Edição 501 | 27 Março 2017

A solução democrática contra a teocracia do “povo criança”

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Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Vanise Dresch

Para Laurent Bove, o papel das paixões é decisivo na política spinoziana e o surgimento da democracia se dá pelo desejo passional de não sofrer e não ser comandado

Segundo o filósofo francês Laurent Bove, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “O Tractatus Theologico-Politicus (TTP) não consistia apenas em um estudo racional ou ‘científico’ da Sagrada Escritura; Spinoza desejava também, com esse trabalho: 1) minar o poder ideológico e político do fanatismo dominador dos teólogos (fossem eles judeus, cristãos, católicos ou reformados); e 2) defender e promover, assim, duas ideias essenciais para uma vida humana: a necessidade vital da liberdade de expressão e da democracia”.

O professor explica que, na perspectiva de Spinoza, a democracia é a única possibilidade para a vida política levando em conta os problemas criados pelas paixões humanas. “Qualquer outra solução (que não seja a democracia) requer, da parte de quem detém o poder político, um pesado dispositivo de mentiras ou mistificação para contornar a dificuldade que, de fato, representa uma natureza humana essencialmente renitente (resistente) à obediência”, expõe.

Laurent Bove é professor na Universidade Picardie Jules Verne, França, especialista em Vauvenargues e Spinoza, além de pesquisador em áreas como ética e política da era clássica e Albert Camus. Publicou diversos artigos na revista Multitudes, na qual é membro do comitê de redação. Entre outros, é autor de Espinosa e a psicologia social. Ensaios de ontologia política e antropogênese (Belo Horizonte: Autêntica, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a atualidade da filosofia de Spinoza num tempo como o nosso, marcado pela dominação em suas mais variadas formas?
Laurent Bove - A atualidade política de Spinoza, primeiramente, está em nos fornecer a leitura de uma filosofia que defende não só com a mais firme convicção, mas também com a mais sólida argumentação, duas ideias fundamentais: a liberdade de expressão e a democracia. O Tractatus Theologico-Politicus (TTP) não consistia apenas em um estudo racional ou “científico” da Sagrada Escritura; Spinoza desejava também, com esse trabalho: 1) minar o poder ideológico e político do fanatismo dominador dos teólogos (fossem eles judeus, cristãos, católicos ou reformados); e 2) defender e promover, assim, duas ideias essenciais para uma vida humana: a necessidade vital da liberdade de expressão e da democracia.

A democracia, em Spinoza, não é primeiramente a escolha de um valor moral. Para ele, a democracia é, acima de tudo, a solução real, prática, de um problema que também é real, inerente à dificuldade de viver em grupo para seres que, antes de serem seres de razão, são essencialmente passionais. Uma solução política prática que leva em conta não somente a experiência histórica, mas também as leis das paixões humanas. Spinoza postula, assim, como verdadeiro princípio (extraído da experiência e da observação das leis da natureza humana e da lógica dos afetos), o axioma segundo o qual “nada é mais insuportável para os homens que se submeterem a seus iguais [ou semelhantes] e serem comandados por eles”.

Estado infantil

A partir desse princípio, Spinoza afirma: “Disso decorre...”, ou, primeiramente, “a sociedade inteira, se possível, deve exercer o poder de forma colegiada, para que todos obedeçam a si mesmos sem que ninguém tenha de obedecer ao seu igual...” Neste caso, obtém-se uma democracia. Ou então, segunda solução: “se um pequeno número ou um único homem detiver o poder, ele deve ter em si mesmo algo que supere a natureza humana comum ou, pelo menos, deve tentar com todas as suas forças convencer o homem vulgar disso” (TTP, V, 8-9). Entramos então nas mistificações que acompanham necessariamente a dominação. Esta segunda solução considera também um caso excepcional que parece ter sido único na história. Um homem que, por uma “virtude divina”, consegue oferecer a um povo que permaneceu em estado infantil – isto é, incapaz de viver em democracia – uma solução perfeitamente adaptada à sua situação primitiva, e também ao desejo humano, compartilhado por todos (bárbaros ou civilizados), de não ser dirigido por um igual-semelhante: essa solução excepcional é a solução teocrática que foi oferecida por Moisés ao povo hebreu. Percebe-se assim que, para Spinoza, a democracia, como maneira singular de constituir sociedade, é a única solução verdadeira adequada, tanto antropológica quanto política, para um problema criado pelas próprias leis da psicologia das paixões humanas; e qualquer outra solução (que não seja a democracia) requer, da parte de quem detém o poder político, um pesado dispositivo de mentiras ou mistificação para contornar a dificuldade que, de fato, representa uma natureza humana essencialmente renitente (resistente) à obediência a outro homem considerado, psicológica e imediatamente, semelhante, portanto, igual (a teocracia é a solução limítrofe adaptada para um povo-criança).

