Edição 499 | 19 Dezembro 2016

Hóspede, aquele que acolhe e é acolhido

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João Vitor dos Santos | Edição: Márcia Junges | Tradução: Ramiro Mincato

Acolher é humanizar as relações entre as comunidades, pontua Claudio Monge. “Lógica do terror” se converteu em estratégia política que não percebe a singularidade irrepetível das pessoas, reduzidas a um estereótipo

Sem reconhecer a alteridade não há diálogo, nem a própria singularidade. Esse é um motivo a mais para que se pratique a acolhida, “lá onde o mercado ainda não se apropriou da hospitalidade, arrancando-a da gratuidade e forçando-a a entrar na lógica comercial”, menciona o frade dominicano Claudio Monge na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Nós existimos e a humanidade existe porque originalmente cada um de nós foi, primeiramente, hospedado, acolhido. ‘Mãe’ é o nome da hospitalidade ativa, da hospitalidade primordial”, afirma o italiano radicado na Turquia. Vivendo no Oriente, “descobri uma hospitalidade que é ARTE: uma atitude de atenção que não faz exceção com ninguém, mas que é também capacidade de tomar e dar o tempo”, frisa o teólogo.

Claudio Monge é teólogo italiano. Frade da Ordem dos Pregadores, desde 1997 vive sua experiência teológica e pastoral em Istambul, Turquia, como Superior da comunidade e responsável pelo Centro Dominicano para o Diálogo Inter-religioso e Cultural - DOST-I no diálogo-encontro com a tradição muçulmana.

O encontro com um turco hospitaleiro o levou a aprofundar a experiência existencial e teológica da hospitalidade, desde contextos culturais e religiosos mais diversos. O foco central é a experiência abraâmica, que na acolhida dos seus hóspedes misteriosos extrapola a "memória cultural" da theoxenia e adentra o espaço de uma autêntica teofania no serviço ao outro. Entre seus livros publicados, destacamos Taizé. L’espérance indivise (Paris: Les Éditions du Cerf, 2015). Outras obras importantes são Stranierità, nomadismo dell’anima (Milano: Sacra Doctrina, 2015), Stranieri con Dio. L’ospitalità nelle tradizioni dei tre monoteismi abramitici (Milano: Terra Santa, 2013) e Dieu hôte. Recherche historique et théologique sur les rituels de l'hospitalité (Bucharest: Zetabooks, 2008).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - De que forma a perspectiva teológica da hospitalidade pode contribuir para a compreensão das dimensões humanas nas relações entre países?

Claudio Monge - A Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II  Gaudium et Spes , talvez mais do que qualquer outro documento do Concílio, foi capaz de expressar programaticamente uma intuição simples e revolucionária ao mesmo tempo, que pode ser resumida assim: a Igreja está a serviço do Reino, quando aprende a "estar no mundo". Ela define-se no serviço ao ser humano, afirma que não há nada verdadeiramente humano que não encontre eco em seu coração. Isto representa o nascimento de um novo humanismo, em que o homem, em primeiro lugar, define-se por sua responsabilidade perante seus irmãos e perante a história (GS, 55). Lá onde o mercado ainda não se apropriou da hospitalidade, arrancando-a da gratuidade e forçando-a a entrar na lógica comercial (transformando, consequentemente, o necessitado em cliente dos serviços humanitários e ajudas, onde ele será acolhido simplesmente de acordo com sua disponibilidade econômica), acolher significa humanizar a humanidade mesma e, portanto, também as relações entre as comunidades. 

