Edição 499 | 19 Dezembro 2016

Um símbolo radical da condição humana

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João Vitor Santos | Edição: Márcia Junges | Tradutora: Luisa Rabolini

Precariedade e provisoriedade são características da hospitalidade que tensionam a relação com o Outro. Para a Europa o maior desafio é colocar em prática esses preceitos, sobretudo com povos do Sul com quem o continente possui um débito, destaca Placido Sgroi

A hospitalidade pressupõe um tensionamento entre a possibilidade de um Outro, pois como a própria etimologia da palavra ensina, o termo em latim hospes (hóspede) provém de hostis (inimigo), pressupondo, em termos genéricos, o estrangeiro, o forasteiro e um potencial perigo. Para os europeus, hoje, a temática da hospitalidade os coloca diante de sua incapacidade cultural e política de serem hospitaleiros, reconhece Placido Sgroi na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line

O desafio para a Europa é justamente praticar a hospitalidade: “isso significa reconhecer o débito que temos em relação aos povos do Sul do mundo que batem à nossa porta e para os quais, acolhendo-os, nada mais fazemos do que restituir aquilo que a nossa civilização euro-norte-ocidental lhes tomou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitalidade mostra o lado frágil da nossa civilização e corre o risco de ser um sinal de perigosa esterilidade antropológica e cultural, antes mesmo que ética.”

Placido Sgroi faz parte de um grupo na Itália que trabalha especificamente o tema da hospitalidade, junto de Marco dal Corso e Brunetto Salvarani. Leciona Filosofia e História na Universidade de Verona e Teologia Ecumênica em Veneza. Cursou bacharelado em Teologia e licenciatura em Teologia Ecumênica no Studio Teologico “San Bernardino”, em Verona. É mestre em Antropologia e Bíblia pela Università Degli Studi di Verona e doutor pela Pontifícia Universidade Antonianum em Teologia Ecumênica. É autor de Ospitalità. Padova: Edizioni Messaggero Padova, 2015. Com Marco Dal Corso escreveu L’ospitalità come principio ecumenico. Pazzini, 2008.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A prática da hospitalidade é essencialmente um exercício de reconhecimento do Outro?Por quê?

Placido Sgroi - Porque sem o Outro simplesmente não existe hospitalidade. Como nos ensina a etimologia, o termo latim hospes (hóspede), deriva de hostis, inimigo, portanto genericamente, estrangeiro. Apenas aquele que não pertence ao meu círculo pode ser hospedado. Logo, para ser tal, o hóspede deve ser reconhecido como outro, externo, forasteiro, potencialmente perigoso, de alguma forma transcendente ao que já é meu.

 

IHU On-Line - Em que sentido a hospitalidade remete ao divino?

Placido Sgroi - Nas tradições mais antigas o hóspede é divino, pois pode estar escondendo em si mesmo um deus disfarçado. Contudo, deixando de lado esses aspectos mitológicos, é justamente a sua transcendência que o transforma num sinal do divino. Toda alteridade anuncia a possibilidade de um Outro, totalmente Outro. A hospitalidade faz isso de forma específica, pois, no mundo cristão, isso remete à encarnação do Verbo que se faz hospedar na carne e no mundo.

 

IHU On-Line - Que ideia de hospitalidade podemos apreender a partir dos relatos bíblicos? Como esse conceito vai se transformando até a atualidade?

Placido Sgroi - A narrativa bíblica estende a categoria de hospitalidade, transformando-a num sinal da condição humana. O próprio Israel é peregrino e hóspede sobre a terra, mesmo na sua terra. A hospitalidade, portanto, não anuncia apenas o divino, que se esconde no humano, mas a própria humanidade do ser humano, como precariedade, de um lado, mas também como possibilidade de sermos acolhidos, pelo outro. Para nós europeus, isso nos coloca frente à nossa atual incapacidade cultural, além de política, de sermos hospitaleiros.

 

IHU On-Line - O que a hospitalidade (ou a hostilidade) revela acerca da história humana?

Placido Sgroi - A hospitalidade é um símbolo da condição humana, símbolo radical, pois todos e todas somos porque fomos hospedados num ventre materno. Condição de precariedade radical que se torna condição de existência enquanto seres humanos. Dessa hospitalidade originária geram-se todas as outras que constituem a condição humana (por exemplo, somos hospedados pela linguagem que aprendemos). A história humana representa, portanto, a possibilidade de realizar essa condição originária no curso de toda uma existência, individual ou coletiva, ou, ao contrário, o seu fracasso.

 

IHU On-Line - Como surge e qual o papel da hospitalidade no diálogo ecumênico?

