Edição 500 | 13 Março 2017

A vida no Pantanal é ritmada pela inundação

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João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

O professor Pierre Girard afirma que o bioma ainda tem um bom estado de conservação ecológica e de sua biodiversidade, mas isso não quer dizer que não haja riscos

O Pantanal é a maior planície de inundação do mundo, e toda a vida neste bioma é ritmada pelo pulso de inundação, afirma o professor Pierre Girard. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ressalta que o “Pantanal tem ainda um bom estado de conservação ecológica e de sua biodiversidade”. Isso não quer dizer que não haja riscos. As ameaças mais frequentes na planície pantaneira são desmatamento, contaminação por derivados de petróleo, de pesticidas e de fertilizantes, grandes obras de infraestrutura, ocupação humana não planejada, turismo predatório e invasão por espécies exóticas. A pecuária tradicional não chega a ser uma ameaça. A ameaça proveniente da construção de barragens decorre do fato de que elas interrompem as rotas de migração para reprodução das espécies de peixes nobres no Pantanal.

Pierre Girard é professor da graduação e da pós-graduação do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. É graduado em Geologia pela McGill University, no Canadá, mestre em Geologia Dinâmica, com enfoque em hidrologia, pela Université Pierre et Marie Curie, Paris VI e Écoles des Mines de Paris, e doutor em Hidrologia Isotópica pela Université du Québec à Montréal – UQAM.

No dia 20 de março, das 19h30min às 22h, ele profere a conferência Pantanal brasileiro: características, biodiversidade e delimitações para a sua proteção, dentro da programação do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo IHU. Veja a programação.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender a vida no bioma Pantanal?
Pierre Girard – Tem que se entender que toda a vida no Pantanal é ritmada pelo pulso de inundação. Neste momento, em março, por exemplo, o visitante no Pantanal Norte vê imensas áreas alagadas: nos cerrados, campos e matas ciliares, tem uma lâmina de água que varia de alguns centímetros a alguns metros. Água até onde a vista alcança. Não por acaso o Pantanal já teve nome de mar dos Xaraés. E todas as plantas, animais e até os humanos estão adaptados a este ambiente aquático. Mas, se o visitante voltar ao mesmo lugar em julho/agosto, terá dificuldade de acreditar que realmente voltou onde já esteve: tudo é seco. Quando se anda nos campos e nos cerrados, os passos levantam poeira, e o ar resseca as narinas. É melhor não se esquecer de levar água, pois a sede é grande. Olhando bem, vê-se que a flora, a fauna e as pessoas são tão bem adaptadas a esse ambiente seco quanto eram ao aquático.

IHU On-Line – A Floresta Amazônica é sempre tomada como exemplo de biodiversidade, de um mundo ainda muito pouco descoberto. Em que medida isso vale para o Pantanal?
Pierre Girard – Não é à toa que a Amazônia é tomada como exemplo: trata-se de um gigante de mais de 5 milhões de km2 que o Brasil compartilha com Guiana Francesa, Suriname, Guayana, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia. O Pantanal, mesmo que seja grande (mais de 200 mil km2, do tamanho da Inglaterra), em comparação é pequeno. Em nenhum lugar do mudo existe tanta diversidade biológica quanto na Amazônia. Por exemplo, estima-se que existam mais de 30 mil espécies de plantas no bioma amazônico, enquanto tem ao redor de 2 mil no Pantanal. Na Amazônia, há povos que ainda nem foram contatados. É realmente um mundo pouco descoberto.

Isso não quer dizer que o Pantanal não seja um mundo a descobrir, mas, para o pantaneiro, ele é familiar e bem conhecido. A sua biodiversidade é grande (mesmo que menor do que a amazônica) e tem espécies animais, como a arara-azul, que no resto do país tem população diminuta, enquanto é grande no Pantanal.