Na verdade, o modo de conceber e viver a hospitalidade revela o grau de civilização de um povo, no que diz respeito à dignidade de cada ser humano, evitando reduzi-lo a "refém"... O dever de hospitalidade é um dever não só individual, mas também político. Numa época em que o multiculturalismo e o processo de hibridação das civilizações são vistos como um dos fenômenos sociais mais rápidos e mais extensos, a mensagem de certas políticas nacionalistas emergentes significa uma recusa da contaminação, vivida não apenas como enfraquecimento cultural, mas também como atentado aos interesses legítimos. Neste âmbito, as religiões são muitas vezes usadas — a serviço da ideologia — para semear contrastes e espalhar terror. E isto corresponde à derrota da política mesma que, ou é inclusiva e, portanto, "programaticamente hospitaleira", ou trai sua própria essência, bem expressa na semântica grega filosoficamente declinada por Aristóteles : expressão da polis (πόλιϚ) como comunidade que se constitui em vista de um bem. 

 

IHU On-Line - Em que sentido o fato de assumir a própria identidade é importante para o processo de reconhecimento da identidade do outro?

Claudio Monge - Não há diálogo sem reconhecimento da alteridade, mas também da própria singularidade. Esta é uma razão a mais para apreciar a importância da prática da acolhida, que reorganiza de maneira nova a própria compreensão da identidade individual. Tudo pode realmente começar quando somos acolhidos, bem como quando somos capazes de acolher. As declarações, por vezes xenófobas, de políticos, como das pessoas comuns, são sinal da fraqueza identitária. É o medo que faz falar dessa maneira, e não a consciência de quem somos realmente. Saber quem somos e de onde viemos (numa palavra: cultivar nossa identidade originária) são condições essenciais da hospitalidade. Mas não são suficientes: é preciso aprender a "conhecer" o outro, para dialogar (eliminando os preconceitos oriundos de boatos e compreensões estereotipadas) e, num segundo momento, a “re-conhecê-lo”. Mas isso só é possível quando se começa a levar a sério a existência do outro na sua "diferença irredutível" (no sentido objetivo de uma diferença que deve ser aceita como tal, na sua consistência própria, e não simplesmente em referência ao que tem ou não relação a nós): a existência dos seus sonhos e aspirações para uma vida digna, a realidade da sua vida religiosa, a sinceridade de sua sensibilidade espiritual, a legitimidade da sua pretensão à verdade. É um longo caminho, e Edmond Jabès  lembrava que a distância que nos separa do estrangeiro é a mesma que nos separa de nós mesmos.

 

IHU On-Line - Em que medida a experiência do encontro com o outro pode ser transformadora? E de que ordem é esta transformação?

Claudio Monge - Tendo em vista as diferenças acima, um encontro que respeite as diferenças significa um encontro onde se aprende a caminhar com eles, pois só assim se acede ao átrio hospitalidade divina que, ao contrário de hospitalidade humana, não se satisfaz em aceitar o outro no seu próprio espaço, mas se convida a entrar no espaço do outro, para ser acolhido por ele (Ap 3,20)! Uma primeira constatação, a partir destas premissas: a experiência do encontro não implica a necessidade imperativa de um acordo. Sua função é, ao invés, de conduzir a uma maior clareza e abertura no debate, permitindo igualmente a todos os interlocutores de superar-se, de não se fossilizar nas próprias certezas, mesmo sem com isso renunciar à própria identidade. Aqui repousa o caráter transformador da hospitalidade, porque só experimentando-a se realiza aquela humanidade que exatamente na “relação” possui um elemento característico. E esta relação se explicita não só no acolher, mas também no saber-se acolhido, porque o hóspede é ao mesmo tempo aquele que acolhe e aquele que é acolhido. Nós existimos, e a humanidade existe, porque na origem, cada um de nós foi, em primeiro lugar, hospedado, acolhido. "Mãe" é o nome da hospitalidade ativa, da hospitalidade primordial.

 

IHU On-Line - Quais as diferenças e semelhanças na prática da hospitalidade nas culturas ocidentais e orientais?