Liberdade de expressão

No que se refere à liberdade de expressão, Spinoza postula, em primeiro lugar, como uma posição de princípio, a incompatibilidade lógica, ideológica e política (tanto no plano teórico quanto prático) entre a empreitada “filosófica” (empreitada de liberdade e defesa das liberdades) e a empreitada do teólogo como figura principal da dominação sobre os espíritos e os corpos. Não há nada dogmático, nem mesmo intolerante, na reivindicação dessa incompatibilidade (entre filósofo e teólogo), uma vez que a defesa spinoziana da liberdade de filosofar se situa numa defesa universal do direito à diferença, à liberdade de opinião e crenças de cada um. Mas Spinoza afirma isso enfaticamente, preocupando-se com que – e esta é a função de um Estado (de natureza laica, isto é, independente das opiniões ou crenças diferentes e particulares de cada um) – nenhuma Igreja, seita religiosa ou partido (mesmo filosófico!) possa impor sua hegemonia nem sobre seus adeptos ou fiéis, que, acima de tudo e em primeiro lugar, são cidadãos que devem poder mudar livremente de opinião, crença ou filosofia, sem qualquer coerção; nem sobre as outras Igrejas, seitas ou partidos; nem, por fim, sobre o próprio Estado, que deve manter-se absolutamente independente das opiniões particulares!

IHU On-Line - Em que medida sua obra apresenta potências de resistência contra a dominação, sobretudo aquelas de viés econômico e político?
Laurent Bove - O Tratado Político reflete concretamente sobre “remédios” contra a dominação. Sabemos que, para Spinoza, o que dá a medida essencial do viver junto é a “igualdade”. Sem a igualdade, que é “uma das primeiras necessidades da comunidade política” (TP VII, 20), “a liberdade comum arruína-se” (TP X, 8). Portanto, a igualdade é também a medida da liberdade de cada um. Mas a medida comum do viver junto tem duplo significado: não somente a invenção de um princípio dinâmico do comum, como unidade de base ou unidade de medida – que também é um valor quando essa medida de igualdade é desejada por todos –, mas também a invenção dos meios de contrapoderes que serão mobilizados para manter a igualdade (para impedir as tentativas de dominação). Tomemos o exemplo atual (na Europa) dos estrangeiros e da cidadania que lhes é recusada pelos “nacionais”. Essa recusa, explica Spinoza no Tratado Político, vem da “inveja [invidia]” (TP VIII, 12) ou do ciúme despertados, dentro de um Estado democrático, pelos recém-chegados, que poderiam gozar dos mesmos direitos que os cidadãos ditos de origem.

Constata-se, então, de fato, que a consciência exacerbada de uma identidade nacional ou do corpo nacional constitui-se, historicamente, em detrimento do corpo vivo da democracia, em constante devir criativo. A inveja e o ciúme dos nacionais são também obstáculos à acolhida democrática dos recém-chegados, cuja igualdade de acesso aos direitos é tida, psicológica e afetivamente, como injusta por aqueles que se julgam os legítimos proprietários e usufrutuários do corpo do Estado! Assim, a decisão política, que, neste caso, é conservadora, de descartar os estrangeiros do status de membros efetivos do corpo do Estado – ou seja, do status de cidadão – faz do Estado democrático uma nova instância de dominação sobre os recém-chegados. E essa decisão democrática (no sentido aritmético da decisão do maior número) põe em perigo a própria manutenção do corpo vivo e real da democracia. Portanto, é contra essa tendência antidemocrática que o espírito democrático (esclarecido pela história e seus fracassos) precisa verdadeiramente inventar seus remédios. O primeiro deles é a educação para o próprio espírito da democracia: para seus valores de igualdade, liberdade comum e fraternidade universal. Correlativamente, trata-se de um combate ético-político obstinado pela defesa praticada em ato e pela realização efetiva desses valores.

