Edição 501 | 27 Março 2017

Uma filosofia da alegria e da multidão

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Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado

Maria Luiza Ribeiro Ferreira analisa a obra de Spinoza e sustenta que as “paixões tristes” devem ser convertidas em “paixões alegres” nos afetos da multidão em devir

Uma razão dinâmica com impurezas e fugas, que não se opõe ao desejo, pelo contrário: se constitui na continuidade deste. A explicação é da filósofa portuguesa Maria Luiza Ribeiro Ferreira na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. “A sua política elege a democracia como modelo de governo, mas admite que o direito da cidade seja definido pela potência da multidão”, acentua. Os legados filosóficos desse pensador são inúmeros, dentre eles “a alegria, o empenhamento social e político, a tolerância, a permanente curiosidade em conhecer o real”. Além disso, acrescenta Maria Luiza, é preciso mencionar a tolerância como outra de suas heranças filosóficas. “(...) Sua postura face ao diferente ou ao aparentemente negativo é sempre de abertura, tentando primeiro compreender e só depois julgar.”

Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. De sua extensa produção bibliográfica, destacamos: O que os filósofos pensam sobre as mulheres (Lisboa: Centro de Filosofia, 1998); Também há mulheres filósofas (Lisboa: Caminho, 2001); A Dinâmica da razão na filosofia de Espinosa (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1997); e Uma suprema alegria (Coimbra: Quarteto, 2003). É membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, da Sociedade Científica da Universidade Católica, do GT Benedictus de Spinoza, da Universidade Estadual do Ceará, no Brasil, do Seminário Spinoza de Ciudad Real, na Espanha, e da Association des Amis de Spinoza, na França.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em que consiste a dinâmica da razão na filosofia de Spinoza?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - A expressão "dinâmica da razão" foi usada por mim no título da obra mais longa que dediquei a este filósofo - A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa, um livro de 685 páginas, publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1997. O seu objetivo era demonstrar que a razão neste pensador não é dada, mas construída num processo dinâmico que integra instâncias não racionais. De fato em Spinoza a razão não é rígida, nem se apresenta como uma faculdade autônoma, pois ao longo das suas obras vêmo-la num permanente entrosamento com o desejo, com o corpo, com os afetos, com a imaginação. Nessa razão dinâmica há impurezas e fugas.

O dinamismo da razão em Spinoza manifesta-se essencialmente em dois registos: num campo teórico e numa atuação prática. No primeiro caso, cobre as dimensões ontológica e gnosiológica; no segundo, a ética e a política.

O livro I da Ética situa-se numa perspectiva eminentemente metafísica. Nele é-nos apresentada a racionalidade dinâmica que enforma o real, racionalidade essa que se manifesta nos infinitos modos que decorrem do Deus sive Natura. A Substância, ou Deus ou Natureza define-se primeiramente como causa sui, como totalidade ativa que permanentemente se exprime na multiplicidade dos existentes. O resultado desta atividade permanente é um universo regido pela causalidade, onde se estabelecem relações de antecedente e de consequente entre os modos. Tudo tem a sua causa ou razão e cada coisa é determinada por outra a existir. Processa-se deste modo, entre todos os seres, uma inter-relação dinâmica, constitutiva da ordem que enforma o real.

Nos livros III, IV e V da Ética fica patente uma razão prática, uma recta ratio vivendi (Et. III, Pref.) que identifica razão, virtude e utilidade própria. A vivência plena da razão consiste num aumento da potência individual pois, como diz o filósofo "a verdadeira potência de agir do homem ou a sua virtude é a própria razão (Et. IV, prop. LII, dem.)”. Um Estado racionalmente organizado, que proporciona aos seus cidadãos uma vida de paz e de liberdade, é o cenário ideal para cada um se realizar social e politicamente, o que para a maioria poderá mesmo constituir a salvação a que é possível aspirar.

