Edição 499 | 19 Dezembro 2016

O inimigo e o ladrão na figura do estrangeiro

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Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

Gustavo de Lima Pereira acredita que hoje se está vivendo “um momento mundial de emparedamento à extrema direita”. A consequência é que o outro passa a ser visto como ameaça e agente desestabilizador

Hospedar o outro consiste, de certa forma, em acolher o diferente a mim. Entretanto, como destaca o professor da PUCRS Gustavo de Lima Pereira, o tempo que se vive faz com que tomemos esse outro, o estrangeiro a mim, como um agente desestabilizador. E isso se dá, muito especialmente, com aquele que migra de lugares em condições mais precárias. Assim, constituo sobre ele a figura de um inimigo e ladrão que visa tomar posse do meu espaço, esgueirando-se de forma que eu não consiga vê-lo. “Não há nada mais potente na luta contra o inimigo do que torná-lo invisível. Uma invisibilidade sem limites. Para se atingir esse patamar de invisibilidade, é preciso elastecer a categoria de inimigo”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Pereira identifica dois fatores como problemas de acolhimento aos migrantes, essencialmente a partir da experiência da Europa e dos Estados Unidos. “O primeiro deles é a crise econômica. Em momento de crise econômica, o estrangeiro é tido como um ‘ladrão de empregos’. Em um cenário de crise, legitimam-se maiores apropriações de discursos de ódio”, explica. O professor ainda lembra que isso já pode ser mensurado também no Brasil, com haitianos e senegaleses. “Outro fator de visível vinculação para a demonização do estrangeiro em sede internacional concentra-se na ‘caça ao terrorismo’”, aponta. Pereira explica que “o discurso estadunidense posterior ao 11 de setembro fora sempre um discurso de que esse tipo de acontecimento ‘não deveria acontecer aqui’, quando a postura, quem sabe mais justa, talvez fosse a de que tal episódio ‘não deveria acontecer em lugar nenhum’”, analisa.

Gustavo de Lima Pereira é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, graduado em Direito e especialista em Ciências Penais também pela PUCRS. É, ainda, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Atualmente, é professor de Direito Internacional e Filosofia do Direito na PUCRS e advogado do Grupo de Assessoria a Imigrantes e a Refugiados - Gaire, vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Entre suas publicações, destacamos Direitos humanos & hospitalidade: a proteção internacional para apátridas e refugiados (São Paulo: Atlas, 2014) e A pátria dos sem pátria: direitos humanos & alteridade (Porto Alegre: Editora UniRitter, 2011).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - No que consiste a hospitalidade incondicional de Derrida ?

Gustavo de Lima Pereira - A hospitalidade regrada, ou condicional, estaria relegada ao campo do Direito. Foi a hospitalidade pensada por Kant , em sua clássica obra A paz perpétua . Em Derrida, a hospitalidade transcende para além do Direito. Ela nos remete à figura do "estrangeiro". A hospitalidade incondicional, ou justa, chega de surpresa para romper com a hospitalidade condicional do Direito, por, como aqui pretendo sustentar, saber lidar com a aporia de não poder ser destinada somente ao estrangeiro, no sentido da soberania jurídica entre territórios, mas sim ao totalmente outro, que não detém documentos ou até mesmo é impedido de comunicar-se devido à dificuldade idiomática. Enfim, destinada a um novo sentido que podemos atribuir à ideia de estrangeiro — ao totalmente estrangeiro e não somente o estrangeiro do direito ou da soberania.

 

IHU On-Line - Quais as semelhanças e diferenças entre a hospitalidade justa e a hospitalidade de direito?

Gustavo de Lima Pereira - Poderíamos fazer uma analogia entre a hospitalidade "de convite" e a hospitalidade "de visitação" para estabelecermos mais detidamente a diferença entre a hospitalidade incondicional (ou justa) e a hospitalidade condicional (ou condicionada ao direito), proposta pelo pensamento de Derrida.