É também a invenção política de “remédios” institucionais (a invenção das forças de resistência ou das armas) que terão a função de impedir os desvios da sociedade democrática na direção de novas relações desiguais de dominação. Esses remédios podem ser dolorosos na medida em que se opõem e constituem um obstáculo real à satisfação de certos desejos individuais (e individualistas). Porém, como escreve Spinoza, a “dor” de alguns permite que o corpo comum preserve sua saúde, estando assim muito mais apto a ser investido por muitas outras maneiras que não sejam aquelas unidimensionais e patológicas suscitadas pela dominação e pela satisfação de poucos.

Não posso esmiuçar todas as exigências dessa democracia do comum que foram formuladas por Spinoza. Tratarei apenas do seu espírito geral e de algumas medidas essenciais. Por exemplo, no que se refere à propriedade: Spinoza fala relativamente pouco dela, mas lhe atribui grande importância, uma vez que o desejo de propriedade é de natureza passional (como no caso da rejeição dos estrangeiros), e é justamente das paixões, e da experiência histórica das paixões, que o pensamento político deve partir. Spinoza constata, por exemplo, que, para manter o amor dos hebreus por sua terra de Israel, a teocracia primitiva previa uma divisão estritamente igualitária da propriedade fundiária. Por ocasião de cada Jubileu (celebrado a cada 50 anos), previa-se uma redistribuição igualitária da propriedade a fim de corrigir as vicissitudes da fortuna de cada família durante esse período de tempo (que podia ter perdido suas terras ou, ao contrário, adquirido mais terras).

Spinoza considera que, num Estado democrático moderno, os bens de um cidadão possam lhe ser restituídos “com fundos do tesouro público” se esse cidadão provar que sua ruína é decorrente de um acidente que não pôde ser evitado (TP, VIII, 47). Spinoza concebe, também, na monarquia democratizada do Tratado Político, a inteira propriedade pública dos bens imobiliários. Sua principal preocupação em relação à propriedade e ao dinheiro é, portanto, a manutenção da igualdade e a prevenção das injustiças. Contra as lógicas de dominação, Spinoza aponta, além disso, o perigo que a existência de um exército de ofício representa. Este impõe, de fato, ao Estado que ele proteja um verdadeiro “estado de guerra em que somente o exército é livre, e todos os outros escravos” (TP VII, 22). O exército, então, deve ser formado apenas pelos cidadãos (TP VI, 10 e VII, 22), e seu general-chefe deve ser nomeado somente em períodos de guerra para um tempo de comando estritamente limitado “a um ano no máximo, e não [pode] ser prolongado nem reeleito” (TP VIII, 9).

Porque Spinoza teme, tanto quanto a peste, a construção de heróis. A igualdade não pode subsistir – escreve ele – “quando o direito público do Estado quer que se atribuam honras extraordinárias a um homem ilustre por sua virtude” (TP X, 8). Ocorre muitas vezes, de fato, que, em situação de crise e por conta de suas vitórias presentes e passadas, um homem ilustre se torne o tirano de seu próprio povo (TP X, 10). Por isso, Spinoza concebe uma despersonalização radical de todas as funções públicas, com mandatos curtos, não renováveis, de administradores da república; administradores do Estado diametralmente opostos a seus dominadores. Dictatores dos quais a democracia deve proteger-se. Primeiramente, eliminando a prática do “segredo de Estado”, que mantém a multidão em situação de ignorância, impotência e irresponsabilidade política... (TP VII, 27-29); esse “segredo”, escreve Spinoza, é incompatível com a liberdade comum. Em segundo lugar, instaurando um sistema de amplas assembleias, de preferência, em cada cidade, que sejam elas mesmas conduzidas por sistemas vigilantes de contrapoder.