IHU On-Line - Quais são as considerações centrais desse filósofo acerca da razão?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - Tomemos agora o conceito de razão na sua vertente gnosiológica. Quando o filósofo nos apresenta os diferentes gêneros de conhecimento, seja no Tratado da Reforma do Entendimento, seja na Ética, a razão (ratio) é um estádio que nos permite conhecer com segurança, não sendo no entanto encarada como meta última de realização pessoal. Esta exige uma dimensão amorosa e fruitiva, algo que não encontramos num processo dedutivo. Spinoza designa este estádio como "ciência intuitiva" e identifica-o com a beatitude (beatitudo). Para aceder a este nível de conhecimento há todo um programa pessoal que cada um vai traçando ao longo da vida, construindo-se como ser racional na medida em que conhece e age.

O Deus/Natureza de Spinoza é uma potência racional e dinâmica à qual chegamos pelo conhecimento das leis que o regem. O esforço que desenvolvemos ao procurar percebê-lo tem como objetivo a união com o Todo, do qual somos partes dinâmicas. É então que tomamos consciência que o nosso conatus (o esforço inerente a todos os modos, responsável pela sua manutenção no ser) é manifestação e expressão da essência divina. A descoberta do nosso lugar no mundo liberta-nos das paixões tristes. A compreensão de que partilhamos de uma mesma força que habita todas as coisas desencadeia em nós uma alegria suprema, aquela que o filósofo se propõe alcançar quando no Tratado da Reforma do Entendimento nos apresenta o seu projeto de vida. Poucos conseguem atingir essa meta que nos coloca no plano da eternidade: "… é da natureza da razão conceber as coisas sob o ponto de vista da eternidade." (Et. V, prop. XXIX, dem.). Uma eternidade que em Spinoza nada tem a ver com o tempo, sendo a assunção plena da condição que cada um partilha com os restantes modos.

O ser humano define-se pelo que tem de comum com os outros modos, pois todos eles são possuidores de um conatus, a força que os faz preservar. Só os homens são conscientes desse conatus. E nisso consiste a essência humana que o filósofo define como desejo, ou seja, um esforço tornado consciente: "O desejo (cupiditas) é o apetite de que se tem consciência" (Et. III, prop. IX, esc.) e "O desejo (cupiditas) é a própria essência do homem" (Et. III, Definição dos Afetos).

IHU On-Line - Em que medida Spinoza é uma espécie de “pedra no sapato” da racionalidade moderna?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - Podemos dizer que Spinoza é "uma pedra no sapato da racionalidade moderna" porque as suas teorias incomodam e levantam problemas a quem pretenda classificar os filósofos com rótulos nítidos. É habitual inseri-los em grandes categorias que nos permitam um acesso orientado ao seus sistemas e que nos levem ao estabelecimento imediato de concordâncias e/ou de distanciamentos perante as teses por eles defendidas. Relativamente a Spinoza verificamos que a razão que defende e sumamente preza não se opõe ao desejo, antes se constitui na continuidade deste. A liberdade que aponta como suprema conquista não prescinde de um determinismo que molda todo o real. O Deus pessoal que contesta não permite, no entanto, que o classifiquemos como ateu, se tomarmos a sério as teses do livro V da Ética onde o amor intellectualis Dei é identificado com a suprema alegria. O seu alegado panteísmo impede no entanto que divinizemos os modos. A sua ética recusa as noções de bem e de mal, reduzindo-os a "modos de pensar (…) que formamos por compararmos as coisas umas com as outras" (Et. IV, Pref.). A sua política elege a democracia como modelo de governo, mas admite que o direito da cidade seja definido pela potência da multidão (TP III, §§ 7,9). Na sua antropologia nega o dualismo corpo/mente mas não consegue falar do homem sem constantemente recorrer a estas duas instâncias. A sua gnosiologia toma a razão como critério de verdade, mas constantemente recorre ao conhecimento empírico e à experiência vivida.

