shūsaku Endō em 1966, do reverendo Paul Moore, em 1988 – o mesmo ano em que dirigira A última tentação de Cristo, que gerara considerável polêmica nos Estados Unidos por sua representação hiper-humanizada de um Jesus que teme, peca e se arrepende. Ele teria lido o romance no mesmo ano, enquanto viajava para o Japão para atuar em Sonhos, de Akira Kurosawa. Assim que retornou para os Estados Unidos, adquiriu os direitos de produção, que deveria começar em 1990, e a primeira versão do roteiro foi escrita em 1991. Insatisfeito, Scorsese e o co-roteirista Jay Cocks trabalharam na história por mais de uma década. No caminho, Daniel Day-Lewis, Gael García Bernal e Benício Del Toro se envolveram e se afastaram do projeto. Em 2013, finalmente, depois de 23 anos no limbo, Scorsese afirmou que se recusava a fazer outro filme antes de Silêncio. Esse resumo da complexa produção do filme deve ser levado em consideração para se entender o valor que esta obra tem para o diretor.

A história – que já havia sido adaptada para o cinema em 1971 por Masahiro Shinoda – se passa no Japão do século 17, onde o Cristianismo fora banido e seus divulgadores, caçados ferrenhamente pelo governo, e para onde dois jovens jesuítas portugueses, Rodrigues (Andrew Garfield) e Garupe (Adam Driver), se voluntariam para viajar em busca de seu mentor, padre Ferreira (Liam Neeson), que desaparecera e, supostamente, renunciara sua fé publicamente.
Durante sua jornada pelo Japão, os dois jesuítas são confrontados com os limites da sua própria crença, inabalável no começo, mas que, lenta e certamente, começa a ser questionada. Em um diálogo com Rodrigues, um dos oficiais responsáveis pela caça e erradicação (Issei Ogata) se refere ao Japão como um pântano, onde a semente do catolicismo não pode dar frutos.

Silêncio é um filme difícil. Duro em suas exibições francas de tortura e impassível diante do sofrimento de seus personagens, parece evocar o próprio Deus a quem Rodrigues tão fervorosamente procura, sem resposta. A trilha sonora é quase inexistente. As poucas notas ouvidas parecem distantes e frequentemente abafadas pelos sons da natureza, que se tornam uma trilha por si só – um contraste entre a natureza e o humano, com a primeira frequentemente sobrepondo o segundo. Essa relação é constantemente elaborada por Scorsese e por seu diretor de fotografia, Rodrigo Prieto: os quadros se enchem com a vastidão dos cenários, das montanhas e do mar, da chuva e das névoas que envolvem e se agigantam diante da pequenez dos personagens. Em uma cena em particular, a câmera se afasta de Rodrigues, abandonando-o no meio da floresta. Da mesma maneira, a natureza é usada pelos japoneses na tortura dos fiéis: camponeses são crucificados diante das ondas e – diante dos olhos cheio de dor e dúvida de Ferreira – a água fervente de fontes termais pinga em outros.
No filme, a presença ou ausência de Deus se faz sentir em todos os detalhes. Se está na enormidade dos cenários, também está nos diminutos símbolos religiosos que Rodrigues e Garupe entregam para os fiéis nos vilarejos em que se encontram: primeiro, pequenos crucifixos; depois, contas dos próprios rosários. São também objetos que denunciam para as autoridades japonesas o segredo dos católicos escondidos, e um dos pontos centrais do filme gira em torno de um fumi-e, pequena imagem de Cristo na qual os fiéis devem pisar para renegar sua fé publicamente.

Silêncio é uma história sobre a crise da fé e seus limites. Sobre o encontro da experiência com a crença inabalável. É um filme que deve ser capaz de afetar até o espectador cético e todo aquele que já questionou o poder de suas convicções. A dúvida pode ser encontrada no rosto leonino de Rodrigues – que parece, conscientemente ou não, cultivado para emular Jesus como pintado por El Greco –, no corpo emaciado de Garupe e no olhar por vezes derrotado e por vezes cheio de força de Ferreira.

As provações que os dois padres passam no Japão, testemunhando o sofrimento de outros, os forçam a pesar o poder do divino diante do sofrimento humano. Na figura de Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), Rodrigues encontra, ao mesmo tempo, sua última esperança na fé e o Judas do seu próprio martírio. Até que ponto esse martírio atende aos kirishitans japoneses? O quanto dele diz apenas sobre o orgulho – e até a vaidade – do próprio Rodrigues? Mais do que uma história sobre a disputa dos jesuítas com a cultura japonesa da época, ela é sobre os conflitos internos que esse choque gera em seus protagonistas.
É difícil imaginar que veremos outro filme como Silêncio chegar aos cinemas. Scorsese é um dos últimos diretores vivos a quem se daria a confiança de um orçamento de 40 milhões de dólares, uma filmagem problemática em Taiwan e atores do cacife de Neeson, Garfield e Driver (os dois últimos saindo direto das franquias multimilionárias de O Espetacular Homem-Aranha e Star Wars respectivamente) aceitando cachês reduzidos, para contar uma história de quase três horas sobre fé, martírio e dúvida. Apesar disso, é um filme essencial em um mundo pós-secular, onde uma história passada há mais de 400 anos pode dialogar com ideias presentes de violência cometida em nome de um Deus silencioso, da relação entre o poder e a religião. Ao mesmo tempo, enquanto levanta questões duras sobre o valor da fé, na figura dos camponeses cristãos que Rodrigues e Garupe encontram, Scorsese acha a força e esperança que ela traz para os desesperançados.