Assim, Spinoza prefere, a um sistema de representação política, um dispositivo de participação efetiva do maior número em funções de decisão conjunta, sempre estritamente limitadas no tempo, dentro de uma assembleia suprema cujos membros são parcialmente renovados a cada ano. Uma assembleia, por sua vez, a ser rigorosamente vigiada por uma assembleia mais restrita de cidadãos, cujo papel seria velar pela manutenção inviolável dos fundamentos das leis “no que diz respeito aos corpos deliberantes e aos funcionários públicos” (TP VIII, 20). Spinoza rejeita a crítica do peso e da lentidão de um dispositivo como esse, defendendo princípios que, segundo ele, são realmente necessários para uma vida comum, pois, em suas palavras, a liberdade e o bem comum perecem quando um pequeno número de homens decide tudo de acordo com suas próprias paixões (TP IX, 14).

Para Spinoza, a exigência dos princípios não poderia ceder politicamente – como acontece frequentemente em Estados modernos – a imperativos técnicos e pragmáticos, nem mesmo em situação de urgência. Em seu pensamento, trata-se da recusa de se inclinar ao pragmatismo do poder, de seus profissionais e de seus experts, que, sob o manto da eficiência, suprimem, na verdade, o próprio exercício da democracia e da necessária igualdade de decisão – quanto ao que é comum a todos –, em exclusivo benefício da dominação de poucos.

IHU On-Line - A partir da importância da relacionalidade no universo imanentista de Spinoza, como percebe a potência da irrupção do novo em seus escritos?
Laurent Bove - Spinoza desenvolve um estranho naturalismo conforme um estranho paradoxo. De fato, ele fala muito de “natureza” em seus escritos, mas a “natureza” propriamente dita, no sentido estrito, não está presente em sua filosofia! A natureza spinoziana, por certo, tem leis fixas, e as partes III e IV da Ética estudam justamente a natureza humana. Porém, essas leis não definem um conteúdo substancial particular a priori, que existiria antes de qualquer experiência, determinando-a fatalmente. Ao contrário, é a experiência e a história que, num jogo combinatório das afecções do corpo (e dos afetos da alma), vão fornecer conteúdos determinados (dispositiones corporis) sempre diferentes, segundo as mesmas leis, a uma natureza humana que, na verdade, é “vazia” a priori.

Trata-se certamente de uma natureza “comum”, mas que, de fato, só é singularizada historicamente, em e por processos sempre singulares de individuação. Ora, se só há processos combinatórios de diferenciações singulares a partir de leis fixas, é porque a novidade histórica é sempre possível. Tanto nos seres humanos (em suas diferentes singularidades) quanto nas formas de vida comum que esses mesmos seres podem inventar real e indefinidamente. Spinoza afirma, assim, que a natureza humana obedece às leis da natureza, às quais “ela é forçada a adaptar-se de maneiras que são infinitas ou quase” (Éth. IV, apêndice, capítulo 6).

E essa “infinidade” de maneiras leva às maiores variações e à maior inventividade histórica. Spinoza declara também que, embora a história humana e a experiência já tenham fornecido todos os “modelos” gerais de Estados (TP I, 3), assim com a história também já mostrou todos os remédios que os homens podem utilizar para erradicar as patologias individuais (Eth. V, prefácio) e coletivas (TP I, 3) causadas pelo jogo das paixões, trata-se, segundo o projeto ético e político spinozista, de construir incessantemente novos caminhos para a liberdade. E para isso, é preciso trabalhar (de forma prática, como o próprio Spinoza faz no TTP, e, no plano teórico, no TP) para criar vias democráticas históricas inéditas.

Vias que, combinando racionalmente meios institucionais e afetivos já conhecidos, mas que ainda não funcionaram dentro de combinações apropriadas, levam efetivamente a novas formas de vida livres da dominação, ou ao que Spinoza chama de regime da potência “inteiramente absoluto” (omnino absolutum). Daí a importância, no pensamento spinoziano, de uma imaginação comum constituinte que atravessa o corpo, sempre diferente, da multitudinis potentia…