Com respeito a esse acolhimento ou hospitalidade incondicional, Derrida estabelece justamente a distinção entre o convite (invitation) e a visitação (visitation). Enquanto convite é o dirigido a quem, de algum modo, já preenche o rumo da cadeia prévia de expectativas, segundo normas sócio-político-morais, a visitação rompe com conjunto natural da organicidade temporal e surpreende o tempo, sem notificá-lo antecipadamente.

A distinção entre ambos não é do tipo quantitativo, pois não se inscrevem gradualmente em uma mesma dimensão processual — como se fossem dois momentos distintos da hospitalidade inseridos no campo do possível. Convite e visitação são duas dimensões que se compatibilizam por sua incompatibilidade. Exatamente demarcam a estrutura aporética da própria compreensão da hospitalidade. 

Para compreendermos essa problematização aporética, devemos ter em mente que a relação de hospitalidade com o convidado é do tipo horizontal, ou seja, é, por um lado, uma relação que implica um código comum e uma demarcada reciprocidade (ele entra no espaço do próprio vindo de um outro espaço próprio), e que, por outro, implica uma pré-visão — exatamente o olhar prévio, inserido num horizonte antecipativo, que amortece o impacto da surpresa: o convidado é visto quando se espera por ele, porque a hora da sua vinda está prevista e pode até aguardá-lo à janela para vê-lo vir.

Já a relação sem relação com o visitante é do tipo vertical: o visitante "cai sobre o hospedeiro", meteoricamente, interrompendo e estilhaçando o curso do esperado no cotidiano e do conjunto prévio de possibilidades pré-imaginárias. Na impossibilidade de antecipação de sua vinda, o outro fende o horizonte enxertando-lhe com uma verticalidade dissimétrica e irredutível a qualquer configuração espacial concebida pela racionalidade de quem acolhe. 

O tempo do convidado e o tempo do visitante

O tempo como convidado é o tempo cronológico pensado a partir do presente: ele aparece à hora marcada (mesmo que chegue adiantado ou atrasado, mantém ordenado o conjunto prévio de expectativas). Em contrapartida, o tempo do visitante é o tempo espectral do fantasma: a vinda do visitante deu-se sempre já em um tempo imemorial e irredutível a qualquer presente-passado e um porvir absolutamente aberto e eternamente diferido porque igualmente irredutível a qualquer presente-futuro.

Por isso, o visitante está sempre já ao mesmo tempo radicalmente adiantado e radicalmente atrasado. Adiantado porque a sua chegada é inantecipável e atrasado porque, ainda que sua vinda seja breve e inoportuna, ela nunca chega propriamente. Quando sua chegada inesperada se concilia com a acomodação ao tempo do hóspede, ele já partiu. Esse é o traço aterrorizante da hospitalidade. A hospitalidade, portanto, é sempre catastrófica. Não há festividade no pensamento da hospitalidade (como alguns a assim entendem). A hospitalidade é sempre o trabalho do luto de ter que lidar com a fantasmagoria do outro . 

O convidado é recebido, como se diz popularmente, "na medida do possível", isto é, o hospedeiro despenderá de todos os artifícios para saber recebê-lo bem. Já o visitante exige o impossível porque exige acolher um excesso absolutamente fora do programa — irredutível às múltiplas possibilidades do acolher. Acolher o visitante seria, portanto, acolher para além da capacidade do acolhimento, logo, é acolher o impossível. O acolhimento possível preenche os requisitos do acolhimento do convite.

 

IHU On-Line - A postura dos países do bloco europeu em relação aos migrantes é de hospes (hospitalidade) ou hostes (hostilidade)?

Gustavo de Lima Pereira - Esse binômio hospitalidade/hostilidade é também muito bem debatido por Derrida. Para ele, não seria um a moeda reversa do outro. O caráter etimológico da hospitalidade contém a hostilidade. Por isso Derrida se vale do neologismo "hostipitalidade". A essa incalculável e formalizável; perfeita e insuficiente; plena e pueril; desejante e que deixa a desejar relação entre a hospitalidade incondicional e a hospitalidade condicionada ao direito, Derrida chamou de "hostipitalidade". Esse sintagma derridiano diz justamente que toda a hospitalidade implica de antemão a hostilidade, isto é, o hiato entre a capacidade finita de acolher no mundo e a injunção infinita ao acolhimento incondicional do absolutamente outro e que exige o acolhimento efetivo e, por conseguinte, o espaço público da inscrição do significado pela linguagem. O acolhimento sempre é feito com reservas porque o hóspede pode ser também um inimigo. Lembremos que o radical hostis marca tanto o poder de acolher quanto a indistinção entre hóspede e inimigo.