IHU On-Line – O que se sabe hoje sobre a diversidade e as potencialidades desse bioma?
Pierre Girard – Já se tem um conhecimento bom da diversidade vegetal e animal do Pantanal. Há vários estudos científicos a respeito. Mesmo assim, é possível ainda descobrir novas espécies no Pantanal: insetos, anfíbios, peixes... Mas já temos um bom conhecimento da diversidade de mamíferos, de aves, de répteis, de peixes.

Quanto às potencialidades: são diversas. Há potencialidades mais conhecidas, como o turismo, pela facilidade de avistar animais – principalmente aves e grandes mamíferos, como onças –, o que não acontece na Amazônia. Existem também atrativos pelo turismo de pesca. Tem novas potencialidades do lado da bioprospecção: espécies de plantas pantaneiras estudadas para produzir fitoterapêuticos, remédios ou ainda inseticidas naturais.

IHU On-Line – Quais particularidades e diferenças há entre o Pantanal brasileiro e outras áreas alagadiças no mundo?
Pierre Girard – O Pantanal é a maior planície de inundação do mundo. Como ela é uma savana (um cerrado) que alaga anualmente, existem poucos equivalentes no mundo. Por exemplo, o delta interior do Okavango, no centro da África (Botsuana), é também um tipo de savana que inunda, mas é muito menor (6 mil km2). Outras grandes áreas parecidas são os Everglades, nos Estados Unidos (20 mil km2), e as áreas úmidas de Kakadu, no norte da Austrália (20 mil km2). Mas estas diferem do Pantanal e do Okavango porque são compostas em parte por deltas marinhos.

IHU On-Line – Qual a situação do Pantanal hoje? Quais as maiores ameaças e quais os desafios para sua preservação?
Pierre Girard – O bioma Pantanal tem ainda um bom estado de conservação ecológica e de sua biodiversidade. Nas últimas décadas, houve diversos estudos sobre as ameaças ao Pantanal. Podemos pensar em ameaças de dentro da planície pantaneira e de fora dela. Na planície pantaneira, as ameaças mais frequentemente listadas são o desmatamento (aqui incluo destruição das pastagens nativas); contaminantes derivados de petróleo, de pesticidas e fertilizantes, entre outros; grandes obras de infraestrutura como, por exemplo, a hidrovia e ocupação humana não planejada; turismo predatório e invasão por espécies exóticas. A possibilidade de drenar áreas para agricultura da soja constitui também uma nova ameaça na borda da planície.

Fora da planície, temos o uso da terra nas bacias de drenagem dos rios que formam o Pantanal, o que pode provocar assoreamento no Pantanal, assim como transporte de contaminantes proveniente da agricultura e também modificação no ciclo da água e dos sedimentos provocados por barragens e mudanças climáticas.

IHU On-Line – De que forma alterações no bioma Pantanal podem impactar nas mudanças climáticas? E como essas mudanças impactam, por exemplo, na vida das populações urbanas do Sudeste e de outras regiões?
Pierre Girard – O Pantanal é uma grande planície onde, anualmente, o calor do ar evapora imensas quantidades de água. O Pantanal então “resfria” a região. Num sentido, o Pantanal, com suas funções hidrológicas preservadas, vem amenizar os efeitos previstos da mudança climática: um aumento de 4 a 6 graus até 2100. Qualquer alteração na dinâmica das águas do Pantanal que venha reduzir a área alagada e/ou o período de alagamento irá reduzir este benefício. Da mesma forma, o Pantanal regulariza as cheias e o aporte de sedimentos para as regiões a jusante. Alterações no regime hidrológico do Pantanal, como as que podem resultar da construção de uma hidrovia – em que se prevê canalizar parte do leito do rio Paraguai –, irão diminuir a capacidade da planície de amenizar cheias e reduzir transporte de sedimentos para o território a jusante. O que estamos vendo com a mudança climática é um aumento de eventos extremos como cheias de grandes portes. Um Pantanal perturbado não terá a mesma capacidade de “tamponar” grandes cheias, o que poderia resultar em mais inundações e assoreamento a jusante.