IHU On-Line - Quais são seus principais legados filosóficos que inspiram uma crítica às sociedades de nosso tempo e em que eles nos interpelam?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - São muitos os legados filosóficos que Spinoza nos deixou. De entre eles destacamos: a alegria, o empenhamento social e político, a tolerância, a permanente curiosidade em conhecer o real. A procura de "uma alegria contínua e suprema" aparece logo numa das suas primeiras obras, o Tratado da Reforma do Entendimento. De fato, ao falar-nos do seu projeto de vida em busca do verdadeiro bem, o filósofo classifica de triviais, vãs e fúteis a maioria das ocorrências que nos sucedem e analisa criticamente as principais motivações que o homem comum valoriza: a riqueza (divitia), a honra (honor) e o prazer sensual (libido). Note-se que a crítica não é feita em nome de qualquer ideal ascético ou de sacrifício. Como será desenvolvido na Ética, o filósofo ama a vida e as coisas boas e portanto releva os bons encontros e cultiva uma arte de bem viver – é apanágio do sábio saber apreciar os prazeres do quotidiano e deles fruir: "Digo que é próprio do sábio alimentar-se e comprazer-se com comida e bebida moderada e agradável, tal como com perfumes, plantas viçosas, ornamentos, música, jogos desportivos, teatro e outras coisas deste gênero, que cada um pode usar sem prejudicar outrem." (Et. IV, prop. XLV, escol.) Importa, pois, aproveitar as coisas agradáveis da vida, o que implica a sua fruição e partilha.

A aprendizagem da alegria de viver é algo que Spinoza nos deixa. Não se trata de uma felicidade egoísta pois ele insiste na dimensão social da mesma: "(…) à minha felicidade pertence empenhar-se para que muitos outros entendam o mesmo que eu (…); é necessário formar uma sociedade como é de desejar, de modo que o maior número chegue a esse ponto com maior facilidade e segurança." (TIE, § 14). A preocupação com a realização pessoal passa também pelo cuidado dos outros, orientando-os para uma vida conseguida. Todo o seu projeto político se desenrola em função deste desiderato.

Outro legado é o da tolerância. Esta não se aplica de um modo cego, pois o filósofo não se exime de criticar a ignorância e a superstição. Mas a sua postura face ao diferente ou ao aparentemente negativo é sempre de abertura, tentando primeiro compreender e só depois julgar: "(…) tive todo o cuidado em não ridicularizar as ações dos homens, não as lamentar, não as detestar mas adquirir delas verdadeiro conhecimento (TP I, §4)”. Finalmente a atitude de permanente curiosidade, que o leva a tentar descobrir as leis do real, pois a Natureza nada tem de misterioso. A nossa explicação do real não pode orientar-se por concepções morais ou religiosas, devendo obedecer estritamente a um estudo científico (e objetivo) da Natureza, bem como do homem enquanto parte integrante desta.

IHU On-Line - Em que sentido sua postura “iconoclasta” desenvolvida em nome da razão inspira um novo agir político em tempos de crise de representatividade? A partir de seus escritos, em que sentido se deveria falar em uma outra corporeidade política?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - Penso que o objetivo último do sistema spinoziano é ético, e não político. A política tem nele uma vertente utilitária, é uma ajuda importante que permite à maioria dos homens (que não são filósofos) uma realização pessoal mediante a construção de um Estado em que possam viver bem, em paz e em liberdade. Contudo, a preocupação última do filósofo é ética. O que em nada diminui o interesse de algumas das suas teses para uma atuação política do nosso tempo. Delas destaco como significativo o sentido de realidade, que o leva a reconhecer o caráter efêmero dos pactos e a dimensão utilitária dos mesmos. O cap. XVI do TTP lembra-nos que"um pacto não pode ter qualquer força a não ser em função da sua utilidade e que, desaparecida esta, imediatamente o pacto fica abolido e sem eficácia." Ao defender esta tese, Spinoza refere-se à fundação do Estado, mas as constantes alterações da política mundial contemporânea tornam-na perfeitamente atual, acentuando as inevitáveis alterações e a permanente necessidade de renegociação dos pactos firmados entre os diferentes Estados e instituições. Igualmente interessante é o conceito dinâmico de democracia defendida no mesmo capítulo. A democracia consiste na transferência da potência individual para um corpo político organizado que assegure os direitos mínimos de cada um e cuja permanência e legitimidade dependa do cumprimento do pacto estabelecido entre todos os indivíduos. Não se trata de transferência de direitos para um grupo de pessoas, mas sim para a maioria do Todo social do qual cada um faz parte. Este sentido de comunidade apela para uma partilha individual das responsabilidades políticas, e não para o esquecimento das mesmas. Todos estão implicados na governação na medida em que a estabilidade desta depende da permanente vigilância dos cidadãos.