A hospitalidade incondicional como exposição absoluta ao que vem é também a exposição imperiosa ao risco absoluto, já que este recém-chegado pode ser qualquer outro, anunciado única e singularmente. Se fosse possível antecipadamente determos segurança de que a chegada deste que se aproxima não nos causa ameaça, então não se trataria de hospitalidade, uma vez que a incalculabilidade e a imprevisibilidade, de anunciam e constituem o acontecimento, estaria esvanecida. Essa exposição ao inaudito — a vulnerável ameaça de que o pior aconteça como um risco que é preciso estar pronto a correr — evita qualquer conotação moralista, uma vez que na cena da hospitalidade o bem chega já desde sempre contaminado pelo mal. A possibilidade do parasitismo é essencial à cena da hospitalidade. Toda a hospitalidade é um convite ou uma expectativa à experiência do parasitismo. 

A chegada do outro como ameaça

A reação natural do encontro com o recém-chegado é a do distanciamento da subjetividade e do recrudescimento das fronteiras, ambas situações articuladas pela dinâmica da soberania da razão e da soberania dos Estados. Esse duplo movimento é resultado da gênese de todo colonialismo, que apaga a diferença ao relacioná-la violentamente com o mesmo, sendo também toda a gênese do ego constituinte e de toda a instância soberana.

Nesse sentido, a soberania do eu e a soberania dos Estados observam a chegada do outro como uma ameaça. A crise das migrações forçadas ao redor do mundo nos rememoram a cada instante dessa dificuldade de acolhimento. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – Acnur, uma a cada 113 pessoas é refugiada. Mais de metade dos refugiados do mundo (com número que ultrapassa 65 milhões, tornando-se agora a maior crise migratória da história, em números absolutos) são mulheres e crianças. É evidente que a Europa, principalmente seus países mais prósperos, não sabe lidar com o fenômeno atual dos refugiados. Vale lembrar também que os países que mais acolhem refugiados não são países ricos, nem é a Europa o local onde mais se concentram refugiados no mundo. 

 

IHU On-Line - Como podemos compreender a atual experiência europeia com os milhares de migrantes a partir das lógicas da hospitalidade?

Gustavo de Lima Pereira - Vivemos atualmente um momento mundial de emparedamento à extrema direita. Esse emparedamento reflete de forma decisiva no acolhimento ao estrangeiro. Identifico dois fatores fundamentais para identificarmos o problema do acolhimento aos migrantes em geral, principalmente os em situação de maior vulnerabilidade, na Europa e nos Estados Unidos.

O primeiro deles é a crise econômica. Em momento de crise econômica, o estrangeiro é tido como um "ladrão de empregos". Em um cenário de crise, legitimam-se maiores apropriações de discursos de ódio. No Brasil isso já é bem visível com haitianos e senegaleses. Na Europa, em países onde o desemprego entre jovens chega a 25% em muitas cidades, o rancor ao estrangeiro torna-se "legitimado". A União Europeia conta ainda com uma legislação, chamada de "Diretiva de retorno", que estabelece a retirada compulsória de estrangeiros inclusive em situação regular, de acordo com a discricionariedade dos Estados membros .