Claudio Monge - Sem dúvida, desde minha chegada ao Oriente Médio, tenho experimentado uma constante prática de hospitalidade, que perturba os cânones clássicos do gesto, muitas vezes, reduzido, por nós, num ato bom de caridade. Descobri ali uma hospitalidade que é ARTE: uma atitude de benevolência que não faz exceção para ninguém, mas que também é capacidade de tomar e de dar tempo. Na verdade, é exatamente a relação radicalmente diferente, com relação ao tempo e ao espaço, que distingue a prática da hospitalidade nas culturas orientais, em relação aos encontros formais e frequentemente funcionais com necessidades específicas que se vivem no Ocidente. A hospitalidade oriental inclui uma rede muito complexa de pequenos gestos, às vezes quase rituais (como a pequena taça de chá oferecida cinco, dez vezes por dia, mesmo em contextos que nada têm a ver com um bar, ou o fato de servir refeições pródigas ao hóspede, mas não comer com ele), o legado de uma generosidade quase instintiva, mas também uma confiança inata que se repõe no "desconhecido de passagem": atitudes das quais, muitas vezes, perderam-se os vestígios no Ocidente, em primeiro lugar, porque a vida agitada impede ver o rosto das pessoas...

 

IHU On-Line - No que a ideia de hospitalidade pode inspirar a pensar na relação com o mundo islâmico e na chamada "guerra contra o terrorismo"?

Claudio Monge - A "lógica do terror", que tornou-se uma verdadeira e própria estratégia política, está baseada num olhar estereotipado, onde o outro não é percebido em sua singularidade irrepetível, mas sempre e comumente reduzido ao mundo do qual nós pensamos que ele deva provir. Por exemplo, não há nenhuma menção de terroristas concretos, de bandidos identificáveis e identificados, mas apenas e sempre de terrorismo islâmico, transformando a diversidade de crentes do Islã num único bloco, numa real ou potencial ameaça. Em outras palavras, de acordo com essa lógica, se você é muçulmano, você será sempre um potencial terrorista, mais do que um crente. As tentações particularistas que vemos um pouco por todos os lados, mais cedo ou mais tarde, geram tendências xenófobas e racistas, tendem à exclusão dos outros, transformam-se num autismo sociocultural, onde se vive um ideal regressivo de autoisolamento e onde se assumem linguagens e formas expressivas rudes para não dizer vulgares. A proximidade de Deus é, no entanto, o verdadeiro modelo de hospitalidade, não atestada e realizada na forma de uma imposição identitária, nem de um juízo genericamente coletivo, mas no estilo de um relacionamento interpessoal, que implica o encontro de rostos e histórias concretas, num cruzamento de olhares, numa escuta que é a maiêutica da verdade.

 

IHU On-Line - Vivemos num tempo de retomada radical do nacionalismo, como se vê nos exemplos do Brexit  na Inglaterra e na eleição — e na defesa das teses — de Donald Trump  nos Estados Unidos. O que este momento de nacionalismo extremo revela acerca dos conceitos de hostilidade e hospitalidade?

Claudio Monge - Parece-me que o dado mais alarmante dos dois exemplos trazidos, que exibem semelhanças, mas não podem ser sobrepostos, é precisamente a dimensão do "contra" que conseguem interceptar. Isso não significa que sejam simples fenômenos de "estômago", inspirados por um instintivo sentimento destrutivo! Penso que são expressão de uma grande solidão, são o epifenômeno da explosão total do vínculo social. O povo não é seduzido pelos populistas somente quando tem perto de si alguém que está do seu lado, e a política não está, atualmente, em condições de demonstrar essa proximidade. Não é por acaso que homens fortes emergem, um pouco por todos os lados, expressando a antipolítica. Esta nutre-se de ódio e de hostilidade, enquanto a hospitalidade é a capacidade de pôr-se ativamente na posição de acolher e servir as necessidades do outro, antes de qualquer juízo dele/dela. 

Enquanto pensar numa ética como hospitalidade significa entrar profundamente na identidade do outro a fim de compreender e explorar todas as suas características mais profundas, a lógica populista usa o ódio como um motor, incitando, se necessário, até mesmo os sentimentos mais sinistros do povo, para servir-se disso como eficaz cobertura de interesses particulares, apresentados como projeto universal. E pensar que um novo presidente dos Estados Unidos possa cercar-se de um time de sócios de negócios para fazer sua equipe de governo é sujo, assim como a desavergonhada tentativa da Inglaterra, de derrogar suas obrigações comunitárias com o Brexit, procurando, contudo, manter mais ou menos inalterados seus direitos de antigo membro da União.