A cidade constitui-se como um só indivíduo, como potência coletiva formada pela aliança das diferentes potências individuais. O TP irá explicitar este dinamismo avançando com o conceito de multitudo e mostrando como nele se entrelaçam a razão e os afetos. O TP é o lugar em que a multidão adquire uma especificidade própria. Ela é constituída por um conjunto de indivíduos que se comportam como sendo conduzidos por uma só mente (una veluti mente). Não se trata, portanto, de uma massa indistinta de indivíduos, nem de uma mera soma, pois o que distingue e dá poder à multidão é a sua unidade e o permanente debate em que se envolvem os indivíduos que a constituem. O direito da cidade é definido pelo direito da multidão (TP III, §§ 7 e 9). Deste modo o poder de cada um é transferido para todos. Quanto mais os homens aliam as suas potências próprias, mais potência têm e melhor conseguem impor os seus direitos.

Afetos comuns

Para que a concórdia se estabeleça e possa haver um governo estável é preciso que o Estado se organize devido à atuação de uma multidão livre (TP V, §6). O papel da multidão é transversal no TP e surge ligada a diferentes tipos de governo como a monarquia, a aristocracia e a democracia, embora Spinoza conclua que a verdadeira multidão só existe num governo democrático, pois neste é difícil que a maioria esteja de acordo com leis e fatos absurdos. Note-se que os contratos que a multidão estabelece pela transferência dos seus poderes para um homem ou um grupo de homens não são eternos. A sua contestação e violação é admitida quando está em causa o interesse comum (TP IV, § 6).

As diferentes potências dos indivíduos que constituem a multidão conferem a esta uma potência construtiva que legitima a sua ação governativa. Temos, no entanto, que reconhecer que a multidão não é conduzida pela razão, mas sim pelos afetos. A multidão nasce das paixões, mas vai adquirindo poder graças à razão. Logo no início do TP (I, §3), Spinoza refere-se à necessidade de contermos a multidão e à utopia, que é pensarmos que ela se convence a viver segundo os preceitos da razão (TP I, §5). Uma boa gestão das paixões coletivas pode levar a multidão a ter um comportamento racional. Interessa, pois, apostar em afetos comuns que mobilizem os cidadãos. A esperança é um deles (TP, VI, §1), mais eficaz do que o medo. Um estado conduzido pelo medo "será mais um estado sem vícios do que um estado com virtude" (Et. X, §8). Para que a concórdia triunfe e possa haver um governo estável é preciso que o Estado se estabeleça devido à atuação de uma multidão livre (TP V, §6).

IHU On-Line - E o que poderíamos entender por teoria dos afetos?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - Para o autor da Ética os afetos são um veículo de integração no mundo. Os afetos são naturais e absolutamente indispensáveis para a manutenção dos seres humanos. Todos os seres são sujeitos a afecções, mas só no homem encontramos afetos: “Entendo por afeto as afecções do corpo pelas quais a potência de agir do corpo é aumentada ou diminuída, secundada ou reduzida, e ao mesmo tempo as ideias desses afetos.” (Et. III, def., III). Estamos no mundo e por isso somos afetados pelos outros corpos e estabelecemos relações com eles. Estas relações, aparentemente fortuitas, obedecem a uma ordem que urge descobrir. As relações causais aplicam-se quer ao mundo físico, quer ao mundo mental. Daí a importância na maneira como as gerimos e como orientamos a nossa vida em função do conhecimento das mesmas. Uma das tarefas prioritárias do filósofo é compreender a ordem dos afetos, encontrando entre eles relações de causa e efeito e tentando detectar as leis que os regem. Spinoza contesta que a mente humana seja destituída de leis. O homem “não é um império num império”( Et. III, prefácio). O que nos faz pensá-lo deste modo é a ignorância dos seus processos mentais.