Placido Sgroi - No diálogo ecumênico a hospitalidade tem um papel ambíguo: “hospitalidade ecumênica” é um slogan eficaz para significar o desejo de acolher o outro cristão na sua identidade confessional e eclesial, sem assimilá-lo, mas ao mesmo tempo ela é ainda uma prática que encontra limites e obstáculos, basta pensar a hospitalidade eucarística; por outro lado, se a hospitalidade é para o estrangeiro, então na comunidade, na Igreja de Cristo, na qual fomos incorporados pelo batismo, não há espaço para a hospitalidade, pois cada cristão já está na sua própria casa. Claro que ainda resta a hospitalidade radical, aquela que Deus oferece na igreja, na qual todos somos hóspedes.

 

IHU On-Line - No que a experiência da hospitalidade pode transformar a narrativa de fé e a religiosidade daquele que acolhe e daquele que é acolhido pelo outro, aquele que professa religião distinta da minha?

Placido Sgroi - É importante fazer a ligação entre hospitalidade e narrativa, lembrando que inclusive na literatura antiga o hóspede é sempre um narrador, aquele que leva como presente a própria história. Dessa forma, por intermédio da hospitalidade dada e recebida, as narrativas entrecruzam-se, misturam-se, e geram-se novas histórias que acabam incluindo partes de outras narrativas. A hospitalidade nos ensina a perder, inclusive sob o ponto de vista religioso, a autorreferencialidade.

 

IHU On-Line - Ainda sobre o diálogo inter-religioso, quais os limites na relação ente hóspede e hospedeiro?

Placido Sgroi - Justamente porque a própria hospitalidade é precária, destinada a durar apenas um tempo, tenho dificuldade de ver seu limite na sua dimensão inter-religiosa. Aqui a hospitalidade parece como um provisório ter casa em uma tradição outra, que me contamina, mas não me absorve. As grandes testemunhas do diálogo religioso, como Henry Le Saux , ou Charles de Foucauld , fizeram essa experiência de precariedade, transformando a sua identidade numa identidade aberta, um apresentar-se frente ao outro, mas também, por intermédio do outro.

 

IHU On-Line - Quais reflexões emergem acerca da hospitalidade a partir da narrativa bíblica da Natividade, partindo da busca de José e Maria por abrigo para o nascimento do Cristo até, mais tarde, a fuga para o Egito?

Placido Sgroi - O próprio Deus se faz hospedar pela humanidade e experimenta esta hospitalidade da forma mais radical e precária possível. Na realidade é um hóspede recusado, na Natividade, e um emigrado que encontra salvação longe de seu país, com a fuga para o Egito. Um símbolo fácil até demais de relacionar com nossos tempos tão inquietos.

 

IHU On-Line - Em que medida a ideia de hospitalidade pode inspirar reflexões teológicas sobre gênero?

Placido Sgroi - Com muito esforço estamos elaborando uma antropologia do gênero, ainda mais uma teologia aberta ao “gênero”, que aqui na Europa, ao menos em alguns círculos, é vista como a causa de uma dissolução ainda maior dos horizontes morais da nossa sociedade. Do ponto de vista teológico, porém, continua emblemática a dupla narrativa do Gênesis que nos fala da reciprocidade da relação homem-mulher, sem a qual o próprio ser humano não poder ser representado. A reciprocidade, sob certo ponto de vista, é a forma mais exitosa de hospitalidade, pois exige que ambos sejam, ao mesmo tempo, hospedados e hospedeiros. Certamente esse é ainda e sempre um ideal, não a condição originária da humanidade, muito mais o sonho de Deus para os seres humanos. 

Aliás, Gênesis 3 nos ensina como a determinação de gênero, a divisão dos papéis, a submissão da mulher ao homem, pertencem concretamente à história da humanidade, mas não constituem nem um destino marcado, nem o projeto de Deus para o ser humano. Num certo sentido o paraíso terrestre é aquilo pelo qual vale a pena lutar, muito mais que uma condição a ser vista com saudosismo.

 

IHU On-Line - Quais os desafios para se praticar a hospitalidade hoje no mundo?

Placido Sgroi - Para nós europeus, simplesmente, praticá-la; isso significa reconhecer o débito que temos em relação aos povos do Sul do mundo que batem à nossa porta e para os quais, acolhendo-os, nada mais fazemos do que restituir aquilo que a nossa civilização euro-norte-ocidental lhes tomou, em tempos e formas diversas. Lastimavelmente, a crise de hospitalidade mostra o lado frágil da nossa civilização e corre o risco de ser um sinal de perigosa esterilidade antropológica e cultural, antes mesmo que ética.

 

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Placido Sgroi - Gostaria de apostar, esperando não incorrer em algum tipo de mitificação, em uma esperança na sociedade brasileira, que conheço apenas superficialmente. Evidentemente o Brasil é uma realidade repleta de contradições, mas também é um grande experimento de hospitalidade; algumas vezes, como para os africanos transladados à força para o outro lado do oceano, tratou-se de uma hospitalidade forçada, que coincidiu com uma pesada exploração. Mas o mundo brasileiro, como o vejo do Ocidente, continua a manifestar a capacidade de incluir e de se deixar contaminar por toda inclusão. Uma lição para nós europeus que temos tanta dificuldade apenas para nos incluir reciprocamente.■

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