IHU On-Line - Qual é a importância do conceito de “paixões” na obra spinoziana?
Laurent Bove - Sigo respondendo, no plano político, em que as paixões têm importância decisiva, a partir de uma análise comparada dessa questão nas diferentes obras de Spinoza. O capítulo I, artigo 5, do Tratado Político faz referência explícita à Ética, lembrando que os homens são inevitavelmente sujeitos às paixões (cf. Ética IV, 2 a 4 e corolário). Quando acrescenta que sentir piedade é parte da natureza dos homens (ainda em TP I, 5), Spinoza está se referindo a Ética III, resumindo, em essência, sua teoria das paixões, cujos princípios são a imitação afetiva (Éth. III, 27) e o princípio de prazer (Éth. III, 28). O final do artigo de TP I, 5 – segundo o qual crer que a multidão ou os políticos podem ajustar sua conduta unicamente de acordo com os preceitos da razão é sonhar com tempos dourados ou acreditar em quimeras – retoma o escólio 2 de Ética IV, 37, em que Spinoza levantou explicitamente a questão do que é o estado natural e o estado civil dos homens (ambos, portanto, estados passionais). E o artigo 6 do capítulo I do Tratado Político tira uma conclusão realista dessa constatação no que diz respeito à organização do Estado para sua estabilidade, refletindo Ética IV, 37, escólio 2, que afirmava brutalmente a necessidade estrutural de ameaças que possam contrariar as paixões nocivas à vida em grupo.

Portanto, a principal diferença entre o Tratado Político e a Ética, no que se refere às paixões, não é fundamental, pois, em ambos os casos, o que o ponto de vista da legalidade requer, a saber, a necessidade da obediência, logo, o abandono do direito natural, traz consigo o ponto de vista da verdade efetiva, ou seja, de que o direito natural e o jogo das paixões não cessam na racionalidade da ordem civil.

Surgimento da democracia

E, como escreveu Spinoza na carta 50 enviada a Jarig Jelles , a diferença em relação a Hobbes , quanto à política, está no fato de que: “mantenho o direito natural e não confiro, em cidade alguma, qualquer direito ao soberano sobre seus súditos, a menos que se sobreponha a eles pela potência; é a continuação do estado de natureza”. Logo, a continuidade da lógica hegemônica das paixões! A carta é datada de 2 de junho de 1674, e, à luz desta, podemos ler Ética IV, 37, escólio 2, em que Spinoza escreve que é segundo a lei da relação de forças das paixões que a sociedade pode estabelecer-se, reivindicando para si mesma o direito de cada um de vingar-se e julgar o bem e o mal, para depois ter o poder de prescrever uma regra de vida em grupo, fazer leis e garanti-las não pela razão, que não é capaz de contrariar as paixões, mas por ameaças. A única diferença entre o escólio 2 da proposição 37 e o Tratado Político é o fato de que, na Ética, o ponto de vista da verdade efetiva, aquela das paixões, vem reforçar o ponto de vista da legalidade ou dar embasamento afetivo real (isto é, passional) à lógica da obediência e aos meios que ela requer. Isso também está presente no Tratado Político, mas este, de certa maneira, trata menos da verdade efetiva do ponto de vista da necessidade da obediência do que, ao contrário, do campo da lógica da obediência do ponto de vista da verdade efetiva, ou seja, daquilo que Spinoza chama de “liberdade ou prudência da natureza humana”, ou que nós denominamos estratégia do conatus. Uma liberdade, uma prudência (ou uma estratégia) que ele faz questão então de distinguir radicalmente da lógica da obediência (Tratado Político IV, 5) e assenta, ao contrário, num direito passional a que chama de “direito de guerra”.

Ora, o direito de guerra é não somente uma ameaça permanente à ordem civil (isto está implícito em Éth. IV, 37, escólio 2), mas também uma potência de resistência à dominação, como Spinoza bem assinala no exemplo dos aragoneses (TP VIII, 30). E é justamente a partir das leis das paixões de Ética III que Spinoza pode usar, no Tratado Político, essa potência, ameaçadora para a ordem civil, mas também uma potência de resistência à opressão, como uma verdadeira potência constituinte capaz de construir a liberdade comum. Já observamos que é a partir do desejo passional de não sofrer por ser comandado por um igual-semelhante que Spinoza explica o surgimento (e a necessidade natural e vital) da democracia. O papel das paixões está onipresente então, sendo até mesmo decisivo na política spinoziana.