Scorsese, que se autoidentifica como um católico relapso, estudou para ser padre antes de se virar para o cinema, e sua relação com a própria fé aparece em seus filmes desde o começo da carreira, e não por coincidência: para o jovem Scorsese, tanto o cinema quanto a igreja representavam uma fuga do mundo pequeno e assustador no qual crescera. Que o autor do livro tenha se inspirado em A estrada da vida (1954), de Federico Fellini, também não deve ser levado em vão – Scorsese cresceu vendo os clássicos do neorrealismo italiano na televisão. De alguma maneira, a história de Silêncio, assim como a de Scorsese, parecia destinada ao cinema. Sua paixão por essa arte, porém, já havia chegado ao cinema antes, em sua homenagem a Georges Meliés e a magia e o poder redentor do cinema em A invenção de Hugo Cabret (2012). A devoção que Scorsese – um cinéfilo declarado que já dedicou considerável tempo e dinheiro à preservação e à restauração de filmes – dirige ao cinema se aproxima, enfim, de uma vocação religiosa. De certa maneira, o cinema se tornou sua religião.
Para um diretor conhecido principalmente por seus filmes de máfia e, frequentamente, por suas representações de violência e exageros, Silêncio, a princípio, parece ser um distanciamento do seu campo natural de trabalho. Ainda que não marcado pelos exercícios estílisticos de filmes como O lobo de Wall Street (2013) ou Os bons companheiros (1990), Silêncio é repleto de tomadas complexas e composições de quadro representantes do estilo pouco minimalista de Scorsese. Mais do que isso, porém, não existe dúvida de que esse é seu filme mais pessoal desde Caminhos perigosos (1973). Neste, um descendente de italianos em Nova York luta entre sua fé e o caminho que sua vida – e a de todos ao seu redor – está levando. Em mais de um momento, o protagonista (Harvey Keitel) segura sua mão sobre uma chama para se punir por seus pecados. Imagens e temas religiosos podem ser encontrados até em seus filmes menos relacionados com o tema: na penitência de Jake LaMotta em Touro indomável (1980) e em Taxi driver (1976), quando o protagonista segura sua mão sobre o fogo, emulando o próprio Caminhos perigosos. Até em seu documentário sobre George Harrison, Living in the material world (2011), Scorsese reflete sobre a relação do material com o espiritual por meio das experiências religiosas do ex-Beatle.

Scorsese também dirigiu Kundun (1997), outro épico sobre fé e seu papel no Oriente. Assim, com Silêncio, ele parece ter completado uma jornada que começou não em 1990, ou em 1988, e sim desde antes de sua carreira como cineasta sequer começar. Seus questionamentos parecem finalmente ter sido elaborados claramente em tela, em um filme ao mesmo tempo delicado e repleto de dor. Como diretor, ele mantém uma distância desse sofrimento: a impotência dos personagens se torna a impotência da audiência. A dúvida dos personagens, porém, é a dúvida do diretor.■

Leia mais
- O avassalador Silêncio de Scorsese. Texto publicado no Medium do Instituto Humanitas Unisinos.

- "Viemos do silêncio. A ele retornaremos". Entrevista com Martin Scorsese, publicada por La Vie e reproduzida nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Silêncio. Um filme vertiginoso e desafiador. Texto publicado por publicado por La Vi e reproduzido nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A verdadeira história dos cristãos do Japão. Reportagem de Jean-Pierre Denis, publicada por La Vie e reproduzida nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Silêncio. E se a fé foi baseada num mal entendido? Reportagem é de Xavier Accart, publicada por La Vie e reproduzida nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Em 'Silêncio', de Scorsese, questão linguística se esvai. Comentário é de Inácio Araujo, crítico de cinema, publicado por Folha de S. Paulo, e reproduzido nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Scorsese. Uma filmografia atravessada pelo pecado e pela redenção. Comentário de Thimothée Gérardin, jornalista e crítico de cinema, em artigo publicado por La Vie e reproduzido nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Silêncio. Para ator japonês experiência com Scorsese foi quase espiritual. Entrevista de Cara Buckley, publicada por New York Times, reproduzida por Folha de S. Paulo e reproduzida nas Notícias do Dia de 10-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Fé e dúvida em 'Silence': uma reflexão quaresmal. Reflexão é de Patrick T. Reardon, autor de Faith Stripped to Its Essence: A Discordant Pilgrimage Through Shusaku Endo’s Silence, publicada por National Catholic Reporter e reproduzida nas Notícias do Dia de 2-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Todos os sons do silêncio de Deus. Artigo de Roberto Esposito, publicado no jornal La Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de 25-1-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Silence, Scorsese e a missão na Igreja. Reportagem publicada por Omnis Terra e reproduzida nas Notícias do Dia de 10-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Em 'Silêncio', o Pisoteado rompeu o silêncio. Artigo de Juan Masiá, teólogo jesuíta espanhol, em artigo publicado por Religión Digital e reproduzido nas Notícias do Dia de 24-1-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- "Silence", de Scorsese: "Um filme para a Igreja de hoje". Reportagem do jornal L’Osservatore Romano e reproduzida nas Notícias do Dia de 5-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU..

Leia mais textos sobre “Silencio” no sítio do IHU.

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