Edição 501 | 27 Março 2017

A construção cinematográfica do Holocausto e seus riscos

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Leslie Chaves | Edição: João Vitor Santos

Adriana Kurtz analisa a forma como esse dramático episódio da História tende a ser banalizado em nome de uma indústria voltada ao entretenimento

O cinema nasce como uma indústria do entretenimento e, por essa perspectiva, se apropria da História sem se comprometer com uma reconstrução dura, volta-se muito mais para uma leitura romântica. Quando se trata de fatos históricos tão duros e densos como o Holocausto, corre-se o risco de apagar a memória do que de fato foi esse episódio. Para a professora da ESPM-Sul Adriana Kurtz, é preciso ter essa clareza para não incorrer no erro de considerar produções hollywoodianas, como A Lista de Schindler, a tácita representação do Holocausto. “Um filme sobre o Holocausto, um evento que destruiu a vida de seis milhões de pessoas em toda a Europa, finaliza com um final feliz? É uma narrativa salvacionista que foca na exceção e não na regra”, analisa ao pontuar o final da trama.

Entretanto, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Adriana também reconhece o papel da sétima arte em, de certo modo, fazer a memória desse que foi um dos maiores dramas da humanidade. “A representação através do cinema é absolutamente vital para inscrever mundialmente uma certa memória histórica daqueles terríveis acontecimentos”, pondera.

Adriana Kurtz é doutora e mestra em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Jornalista pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, tem especialização em Comunicação e Economia Política e Teoria do Jornalismo e Comunicação de Massa, pela mesma instituição. É professora adjunta da Escola Superior de Propaganda e Marketing - ESPM-Sul. Tem trabalhos publicados nas áreas de Estética e História do Cinema, Teorias do Jornalismo e da Comunicação e Teoria Crítica da Sociedade, Theodor Adorno, Nazismo, Cinema de Propaganda e Representação do Holocausto no Cinema.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a importância de retratar o tema do Holocausto no cinema?
Adriana Kurtz – Qualquer tema concernente à vida humana precisa ter espaço no âmbito da representação fílmica se quiser fazer parte efetivamente da nossa capacidade de compreensão e elaboração do mundo e da realidade. O cinema é fundamental nas nossas sociedades modernas e tanto faz se entendemos os filmes de um ponto de vista mais ingênuo – como mero entretenimento – ou de um ponto de vista altamente crítico – como na noção anti-iluminista e alienante da Indústria Cultural, conforme postulado por Adorno e Horkheimer – para o reconhecimento de sua importância.

No caso específico do Holocausto, um evento histórico sem precedentes, a representação através do cinema é absolutamente vital para inscrever mundialmente uma certa memória histórica daqueles terríveis acontecimentos. E não se trata apenas de afirmar o Holocausto enquanto uma forma industrial de matança inédita na história do Ocidente, mas também lidar com a memória de milhões de vítimas cujos nomes e corpos foram varridos da face da terra, numa empreitada que visava claramente apagar qualquer forma de registro ou lembrança.

Diante da magnitude deste evento, o relato histórico precisa ser apoiado pela representação artística e cultural, inclusive para transcender seu tempo e sobreviver ao esquecimento. Pensemos por exemplo no quanto a luta por visibilidade dos homossexuais foi dependente da representação fílmica, ainda que marcada por todo tipo de estereótipo e preconceito. Há uma colocação provocativa de Erwin Panofsky , judeu alemão que teve um papel importante na historiografia da arte, num pequeno texto intitulado Estilo e Meio no Filme segundo o qual “atualmente, não há por que negar que os filmes narrativos são não apenas arte – frequentemente não muito boa, mas o mesmo se pode aplicar a outros meios –, como também, ao lado da arquitetura, cartuns e ‘desenho comercial’, a única arte visual inteiramente viva”. Para o autor, filmes moldariam as opiniões, o gosto, a linguagem, a vestimenta, a conduta e até mesmo a aparência física de um público que abrangeria mais de 60% da população da terra. A colocação de Panofsky, feita em 1947, foi corroborada pelo tempo, e o cinema é cada vez mais fundamental no cenário contemporâneo de nossa “cultura da mídia”, para usar uma expressão de Douglas Kellner acerca da cultura de massa.