Outro fator de visível vinculação para a demonização do estrangeiro em sede internacional concentra-se na "caça ao terrorismo". O discurso estadunidense posterior ao 11 de setembro  fora sempre um discurso de que esse tipo de acontecimento "não deveria acontecer aqui", quando a postura, quem sabe mais justa, talvez fosse a de que tal episódio "não deveria acontecer em lugar nenhum", como asseverou Slavoj Zizek  na obra Ben-vindo ao deserto do real . A postura internacional comum, impulsionada pela própria ONU, deveria ser no sentido de que um atentado deste quilate não deveria acontecer em qualquer lugar. Barack Obama , nos primeiros instantes após o episódio das bombas instaladas na maratona de Boston, em abril de 2013, em pronunciamento oficial, não relacionou o ocorrido, que deixou três mortos e 176 feridos, a algo ligado à figura do terrorismo. Após, voltou atrás e reativou a retórica de caça ao terror, prometendo que os culpados enfrentariam a justiça estadunidense. Não cumpriu: um dos suspeitos, poucos dias após o acontecimento, foi morto sem qualquer julgamento, sob o questionável argumento de uma suposta "resistência à prisão", alegado pelas autoridades para legitimar a morte do suspeito.

Como temos visto desde então, a resposta estadunidense ao 11 de setembro focou na produção de novos inimigos, sugerindo que estes detêm o poderio destrutivo tão latentemente robusto que é capaz de produzir, a qualquer instante, atentados que desafiariam novamente a democracia. A possibilidade de chegada do inimigo a qualquer momento legitima a violência ao terrorista em todo o momento.

Inimigo invisível

Não há nada mais potente na luta contra o inimigo do que torná-lo invisível. Uma invisibilidade sem limites. Para se atingir esse patamar de invisibilidade é preciso elastecer a categoria de inimigo, tendo sido ela já modificada inúmeras vezes: o primeiro discurso desenvolvido pela retórica de produção de responsabilização identificou os inimigos da democracia pela emblemática ideia de "redes terroristas". Em um segundo momento, a terminologia empregada passou a ser o "eixo do mal", protagonizado por Iraque, Irã e Coreia do Norte e, posteriormente, evoluiu para ideia dos "Estados produtores de armas de destruição em massa", categoria que engloba a maioria dos países que apoiam os Estados Unidos nesta meta de "democratização" do Oriente Médio e da Ásia menor. 

Um acontecimento sem nome

Essa talvez seja a grande mensagem do 11 de setembro. Um acontecimento que não tem nome. Tentamos dar nome ao seu significado por uma data, como atribuiu Derrida em seu diálogo com Habermas  na obra Filosofia em tempo de terror . A mensagem subliminar que esculpe a ideia é a de que experimentaremos por um longo tempo a legitimação da violência em nome da reprodução da soberania e da segurança nacional, cujo álibi é o inimigo invisível, que jamais cessará sua chegada, sempre iminente.

O discurso estratégico da segurança nacional tenta difundir a ideia de que a luta contra o "terrorismo internacional" representa a luta em favor da democracia e da liberdade. Mas esse discurso não expressa o conteúdo do conceito de "terrorismo internacional". Quanto mais abstrato e confuso o conceito, mais ele está sujeito a uma apropriação oportunista. Por este motivo que a ONU, sem desenvolver um debate filosófico de maior profundidade sobre o tema, autorizou os Estados Unidos a adotarem qualquer estratégia necessária, segundo seus próprios critérios, para eliminar a possibilidade de acontecimentos similares futuros.

 

IHU On-Line - Se pensarmos no contexto nacional, como a desigualdade manifesta uma não hospitalidade endógena?

Gustavo de Lima Pereira - O cenário político atual das relações internacionais aponta-nos um tempo de crise. A crise, por certo, perpassa pelo horizonte do tecnocapitalismo e de toda a discussão sobre a democracia e sobre sua capacidade de aperfeiçoamento, em uma época onde mais vemos a evocação da democracia como uma nova religião mundial ou como um slogan em um discurso adocicado de paz e conciliação que ao fundo neutraliza as tentativas radicais de transformação. Frente a isso, vivemos um momento onde poucos se irrompem contra esse sistema, e quando percebem-se manifestações sociais que detêm a incumbência de trazer à pauta comum uma discussão em torno do funcionamento do poder, estas sofrem na carne a violência da retórica do poder e do poder inclusive policial.

Por assombrarem esse modelo de política que a nós é imposto pelo efeito acomodador da democracia-liberal-parlamentar, as pautas gerais dos movimentos são rapidamente desmerecidas e enquadradas à figura do bando, do vândalo e do vadio. A violência hegemônica no Brasil (bem representada principalmente pelo abuso do poder de polícia) é censurada pelos meios de comunicação mais influentes.