O relevo dado por Spinoza aos afetos está patente na Ética onde dois dos seus cinco livros lhe são dedicados (livros III e IV) e onde a parte final (livro V) se constrói sobre uma terapia dos mesmos. Os afetos humanos têm uma dimensão corpórea, dado que têm sempre a ver com o nosso ser físico. Alguns deles aumentam as nossas capacidades e permitem-nos viver melhor. A consciência das alterações corpóreas é dada nas ideias que as acompanham. E o que favorece o corpo provoca alegria, sendo esta determinante para a saúde e o bem-estar. A tristeza implica diminuição de ser e, como tal, é má e deve ser evitada. A bondade e a malignidade dos afetos dependem de os mesmos serem úteis ou perniciosos para a nossa realização. Esta bipolaridade (positiva e negativa) leva a que Spinoza distinga ação e paixão. Consoante conhecemos ou desconhecemos os afetos, assim os dominamos ou nos deixamos dominar por eles.

Enquanto ser dinâmico que é, o homem está em permanente devir. As flutuações do desejo levam ao aumento ou diminuição do conatus, consoante ele é sujeito a afetos alegres ou tristes. Quando o nosso conatus cresce em potência, alegramo-nos; quando o desejo diminui e, como tal, o conatus perde força, entristecemos. Alegria e tristeza são paixões, ou seja, alterações afetivas que não dominamos completamente e que provocam em nós ideias confusas: (Et. III, def. II ).

A paixão é a manifestação afetiva que mais interessa ao filósofo. Na verdade, há uma desproporção entre as proposições que dedica aos afetos passivos e aos ativos. Ambos são analisados minuciosamente no livro III da Ética e ao longo de todo o livro IV. Mas as paixões recebem do filósofo uma maior atenção. A alegria e a tristeza são o critério a partir do qual os afetos são julgados. Aquilo que nos causa alegria aumenta o nosso ser e é bom. Aquilo que nos provoca tristeza é mau porque diminui o poder do nosso “conatus”. Há pois que transformar as “paixões tristes” em “alegres”, conhecendo-as na medida do possível. A filosofia de Spinoza é uma filosofia da alegria. O que o leva a afastar os pensamentos negativos e a cultivar tudo o que nos traz comprazimento. A felicidade suprema coincide com o conhecimento mais alto a que podemos aspirar.

O poder que temos sobre os afetos é proporcional ao conhecimento que deles temos. É a dimensão cognitiva dos afetos que nos abre a possibilidade de os dominar, pois à medida que conhecemos melhor aquilo que nos move, mais nos libertamos da sua influência. O livro V da Ética oferece-nos estratégias de racionalização do desejo. Importa-nos atingir o objeto com o qual possamos estabelecer um vínculo profundo e duradouro. Quanto mais excelente, quanto mais total e não particular for o objeto a que nos unimos, mais ativos seremos. O fim último é a união com toda a Natureza. O filósofo pretende que orientemos todos os afetos para algo completo e perfeito, no qual o desejo que nos habita se possa satisfazer. Mas este caminho obriga à superação dos elos afetivos que nos prendem, exige a secundarização dos afetos particulares e a descentração dos nossos interesses. É um exercício difícil que todos são convidados a fazer mas que só alguns (poucos) aceitarão. A esses é dado viver neste mundo, num registo de eternidade. E os afetos desempenham um papel preponderante no trilhar desse percurso.