IHU On-Line – Como a linguagem cinematográfica pode contribuir para a construção de uma memória dessa triste passagem da história mundial?
Adriana Kurtz – Bem, esta já é uma questão mais delicada. O cinema que eu entendo como apto a representar dignamente o próprio evento histórico e a memória das vítimas é, naturalmente, um cinema que conjuga ética e estética; ou seja, há um imperativo para este tipo de narração que passa pela exigência de uma nova ética da representação. Não é o caso de dúzias de filmes sobre o Holocausto. Esse foi justamente o mote de meus estudos de Doutorado acerca da representação da memória das vítimas no âmbito da cinematografia de um mundo “administrado”, balizado pelo pensamento filosófico e estético do filósofo alemão Theodor Adorno.

Optei por trabalhar este tema após assistir, indignada, A Vida é Bela (1997), de Roberto Benigni , um dos filmes que, embora reconhecidos pelo público, considero um desserviço à representação do Holocausto e um escárnio à memória das vítimas. Se o esquecimento é uma das causas para que a história avance numa dialética de progresso e barbárie, como foi mostrado magistralmente pela reflexão de Walter Benjamin , a arte de uma civilização cuja história encontra sua derrocada em Auschwitz precisa ser digna da tarefa de preservação da lembrança.

É muito complicado fazer um filme sob o registro de certo humor, no qual um menino em pleno ambiente concentracionário termina feliz com um tanque de guerra norte-americano enquanto ignora a evidente morte de seu pai. Historicamente, o filme é um absurdo. Sabemos que para a maioria das crianças deportadas para os campos de concentração o destino era a câmara de gás. Imagine as gerações atuais, historicamente mal formadas, vendo a versão de Benigni para o Holocausto como um tipo de “documento histórico”. É um desastre do ponto de vista da exata consciência do que aconteceu naqueles anos sombrios.

Não se trata aqui nem de moralismo nem de uma tentação autoritária, mas da certeza de que o tema do Holocausto exige uma estética balizada eticamente. Trem da Vida (1998), ainda que num registro lúdico e humorístico, resolve a questão ética de uma maneira muito digna.

IHU On-Line – A partir da indústria cinematográfica, quais são os limites entre o compromisso com a memória das vítimas do Holocausto e a banalização do sofrimento?
Adriana Kurtz – O cinema nasce sob o signo de uma dupla condição: é objeto cultural – e pode vir a ser arte – e ao mesmo tempo é um produto de uma indústria que para se tornar rentável precisa expandir seu público nacional ou globalmente. Então esta obra, ainda que artística, terá sempre um componente fundamental de busca de grandes audiências e lucro. De resto, devemos lembrar que não existe “o cinema”, mas sim muitas cinematografias. Há um abismo entre o cinema narrativo clássico hollywoodiano e o cinema europeu, para ficarmos no caso mais evidente.

Dito isso, lembremos que desde a década de 1940, a partir de imagens documentais feitas pelos aliados para fins de propaganda, o Holocausto se tornou um tema importante do cinema ocidental. É um tema difícil, pouco palatável em seus aspectos mais radicais e que coloca uma série de dilemas éticos e estéticos. A morte é representável? Até que ponto o sofrimento e a destruição de seres humanos podem ser encenados? E com que realismo? Lembro que ao comentar o filme Shoah (1974-1985), de Claude Lanzmann , o filósofo Peter Pál Perlbart postulou uma espécie de pedagogia do intolerável, capaz de resistir às tentações de um “culto do horror”, do “gozo mórbido” ou da “monumentalização da tragédia”, enfim, de signos de miserabilidade ou vitimização.

Para Pelbart, a estética cinematográfica do filme de Lanzmann – sóbria, inaparente e cáustica - encontraria correlação na poesia de Paul Celan e na literatura de Primo Levi , ambos centrais na chamada Literatura dos Campos ou Literatura de Testemunho. A psicanalista Maria Rita Khel vai na mesma direção ao lembrar que os textos – penosos – de Levi não forçam os leitores a “gozar do abjeto”, já que sua escrita recua nos momentos necessários e se recusa a “intoxicar, fascinar ou nausear o leitor com a memória do seu sofrimento”.

Visual pornográfico e fascinação irracional

Mas tal distanciamento é muito mais improvável e difícil numa arte que lida com imagens. Como destacou o crítico cultural marxista Fredric Jameson , o visual é essencialmente pornográfico e sua finalidade é a fascinação irracional. Jean-Luc Godard chegou a cunhar a expressão “pornô concentracionário” acerca de alguns títulos que assistiu. O certo é que a banalização do sofrimento é a outra face de uma tradição de vitimização dos judeus nos filmes que tematizam sua perseguição, confinamento e morte. Ambas respondem a um imperativo tão natural quanto perverso: a lógica mercantil da indústria do cinema.