A discussão se sobrepõe, ou se sobrepôs, às averiguações de hoje em torno da democracia, desmistificando seu status de esfera neutra da mão invisível do Estado a serviço do bem comum. Não devemos acreditar, como as experiências recentes nos mostram claramente, que o mercado é um mecanismo benigno que funciona melhor quando é deixado por conta própria, pois há uma violência intrínseca, externa a ele, que mantém as condições de seu funcionamento. 

Incapacidade de regular o tecnocapitalismo 

A democracia-liberal-parlamentar-tolerante já nos deu provas suficientes de sua incapacidade em impor limites aos interesses do tecnocapitalismo, sobretudo sobre o sistema financeiro-especulativo, um dos principais responsáveis pela produção das periódicas crises econômicas no mundo. À primeira vista, uma solução poderia ser pensada na esteira da democratização da economia, mas é ilusório acreditarmos que seja realmente possível o controle popular dos bancos e das instituições financeiras.

A conclusão mais realista que podemos antever é no sentido de que a democratização desta democracia, se ainda pensada nos mesmos moldes, não ocorrerá. Esta afirmação não significa apenas o cinismo descrente em relação aos parâmetros da política de hoje. Significa algo maior. Acreditar na democratização da economia significa acreditar que é possível uma vez mais remendar o velho e desgastado casaco, utilizando o seu próprio tecido corroído pelo tempo, sem perceber que ele já não aquece mais. 

Com efeito, é possível percebermos que a pergunta desconstrucionista deve apontar sua mira não apenas em direção ao capitalismo, mas também à democracia — “a ilusão da democracia” —, cuja principal perversidade está no fato de somente admitir soluções às suas crises a partir de sua própria dinâmica estruturante, sem permitir uma transformação radical na sua carcaça interna. Esta democracia só admite respostas à sua crise de sentido a partir da aplicação dos já velhos e empoeirados mecanismos democráticos. Evoca sempre o recorrente procedimentalismo-constitucionalista, apostando todas as fichas na formalização da vida. Não perceber o rol de violências e injustiças oriundas do paradigma liberal seria como cair no ridículo, segundo Jacques Derrida . Pois "quem pensa que as democracias atuais são verdadeiras democracias, mente aos outros e a si" .    

 

IHU On-Line - Como o humanismo de Derrida encontra eco em Levinas ?

Gustavo de Lima Pereira - Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que Derrida foi um grande crítico do "humanismo" e isso é, inclusive, um ponto de distinção entre ele e Levinas, que foi um autor declaradamente humanista. Derrida abre a discussão para uma ontologia sem "vontade de origem", como as ontologias clássicas, e uma latente abertura para a "animalidade" como em obras como O animal que logo sou.

Em Levinas, a preocupação é com a ética do humano, como filosofia primeira, tema que ocupou também claramente Derrida, mas sem ocupar o centro vital do palco, como em Levinas. Mas a aproximação entre Derrida e Levinas, além de filosófica e evidente, remete também ao campo da amizade. Merecem por aqui serem discorridas algumas linhas. 

Derrida, com pouco mais de 30 anos de idade, tomou conhecimento da obra Totalidade e infinito , uma das mais significativas construções deixadas pelo pensamento levinasiano, através de Paul Ricoeur . Derrida, que até então conhecia apenas os trabalhos relacionados a Husserl  e Heidegger  escritos por Levinas, deixou claro inúmeras vezes, em cartas e escritos, a tamanha singularidade deste filósofo em meio aos demais intelectuais franceses de sua época, além de apontar jamais tê-lo abandonado como referência filosófica . Em 1964, Derrida assistiu o curso lecionado por Levinas, aproximando-se cada vez mais de seu pensamento e de sua figura pessoal, iniciando um laço afetivo que iria perdurar até o final de suas vidas .