IHU On-Line - Em que medida as afecções constroem uma adesão social?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - Há que em primeiro lugar fazer uma distinção entre afecção (affectio) e afeto (affectus). A afecção (affectio) em Spinoza tem uma conotação mais ampla, pois aplica-se a todas as modificações que ocorrem nos modos. Estes são afetados (ou modificados) por algo, quando dele recebem qualquer influência que os marca ou altera. O afeto (affectus) tem uma dimensão emotiva, diz respeito apenas aos homens e reserva-se aos estados mentais que se acompanham de prazer e de dor, as formas básicas da afetividade. É um processo que se liga à sensibilidade geral e que tanto engloba as sensações difusas de bem-estar e de mal-estar como as experiências mais complexas de emoção e de paixão. Os afetos estão, portanto, englobados na categoria das afecções e têm um papel importante na construção de um corpo político coeso. Uma comunidade política deverá cultivar nos cidadãos os afetos que provoquem união, que propiciem a paz, que ofereçam um modus vivendi que leve à realização de cada um.

As paixões de alegria são determinantes para aumentar a nossa potência de agir. Interessa, pois, cultivar este tipo de afetos. A essência humana é desejo e há que saber gerir esse esforço que nos habita, encaminhando-o para o que nos traz felicidade, pois "o desejo que nasce da alegria (…) é mais forte que o desejo que nasce da tristeza" (Et. IV, prop. XVIII). O TTP e o TP desenvolvem exaustivamente a temática dos afetos em ordem à formação de uma sociedade política estável. No livro IV da Ética, Spinoza afirma que "nada é mais útil ao homem do que o homem" (Et. IV, prop. XVIII, esc.) e assegura-nos que "o desejo que nasce da razão não pode ter excesso" (Et. IV, prop. LXI). Por isso alerta-nos para a busca do que nos é útil "sob a direção da razão". Deste modo seremos "justos, fiéis e honestos".

IHU On-Line - Ainda tomando Spinoza como referencial, por que o medo é um afeto político central?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - O medo é um afeto político central porque é normalmente utilizado para subjugar os cidadãos, um fato que Spinoza denuncia e combate. Quer os tiranos, quer os chefes religiosos têm-se servido da paixão do medo para controlar a massa dos cidadãos incultos. O filósofo insurge-se contra um domínio através do medo denunciando este tipo de atuação. Os governantes têm imposto a sua autoridade pela força; os teólogos e os sacerdotes têm explorado as falsas crenças e as superstições para melhor se fazerem obedecer. Spinoza censura aqueles que praticam o bem devido aos diferentes medos – medo da atuação punitiva de Deus, dos castigos, das penas futuras, etc.

No livro IV da Ética alerta-nos para a atuação perniciosa de quem pretende impor-se pelo medo, denunciando-a como supersticiosa: "Os supersticiosos que sabem mais censurar os vícios que ensinar as virtudes e que não procuram conduzir os homens pela razão, mas contê-los pelo medo, de tal maneira que evitem mais o mal do que amem as virtudes, não pretendem outra coisa que tornar os outros tão infelizes como eles." (Et. IV, prop. LXIII, esc.). Uma sociedade regida pelo medo é necessariamente infeliz e, como sabemos, Spinoza aponta a alegria como critério de realização pessoal e social. O TP e o TTP criticam as sociedades opressivas e propõem-nos um modelo diferente no qual a voz dos cidadãos tenha uma parte determinante na construção das leis que regem as sociedades.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira - O cuidado com a natureza e o ambiente é uma das grandes preocupações da atualidade e o pensamento de Spinoza tem sido evocado por alguns ecologistas. Escrevi alguns textos sobre este tema ("Espinosa e a ecologia profunda"; "Natureza e matéria em Espinosa"; "Natureza/naturezas - contributos espinosanos para uma mundividência pós-humana"). As limitações da presente entrevista em termos de espaço impedem-me de desenvolver este tema. Embora considere exageradas as teses de Arne Naess , que interpreta Spinoza como um proto-defensor da deep ecology, entendo que a perspectiva descentrada que o filósofo utiliza para desenvolver a sua antropologia é algo que traz dividendos para as filosofias da natureza e do ambiente. Mas este é um tópico que merece um maior desenvolvimento, impossível nesta breve entrevista.■

Leia mais

- Um iconoclasta panenteísta. Entrevista com Maria Luiza Ribeiro Ferreira. Revista IHU On-Line, edição 397, 6-8-2012.

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