IHU On-Line – Alguns estudiosos assinalam o contraste entre a indústria da produção cinematográfica e os horrores do Holocausto. Zygmunt Bauman , por exemplo, apontava que o Holocausto é apresentado de modo “esterilizado” nos filmes com o objetivo de atender a fins comerciais. Qual é a questão ética em jogo nesse processo? Que outros aspectos estão envolvidos nesse debate?
Adriana Kurtz – Bauman escreveu um livro fundamental chamado Modernidade e Holocausto após assistir a sua mulher Janina, sobrevivente do gueto de Varsóvia, encerrar-se por dois anos para finalmente escrever suas memórias. Na introdução deste livro, ele reflete sobre a gradual importância e transformação do tema do Holocausto num assunto nobre, numa área especializada, na qual especialistas se reúnem em geral com outros especialistas produzindo materiais que, segundo Bauman, raramente fazem o percurso de volta “à corrente central da disciplina acadêmica e da vida cultural em geral”.

Para o sociólogo polonês, o tema costuma chegar ao que chamou de “grande palco” sob uma forma “saneada, esterilizada, desmobilizante e consoladora” que responde a uma certa “mitologia pública”. Na questão da representação da Solução Final, Bauman cita pontualmente a telessérie estadunidense Holocaust (1978) que, de certa forma, foi pioneira no ressurgimento do tema no universo da mídia. Sobre a série ele critica o clichê da vitimização: doutores bem educados e suas famílias, dignos, honrados e de moral ilibada são levados às câmaras de gás por nazistas degenerados com a ajuda de camponeses eslavos incultos e sedentos de sangue.

Tal simplificação obscurece a necessária discussão sobre os aspectos mais perturbadores e menos visíveis do massacre de seis milhões de judeus europeus. Não por acaso Hannah Arendt foi duramente criticada quando sugeriu – infelizmente com pertinência – que as vítimas de um regime desumano deviam ter perdido algo de sua humanidade no caminho para a perdição. O mesmo lamento pontua as memórias do sobrevivente Primo Levi, considerado como o filósofo do Holocausto entre aqueles que lograram viver para dar testemunho da barbárie e que ficaram eternizadas em seu livro É Isso um Homem?. O problema naturalmente se aplica aos filmes, sobretudo hollywoodianos, no sentido de que tal experiência deva ser suportável para grandes plateias, cujo grau de conhecimento acerca do evento encenado pode ser ínfimo.

Ficção irreal e realidade testemunhada

O padrão narrativo que separa o mundo entre duas categorias estanques – bons e perversos – acaba sendo replicado em filmes que, para Bauman, reforçam uma atitude complacente por parte do público. Ao analisar o tema em minha tese, comparei a representação de alguns filmes paradigmáticos do gênero com vários livros de testemunho dos sobreviventes. A distância entre os relatos literários e as formas de representação imagética é enorme. Ironicamente, por mais que se proponha a mostrar o Horror, a ficção é sempre menos “irreal” do que a realidade testemunhada. Em se tratando de Holocausto, nada pode ser mais irreal do que a própria realidade.

Complexificações da recuperação da memória

Quanto à parte final da pergunta, lembremos que a memória das vítimas está conectada a uma série de questões paralelas complexas, tais como a discussão sobre o próprio testemunho e suas características; o dever de memória em oposição ao excesso de memória; os enquadramentos da memória possíveis em um âmbito de disputas – inclusive políticas – mais ou menos explícitas das memórias coletivas nacionais; a questão do trauma e suas implicações, a exemplo da dialética entre lembrança e esquecimento; as relações nem sempre harmônicas entre memória e história; a discussão sobre as maneiras possíveis de representar eventos tão obscenos em sua violência, sua literalidade, sua monumental e, eventualmente, fascinante força que nos remetem aos problemas do gozo mórbido ou gozo do espetáculo, do voyeurism e do processo de dessensibilização ou banalização da própria cena traumática. Trata-se de constelação de questões que vem a reboque de uma aparentemente simples recuperação da memória das vítimas.