IHU On-Line - Qual é a potência das paixões alegres para a construção de novas alternativas políticas em nosso tempo?
Laurent Bove - Penso que, diante da política compartilhada no mundo de hoje – da dominação e do medo, até mesmo do terror (uma política ditada aos Estados modernos neoliberais pelo modelo da filosofia hobbesiana) –, Spinoza nos oferece uma alternativa histórica de natureza tanto política quanto antropológica: aquela de uma construção efetiva e potente da liberdade comum a partir das forças das paixões alegres. Para Spinoza, existe, de fato, uma positividade constituinte das paixões alegres, que, apesar de serem afetivamente de natureza ainda passiva, não deixam de ser positivas para a construção da liberdade comum. Assim, nos meus últimos estudos sobre Spinoza, destaquei especialmente a importância política, para nós, hoje, da compreensão do conceito spinozista de Hilaritas, que Spinoza define e aplica somente na Ética, mas que é muito esclarecedor se o transferirmos – como proponho – do campo da física das paixões e da ética para o campo da política e da história. Na Ética III, 11, Spinoza define Hilaritas como um afeto de alegria relacionado tanto à Alma quanto ao Corpo, quando todas as partes do homem, em seu corpo e em sua mente, são afetadas de forma igual.

A demonstração da Ética IV, 42, explica que, “em relação ao Corpo”, Hilaritas consiste “em que todas as partes dele são afetadas da mesma maneira, ou seja (proposição 11, parte III), que a potência de agir do Corpo aumenta ou é estimulada de modo que todas as suas partes mantêm entre elas a mesma relação de movimento e repouso; assim, Hilaritas é um afeto sempre bom e que não pode conter excesso”. Pode-se dizer, então, que Hilaritas é um afeto que supõe e expressa o equilíbrio vital de um princípio positivo que é conservado. Porém, mesmo “sem excesso” (e, neste sentido, idêntico aos afetos que se originam na razão), trata-se de um afeto “passivo” (enquanto aqueles que se originam na razão são ativos). “Passivo” porque a causa desse afeto não está no indivíduo que o vivencia, mas essencialmente em circunstâncias externas que o favorecem. “Circunstâncias” que podem ser politicamente aquelas de certas “instituições” políticas cuja construção a multidão, com lucidez, poderia eleger como projeto (um projeto que explica a redação do Tratado Político).

Construção do comum

Ora, a história, tal qual nos conta Spinoza, mostra que esse equilíbrio feliz do Corpo comum já foi alcançado, há muito tempo, no Estado teocrático dos hebreus. Nesse Estado, o Hilaritas oferecia o próprio afeto da propagação da confiança comum, do prazer de constituir um corpo em conjunto, do Desejo ou do amor de viver em comum, energia virtuosa ou vigor da virtude divina comum que desenvolvia, de maneira equilibrada e equilibrante, a prática constituinte da imaginação política do corpo da multidão, o que Spinoza também chama, neste caso, de pietas. Mas podemos perceber, igualmente, a construção do Hilaritas nos Estados democráticos ou democratizados do Tratado Político, em que o desejo de não ser dirigido por um igual-semelhante gera diretamente (por decisão comum) a medida do comum e do bem comum: a da “igualdade”. Esse desejo gera também uma política ativa de resistência à dominação: a política democrática da construção do comum. No campo dos afetos políticos, a medida do Hilaritas nos oferece, assim, a paixão alegre democrática por excelência.

No Hilaritas se expressa a propagação feliz do que podemos chamar de confiança comum, que elimina todo e qualquer desejo de dominar seu semelhante, como também, inversamente, de entregar sua própria salvação a um homem tido como providencial. A confiança do Hilaritas é, pois, o prazer poderoso de viver junto, de constituir um Corpo comum: é o amor de viver na igualdade, construindo, de forma fraterna, a liberdade comum da democracia. Por nossas forças de resistência e amor, penso, portanto, que a construção do Hilaritas é a tarefa histórica contemporânea de uma política autenticamente spinoziana. Uma política para nosso tempo que se confunda totalmente com a própria dinâmica da antropogênese. ■

Leia mais
- “Uma filosofia de resistência à dominação”. Entrevista com Laurent Bove. Revista IHU On-Line, edição 397, 06-08-2012.

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