Alinhamento entre Levinas e Derrida

Essa presença/distante, repleta de amizade e admiração recíproca, marcou a relação entre ambos, onde cartas e telefonemas corriqueiros alimentaram essa relação singular. Em inúmeros textos que tocam de forma mais acurada o tema da justiça, Derrida posiciona-se ao lado Levinas no que tange ao tema do acolhimento e da exterioridade, fazendo-se clara a influência do autor. Após a morte de Levinas, Derrida pronuncia-se com dois textos de primoroso rigor, afetuosidade e tristeza pela perda de um daqueles que mais próximos lhe esteve, apesar da distância. Um deles lido na forma de discurso ao passo do enterro do mestre:

Há muito tempo, há tanto tempo, eu temia dizer Adeus a Emmanuel Levinas. Sabia que minha voz tremeria no momento de fazê-lo, e sobretudo de fazê-lo em voz alta, aqui, diante dele, tão perto dele, pronunciando esta palavra de adeus, esta palavra "a Deus" que de certa maneira, recebi dele, esta palavra que ele me ensinou a pensar ou pronunciar de outra forma .

Levinas, por sua vez, também deixou estridente o apreço pela figura pessoal e intelectual de Derrida, dedicando-lhe, em 1973, o artigo Jacques Derrida. Tout Autrement, texto que integraria posteriormente a obra Nomes Próprios. Nesse texto, o filósofo confessou o seu “encontro filosófico” com Jacques Derrida como sendo e tendo sido o registro do “prazer de um contacto no coração de um quiasma” , enunciado que talvez expresse por si só a relação entre os pensadores.

Como muito bem claro mostrou Fernanda Bernardo , o pronunciamento afetuoso de Levinas deixou marcas no coração de Derrida e pegadas visíveis por seus escritos, respondendo-lhe que este quiasma era mesmo "muito estreito". Esta talvez seja a efetiva marca da lealdade infiel que demarcou a relação filosófica entre ambos, que nada mais é do que a própria marca do acolhimento de duas singularidades absolutas — ou secretas — ou absolutamente secretas; como a marca de um idioma: ao mesmo tempo intocável, inapropriável e intraduzível. 

Acolhimento e o outro

Um debate incessante sobre o tema, nos diria Derrida, passa pela resposta à questão — ou as que dela decorrem: Quem é o “outro”, o “absolutamente outro” (“tout autre”) na “ética” de Levinas? Uma questão a que, sabemos, Levinas responderá na enseada de “o outro homem". Derrida, por sua vez, responderá — contra-assinará — desconstrutivamente à própria resposta de Levinas, afirmando que o “Tout autre est tout autre”. “O absolutamente outro é absolutamente (qualquer) outro". Essa marca do "qualquer outro" sobressalta sobre a discussão a respeito do humanismo. Em Derrida, devemos anotar, como referi no início da resposta a essa pergunta, que o tema da animalidade deva ser visto mais outramente do que o próprio outro.

Ao olhar o olhar do outro, diz Levinas, deve-se esquecer a cor dos seus olhos, dito de outra maneira, olhar o olhar, o rosto que vê antes dos olhos visíveis do outro. Mas quando ele lembra que "a melhor maneira de encontrar o outro é nem mesmo notar a cor dos seus olhos...", ele fala então do homem, do próximo enquanto homem, do semelhante e do irmão, ele pensa no outro homem, e isso constituirá para nós, mais tarde, o lugar de uma grave inquietação .

Poderia aqui tecer páginas e páginas tentando desmembrar as inúmeras implicações em relação a esta aproximação que se distancia entre Derrida e Levinas, porém tal tarefa não guardaria espaço nesta entrevista. Em minha tese de doutorado, que trata da hospitalidade em Derrida e que será publicada no ano de 2017, estão presentes maiores detalhes pelos quais remeto o leitor. 

 

IHU On-Line - Qual o grande desafio na contemporaneidade para construir caminhos de convivialidade com o Outro, a Alteridade?

Gustavo de Lima Pereira - O tema da alteridade está visivelmente próximo da hospitalidade incondicional pensada por Derrida. A "lei da hospitalidade" se resguarda no acolhimento da alteridade do totalmente qualquer outro "sem ao menos olhar a cor de seus olhos", como diria Levinas. Para além das "leis da hospitalidade", demarcadas e condicionadas pelo direito de cada Estado e pelos limites do direito internacional. 