IHU On-Line – De que forma hidrelétricas e outros tipos de barragens podem representar riscos ao Pantanal?
Pierre Girard – Hidrelétricas com grandes reservatórios, como a barragem do Manso, por exemplo, têm capacidade de regularizar a vazão do rio Cuiabá, um dos principais formadores do Pantanal. Atualmente, a regra de operação da barragem reproduz mais ou menos o regime natural desse rio. Nada diz que será sempre assim, pois se trata de uma decisão política. A capacidade existe. Regularizar o rio significa diminuir os picos de cheia e aumentar o nível de água durante as estiagens. Para o Pantanal, isso quer dizer uma perda do pulso de inundação, que é o que confere ao Pantanal sua principal característica ecológica.

Também todas as barragens, tanto as grandes quanto as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), possuem reservatórios que retêm boa parte do sedimento e dos nutrientes que deveriam chegar ao Pantanal. O Pantanal já é um ambiente pobre em nutrientes, e não se tem ideia do que uma redução da entrada deles pode acarretar para a sua produtividade ecológica. Todas as formações vegetais dependem de nutrientes. Elas são a fonte de alimento para todas as cadeias alimentares. Uma redução na quantidade de nutrientes pode significar produtividade vegetal reduzida e também redução de recursos alimentares para os animais. Estudos sobre este tópico são urgentemente requeridos!

Enfim, praticamente todo barramento significa perda de rotas de migração para a reprodução das espécies de peixes que são considerados como nobres no Pantanal (pacu, pintado, cachara, dourado, jaú...) e que têm valor comercial no bioma. Já existem ao redor de 40 hidrelétricas (grandes e PCHs) em funcionamento e mais de 90 são planejadas. Acredita-se que poderia se perder ao redor de um terço das potenciais rotas de migração desses peixes.

IHU On-Line – A pecuária impacta e pode se configurar como ameaça ao ecossistema pantaneiro?
Pierre Girard – A pecuária tradicional com certeza tem modificado o ambiente original do Pantanal, mas, visto a quantidade de espécies que ali vivem, a pecuária tradicional consegue “conviver” bem com os ecossistemas naturais. O mesmo não pode ser dito da pecuária praticada nas regiões de planalto, onde grandes áreas de cerrado estão sendo transformadas em pasto plantado, o que pode ser considerado como uma forma de devastação do bioma Cerrado. Devastação também provocada pela agricultura industrializada.

Hoje, no Pantanal, novos pecuaristas vindos de outras regiões do país estão chegando. Uma boa parte dentre eles quer aplicar uma versão moderna da pecuária que consiste em remover as pastagens naturais e desmatar os bosques existentes para substituí-los por pastagens plantadas. Esta prática vem reduzir a biodiversidade vegetal e também destruir numerosos habitats para as espécies animais.

IHU On-Line – Qual o impacto do turismo no bioma Pantanal?
Pierre Girard – Quando se considera o turismo de pesca, há possibilidade de sobrepesca, ainda que não exista ainda hoje um monitoramento adequado dos estoques pesqueiros do Pantanal.

No Pantanal, o turista vem principalmente para avistar a fauna (aves e mamíferos). Alguns empreendimentos têm tido comportamentos agressivos, como construções em lugares inadequados, ocasionando remoção de matas ciliares ou de outras formações arbóreas. No entanto, os empreendimentos turísticos ocupam uma área reduzida e geram impactos limitados quando comparados à pecuária “moderna” e a grandes obras de engenharia, por exemplo, ou ainda à recente “invasão” da plantação de soja no Pantanal.

IHU On-Line – O que as experiências do pantaneiro nativo ensinam sobre a preservação do ambiente?
Pierre Girard – Ensinam que a pecuária, do modo tradicional, convive com a conservação da biodiversidade. Depois de mais de 200 anos de pecuária extensiva no Pantanal, temos ainda um sistema ecológico saudável que garante a manutenção de uma grande biodiversidade.■

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