IHU On-Line – Você poderia falar um pouco sobre o que compreende como a ideia de “indústria do Holocausto”?
Adriana Kurtz – O conceito, cunhado pelo polemista judeu Norman G. Finkelstein num ensaio um tanto panfletário intitulado A Indústria do Holocausto: Reflexões Sobre a Exploração do Sofrimento dos Judeus (2001), reúne críticas de personalidades judaicas avessas aos usos políticos e econômicos do genocídio. O escritor israelense Boaz Evron , por exemplo, sustenta que “o despertar do Holocausto” nada mais é, atualmente, do que “uma doutrina oficial de propaganda, um martelar de slogans e uma falsa visão do mundo, cujo objetivo real não é entender o passado, mas manipular o presente”.

Assim, a memória do extermínio nazista constituiria “uma poderosa ferramenta nas mãos da liderança israelense e dos judeus estrangeiros” e a exigência do reconhecimento da singularidade histórica do fenômeno só responderia a interesses escusos. Como eu disse, Finkelstein é um polemista e seu objetivo é chamar a atenção para um aspecto pouco comentado acerca do Holocausto, que outros pensadores dedicados à questão da memória coletiva e dos usos políticos dos enquadramentos da memória vão ratificar de alguma forma. Em que pese algumas críticas pertinentes, o tom de deboche e escárnio que pontua o livro de Finkelstein aproxima-se do “estilo” conhecido das “obras” negacionistas (erroneamente ditas “revisionistas”).

De resto, o grande empenho do livro é desmoralizar o escritor Elie Wiesel , autor de A Noite e espécie de porta-voz oficial dos sobreviventes, que teria transformado o Holocausto numa espécie de “religião misteriosa”, uma crítica que encontra eco em especialistas sérios como Seligmann-Silva . Se – e veja bem, estamos numa condicional – a tese de Finkelstein tiver algum conteúdo de verdade, a representação da barbárie nazista no cinema entraria como uma fundamental forma de reforço simbólico e cultural jogando a favor da “Indústria do Holocausto” e de seu potencial propagandístico que, em última instância, favorece o Estado de Israel e uma elite judaica norte-americana e mundial.

IHU On-Line – De que maneira você avalia o modo como é retratado o holocausto em A lista de Schindler ?
Adriana Kurtz – Eu particularmente tenho fortes restrições ao filme de Spielberg e ao seu projeto memorialístico, que incluiu a antiga Fundação de História Visual dos Sobreviventes do Holocausto, hoje sob os cuidados da University of Southern Califórnia - USC, além de documentários com viés propagandístico derivados deste projeto, como Sobreviventes do Holocausto (1996). É realmente enigmático para mim que um filme cujo “herói” é um industrial nazistoide subitamente convertido em salvador de judeus tenha se transformado no mais importante documento fílmico acerca da história e da memória do Holocausto no Ocidente.

Convenhamos, os judeus sequer são os protagonistas de sua própria história: eles aparecem como meros coadjuvantes, dentro de uma lógica narrativa criticada tanto por Bauman quanto por Pelbart. Já Lanzmann, diretor de Shoah (1974-1985), reconhecido como um dos melhores documentários já feitos sobre o tema, nutre um profundo desprezo por A Lista, que considera “um filme de ação”. Eu concordaria em maior ou menor grau com todos estes críticos.

Outro aspecto perturbador é que a obra de Spielberg, dentro do padrão narrativo clássico hollywoodiano, não abre mão do que Edgar Morin chamou de happy-end . Ora, um filme sobre o Holocausto, um evento que destruiu a vida de seis milhões de pessoas em toda a Europa finaliza com um final feliz? É uma narrativa salvacionista que foca na exceção (ainda que a história de Schindler seja verdadeira) e não na regra. O Holocausto não foi uma história onde os perseguidos, confinados e deportados se salvaram milagrosamente. Foi uma história de um massacre em escala industrial perpetrado especialmente nas fábricas da morte.

Para agradar a plateia

Parece claro para mim que esta perspectiva “otimista” jogou a favor do filme no aspecto de sua recepção por parte da audiência global. Tente ver um filme como Cinzas da Guerra (2001). É de uma crueza terrível e fala sobre a verdadeira realidade do Holocausto: a morte. Mas isso torna o filme quase insuportável para as plateias, e os críticos ressaltaram exatamente este ponto: de que era muito doloroso – e até traumático – assistir aquela história.