A lei da hospitalidade reivindica e representa a renúncia ao horizonte calculável e preestabelecido pelas regras jurídicas internacionais, que delimitam a relação com a alteridade que a mim se dirige. Para Derrida, a lei da hospitalidade atua como uma lei incondicional e ilimitada, como o oferecimento do lar a quem chega de fora, ao estrangeiro da subjetividade, nessa nova percepção de como podemos pensar a estrangeiridade. Mais que isso: a lei da hospitalidade oferece a si própria o seu próprio si, “sem pedir a ele nem seu nome, nem contrapartida, nem preencher a mínima condição", como diria Derrida. A lei da hospitalidade está em contraponto às leis da hospitalidade, que se dirigem a direitos e deveres sempre condicionados e condicionais, como os tratados e convenções que tratam as relações entre as nações. 

Acolher incondicionalmente o outro

A hospitalidade, vista de modo condicional, remonta a toda a tradição da cultura ocidental, desde seus primórdios greco-romanos, de todo judaísmo e cristianismo, de todo o direito e de toda a filosofia do direito até Hegel , como apontou seguidamente Derrida ao longo de suas obras. Em contrapartida, a lei da hospitalidade incondicional, herdada de um passado imemorial e ao mesmo tempo sempre por vir, obriga a acolher incondicionalmente o absolutamente outro.

Tal obrigação, sem obrigar, constitui-se no âmbito pré-volitivo e até mesmo pré-moral, como estrutura prévia que antecede toda e qualquer ideia de intencionalidade, como vimos anteriormente. Concentra em pensar o político para além do político, a partir de uma nova internacionalidade; a partir de um cosmopolitismo reinventado. Um cosmopolitismo para além do cosmopolitismo político pensado pelo ideário kantiano-iluminista, pois esse cosmopolitismo está ainda condicionando pelos limites jurídico-políticos que sustentam a estrutura artificial da soberania tradicional dos Estados. E esse cosmopolitismo jurídico, guiado pelas leis da hospitalidade condicional, revelou-se e revela-se incapaz de responder aos inúmeros conflitos internacionais envolvendo seres humanos incluídos no sistema pela sua exclusão, valendo-me eu aqui de uma terminologia empregada por Giorgio Agamben .

 

IHU On-Line - Afinal, o que é a hospitalidade?

Gustavo de Lima Pereira - Eu definiria, por fim, que a hospitalidade é, na esteira de pensamento de Jacques Derrida e Kierkegaard  e que ganham guarida em Ricardo Timm  de Souza, "o reconhecimento da loucura pela justiça perante o mistério do rosto de outrem". A loucura pela justiça é um tema que ocupou Derrida principalmente na clássica obra "Força de lei". Como diria Derrida, estar aberto à experiência da loucura seria como estar aberto à experiência do impossível. 

É preciso dar chance a essa experiência impossível — de uma nova compreensão do horizonte possível-impossível — para termos a dimensão do que a justiça como desconstrução pode nos auxiliar a pensar o direito. Como aponta Derrida : "é preciso falar aqui do acontecimento im-possível. Um im-possível que não é somente impossível, que não é somente o contrário do possível, que é também a condição ou a chance do possível. Um im-possível que é a própria experiência do possível". Pensar o instante de decisão como uma loucura indecidível pela justiça é uma experiência do impossível (aliás, enlouquecer não seria nada senão salvar a honra da razão , muito embora seja a desconstrução um racionalismo incondicional, porém aberto ao por vir?), e essa experiência do impossível transfigura-se, digamos uma vez mais, como uma experiência radical do talvez, pois só há decisão, se há, se ela atravessar o absoluto deserto. 

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Gustavo de Lima Pereira - A hospitalidade pode ser interpretada como o outro nome da "desconstrução", conceito mais identificável com o pensamento de Derrida e que deu a ele notoriedade internacional. Derrida afirmou não conhecer nada mais justo do que a sua desconstrução. Logo, evidentemente o tema da justiça, da hospitalidade e da desconstrução são temas indissociáveis no pensamento do autor.■

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