 

IHU On-Line - O senhor vive a experiência de ser estrangeiro num país imerso em conflitos, a Turquia. O que esta experiência lhe revela acerca da hospitalidade e do encontro com o outro?

Claudio Monge - Creio que a situação, frequentemente desconfortável, de viver como estrangeiro num país que parece, aliás, esquecer sua história multicultural e religiosa, orientando-se para um nacionalismo fortemente identitário e, às vezes, xenófobo, seja, em alguns aspectos, a nova edição do desafio permanente, compartilhado por milhões de homens e mulheres, de criar um pensamento a partir da condição do "estrangeiro". Esta última não é simplesmente referência à dimensão escatológica da vida, mas um convite claro para viver de modo diferente neste mundo. Como crentes, sabemos que devemos nos desapegar progressivamente deste mundo, expressão da tensão em direção a um Reino que não é daqui. Há, porém, uma opção, não menos profunda, representada pela escolha de viver neste mundo, seguindo uma lógica, não de apropriação, mas de "desapropriação", isto é, de gratuidade.

Em outras palavras, a pessoa precisa ser capaz de compreender-se como estrangeira e peregrina, para poder encontrar o diferente de nós, na inteireza e complexidade da outra pessoa, sem reduzi-la aos problemas que sua presença traz. Mas também, estrangeiros e peregrinos para deixar-se acolher, entrando, na ponta dos pés, no espaço que o outro gostaria de nos abrir e oferecer. Mas o que significa, para nós hoje, recusar o conceito de "estrangeiridade" no coração da aventura humana? A possibilidade de uma sociedade sem estrangeiros, sem "estranhos" foi sonhada no horizonte da religião e da moral, e se apresenta novamente hoje num contexto de integração econômica e política planetária. Devemos nos perguntar se hoje podemos sonhar de viver com os outros sem ostracismos, mas também sem anular todas as diferenças! Trata-se de entender se a identidade cultural pode aceitar a parte da alteridade que faz da diversidade uma riqueza, e não uma ameaça.

 

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo?

Claudio Monge - Vamos celebrar o 800º aniversário da aprovação da Regra dos Frades Pregadores  (dominicanos), ordem a que eu pertenço. Meus irmãos chegaram à Turquia, na então Constantinopla, desde o início do século XIII. Muitas e variadas são as nuances de uma abordagem missionária, que desafia os séculos e que se encarna em realidades totalmente diferentes como o Império Bizantino, em vez do Otomano. Hoje, completamente liberto dos "protetorados" políticos e econômicos que há séculos nos permitiam agir e penetrar, em vastos territórios, com relativa facilidade, podemos finalmente dizer que começamos a via kenótica, que não foi somente a lei da encarnação, mas deve continuar a ser também aquela da "inculturação" (como deveriam ser as políticas sociais num mundo em movimento). Isto significa, entre outras coisas, que a missão real não é a restauração de uma ordem perdida! Ser missionários da radicalidade do anúncio cristão não significa ser os paladinos de uma ordem moral intangível, ou nostálgicos restauradores de uma hegemonia política e econômica, coberta com uma pátina cultural, mas significa testemunhar um absoluto que não é de ordem humana, mas divina. Absoluto que ainda hoje pode expressar-se na abundância, de fato incompreensível, do gesto hospitaleiro que atravessa as culturas e os séculos.■

Leia Mais

- Um Ocidente anestesiado na sua capacidade de hospitalidade. Entrevista especial com Claudio Monge publicada nas notícias do Dia de 7-2-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. 

- Papa Francisco na Turquia, o abraço com Bartolomeu e a sombra da Erdogan. Entrevista com Claudio Monge publicada nas Notícias do Dia de 28-11-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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