IHU On-Line – Você começou essa análise, mas queria que detalhasse a reflexão: por que A lista de Schindler é considerado um dos filmes que se tornou referência na memória coletiva acerca do Holocausto?
Adriana Kurtz – A Lista é efetivamente a referência na memória coletiva global acerca do Holocausto e isso é surpreendente, sob certo aspecto. Um livro de Arturo Lozano Aguilar, publicado em Barcelona (2001), ilumina esta questão. Segundo o autor, o fenômeno não pode ser pensado sem que se considere a tese da “americanização do Holocausto judeu”. O fato é que este acontecimento acabou incorporado como um dos relatos fundadores da identidade norte-americana (ainda que seja razoável supor que a mera existência de um contingente de vítimas que buscaram asilo e uma segunda chance no novo continente não justifique tal incorporação). Segundo Aguilar, a catástrofe da população judaica europeia como um “tema próprio da cultura americana” teria começado exatamente com a telessérie “Holocausto”, cuja primeira emissão nos EUA, em 1978, foi acompanhada por 120 milhões de telespectadores.

A telessérie aproveitou com maestria a cobertura da mídia, num clima de grande receptividade por parte da sociedade. Campanhas publicitárias, guias educativos em escolas, sermões em igrejas e sinagogas e uma avalanche de publicações, artigos, debates e programas televisivos converteram o evento histórico ocorrido no continente europeu “num ponto de referência moral no pensamento coletivo americano”. A Lista seguiu a mesma trajetória. Não foi apenas um filme, mas um evento político e midiático. Não podemos menosprezar a força do cinema narrativo clássico hollywoodiano e seu poder de sedução sobre públicos globais. Hollywood, afinal, é o coração da Indústria Cultural.

Ao final do século XX, o livro Indelible Shadows , de Annette Insdorf , listava 170 filmes para cinema e televisão acerca do tema, número que certamente aumentou com o boom de filmes registrados na virada do século. A questão da “americanização do Holocausto” tem claras implicações na(s) luta(s) política(s) de enquadramento(s) de memória. Mas o lugar de ícone global da representação do Holocausto exigiu um intenso trabalho de marketing não só por parte da indústria do cinema, como do próprio Spielberg, subitamente consciente de um antepassado judaico que até então o diretor “ignorava”. O fato é que A Lista criou uma agenda midiática poderosa em torno do tema e assumiu um lugar de protagonismo do qual, aliás, acredito que jamais será retirado.

IHU On-Line – De que modo você vê a fragilização da fronteira entre documentário e ficção que tende a acontecer em representações de passagens históricas traumáticas, como o Holocausto retratado por A lista de Schindler? De maneira mais ampla, como essa questão se relaciona com os processos que envolvem a indústria cinematográfica?
Adriana Kurtz – Costumo pensar que uma das grandes riquezas do cinema é justamente a possibilidade de diálogo entre documentário e ficção, gêneros de enormes potencialidades. O cinema italiano é uma verdadeira escola no uso desta conjugação. Um dia Muito Especial (1977), que tematiza a perseguição de um gay pelo fascismo, e Pasqualino Sete Belezas (1975), ácida comédia de humor negro sobre as estratégias de um prisioneiro judeu italiano num campo de concentração, por exemplo, abrem suas imagens com cenas documentais e passam para a ficção, a exemplo de dezenas de obras europeias.

No caso de A Lista, Spielberg reúne os chamados “Judeus de Schindler” para uma homenagem ao seu salvador no cemitério onde seu corpo foi enterrado, em Israel. Mas, surpreendentemente ao final, vemos o próprio diretor fazendo também sua homenagem. Tal cena pode ser vista de formas distintas: como uma homenagem justa e emocionante ou como um recurso algo sentimentalista. Isso fica a critério do público. Mas a aparição de Spielberg denota sua própria vaidade e disposição em marcar presença como o protagonista da recuperação da memória do Holocausto.

IHU On-Line – Qual é a questão de fundo na passagem da menina do casaco vermelho na trama do filme? Para além de ser o estopim da decisão de Schindler de ajudar os judeus, de que modo essa passagem se relaciona com o protagonista do filme e o que ela pode revelar acerca da humanidade tanto de judeus quanto de não judeus durante o Holocausto?
Adriana Kurtz – Acho profundamente questionável a cena que envolve a menina judia em seu casaco vermelho, numa obra que se notabilizou pela excelência da fotografia em preto e branco, com clara inspiração de matriz expressionista. Schindler é um homem indiferente a questões humanitárias em meio a uma guerra onde ele enxerga a possibilidade de fazer bons negócios. Então ele assiste, junto com sua noiva – e isso é um detalhe relevante, já que ela é o polo feminino que garante uma certa delicadeza ou emoção –, a uma caça aos judeus que tentam se esconder da deportação. E então vemos aquele casaco vermelho que destaca a menina perdida em meio ao tumulto para depois descobrirmos o mesmo casaco que veste agora um corpo inerte.

É um recurso muito pós-moderno num filme que, embora flertando com vários recursos estilísticos – câmera na mão, luzes expressionistas, realismo e busca por cenários que reproduzam fielmente os locais da matança –, tinha como marca a sobriedade da fotografia em P&B. Aqui se dá uma associação algo simplória: aquela menina acorda a boa consciência de Schindler e mostra um horror que, afinal, ele já deveria ter percebido. Há algo de clichê nisso: o fato de ser uma criança bela e frágil. Certamente as crianças costumam ter um peso simbólico muito maior na avaliação de tragédias humanitárias (pensemos no menino Aylan ). Mas isso apenas alivia a nossa consciência, como se despertássemos finalmente para uma verdade terrível que não poderia ter sido vista de forma omissa ou indiferente.

IHU On-Line – O fato do protagonista que assume a figura de herói no filme não ser um judeu contribui de que maneira para a reconstrução da memória sobre o Holocausto e para o debate acerca do antissemitismo?
Adriana Kurtz – Como já pude observar, esta é a questão mais delicada do filme, que aliás fez um sucesso enorme na Alemanha, um país que herdou uma culpa e vergonha coletiva e que se viu aliviada ao ver um bom alemão salvando judeus. Até mesmo muitos nazistas reconheciam, sarcásticos, conhecer “um bom judeu”. Seria excepcional a amizade entre o industrial ariano e o contador (estamos no terreno do clichê mais absoluto sobre os talentos judaicos) semita?

No formato da narrativa clássica, Oskar Schindler é o herói e nada vai mudar isso. Se o herói não é judeu, voltamos inexoravelmente para a lógica da vitimização. Sabemos que a história do Holocausto é feita de uma postura muito pacífica e pouco atuante por parte das vítimas – que não conseguiam acreditar num projeto de extermínio em plena Europa e em meados do século XX –, exceto pela resistência no Gueto de Varsóvia que foi muito bem representado no filme Insurreição (2001).

Mas as nuances históricas são mais complexas do que o estereótipo que se cria no âmbito da representação. Vamos convir que para um debate realista sobre o antissemitismo europeu, A Lista de Schindler oferece uma visão dúbia. De resto, Spielberg é um cineasta infantil e seus filmes giram sempre em torno de uma figura masculina forte, um “pai”. Ocorre que este pai é Schindler.


IHU On-Line – Deseja acrescentar algo que não tenha sido questionado?
Adriana Kurtz – Gostaria de finalizar com uma observação sobre a questão da força dos filmes de Holocausto, ainda que possamos fazer restrições éticas a muitos deles. Um pouco antes de escrever minha tese, em fevereiro de 2006, visitei o campo de Auschwitz-Birkenau. Eu estava plenamente disposta a desconsiderar os filmes assistidos ao longo de décadas e ir em busca da história, da “realidade”.

Nos dois dias que visitei ambos os campos, separados por dois quilômetros e meio que percorri a pé, sob uma neve inclemente, fui surpreendida por uma incrível experiência: aqueles prédios, muros e ruas bem desenhadas do campo principal de Auschwitz, bem como as ruínas de Birkenau, só ganhavam sentido na medida em que eram potencializados por lembranças de cenas de filmes, que se colavam ao cenário indiferente. Eu queria esquecer os filmes em nome de uma suposta verdade histórica. Mas a história – ou o que sobrara dela – só alcançava seu sentido e intensidade plena a partir de uma memória visual da representação do Holocausto. E mesmo na câmara de gás, sob o cheiro ainda presente de morte, os filmes se faziam presentes.

Foi com Noite e Neblina (1955) que lembrei que parte daquelas paredes descascadas se deviam às unhas das vítimas em desespero para fugir do gás Ziklon-B. E diante dos fornos crematórios cheguei a ver o vermelho vivo de uma das cenas mais terríveis de Cinzas de Guerra (2001). E assim, meus pudores em relação à representação do Holocausto tiveram que ser profundamente matizados.■

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