Edição 498 | 28 Novembro 2016

A omissão do papel do negro na história do Rio Grande do Sul

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João Flores da Cunha

Para Jorge Euzébio Assumpção, “a sonegação histórica é um ato de discriminação”

De acordo com o professor da Unisinos Jorge Euzébio Assumpção, “existe no Rio Grande do Sul um posicionamento ideológico de sonegação da participação afrodescendente na formação do Estado, principalmente quando se refere ao período escravista”. A reflexão sobre o papel do negro na história do Rio Grande do Sul surge em torno do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20-11 no Brasil. O professor apresentou no IHU ideias do dia 17-11 a conferência Rompendo o silêncio: O negro na história e historiografia do Rio Grande do Sul.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ele citou estatísticas de censos populacionais do século XIX para sustentar o argumento de que o Rio Grande do Sul era uma província com grande número de trabalhadores escravizados. De acordo com ele, “as grandes charqueadas, que tinham como motor de seu funcionamento a mão de obra escrava, impulsionaram a economia gaúcha do século XIX”. Segundo Jorge Euzébio, os dados “desmontam a tese da formação diferenciada”, que dá conta de uma suposta diferenciação do Rio Grande do Sul em relação a outros estados brasileiros. Para o professor, “a frase ‘nós não somos como eles’ guarda falácia que não se sustenta historicamente”. 

Jorge Euzébio Assumpção possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, pós-graduação pela Faculdade Porto-Alegrense - Fapa e mestrado em História pela PUCRS. Atualmente é professor titular da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul e professor e pesquisador na Unisinos. É integrante do Neabi – Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da Unisinos.

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Como se deu a participação de negros na Guerra dos Farrapos ? O que foi a traição de Porongos e em qual contexto histórico esse fato ocorreu?

Jorge Euzébio Assumpção - Os africanos e seus descendentes estiveram presentes no movimento de 35, desde a tomada de Porto Alegre; ou seja, a partir de sua origem. Daí por diante, o número de afrodescendentes só aumentou, a ponto de eles se tornarem imprescindíveis no conflito e na manutenção do exército insurgente, como destacou Garibaldi : “A gente que me acompanhava era uma verdadeira chusma cosmopolita, composta de homens de todas as nações e de todas as cores. Os americanos, na maior parte, eram negros livres ou mulatos e, via de regra, os melhores e mais fiéis”. Assim o foi até a Traição de Porongos.

Sua importância pode ser comprovada também numericamente, pois, segundo o historiador Spencer Leitman , os negros chegaram a compor de 1/3 à metade do exército rebelde. Segundo o mesmo autor: “Desde que continuassem ligados à revolução que prometia liberdade quando da vitória final, os negros podiam significar bem mais do que indicam os números”, constituindo assim a espinha dorsal do movimento.

Os africanos e seus descendentes não lutavam pelos “ideais farroupilhas”, mas, sim, por sua liberdade. A maioria dos cativos incorporados às forças farroupilhas pertencia aos imperiais, que se engajaram aos republicanos levados pela promessa de serem livres ao término do conflito, sonho que jamais se realizou.

Estando os revoltosos sem chances mais de vencer, só lhes restava propor a paz, que foi aceita pelo Império de bom grado, mas não sem exigências — dentre as quais a manutenção da condição de cativos dos trabalhadores escravizados, transformados em soldados, como havia sido acordado. O governo central não aceitava a combinação feita entre farroupilhas e ex-cativos, que passou, então, a constituir empecilho para o término do conflito.

Entretanto, o embaraço foi logo resolvido, secretamente, entre as partes. Caxias , representando o Império, e Canabarro , os republicanos, acharam a saída para o impasse: os negros deveriam ser exterminados. Para a execução do plano, Canabarro fornece ao então Barão de Caxias o local onde acamparia com suas tropas, informação que é repassada ao coronel Francisco Pedro de Abreu (Moringue) , para que este possa atacar o acampamento; não sem antes, porém, os negros terem sido desarmados por ordem do general farroupilha, o que ocorreu na madrugada do dia 14/11/1844. Assim teve sua origem o episódio a que os historiadores denominaram “a traição de Porongos”.

A principal peça documental desse desprezível acontecimento histórico é a carta enviada pelo barão de Caxias a Moringue: “Ilmo. Sr. Regule suas marchas de maneira que no dia 14 às 2 horas da madrugada, possa atacar a força ao mando de Canabarro, que estará neste dia no cerro de Porongos [...]. Suas marchas devem ser o mais ocultas que possível seja, inclinando-se sempre sobre a sua direita, pois posso afiançar-lhe que Canabarro e Lucas ajustaram ter suas observações sobre o lado oposto. No conflito, poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro”.

A ordem não deixa dúvidas de quem deveria morrer: os negros. É bom lembrar que os farroupilhas possuíam três acampamentos distintos e separados etnicamente — brancos, índios e negros. Entre mortos e prisioneiros, os insurgentes perderam em torno de 447 combatentes, em esmagadora maioria negros. 

 

IHU On-Line - É possível afirmar que existe um “racismo historiográfico” na história do Rio Grande do Sul? Em que ele consiste?

Jorge Euzébio Assumpção - É possível, sim! Este racismo se dá ao modo do jeitinho brasileiro. Nos dias atuais, diferentemente do que acontecia anteriormente, não se procura adjetivar os negros, mas, sim, sonegar sua participação na formação histórica, social e econômica do Rio Grande do Sul. Podemos dar como exemplo a cidade de São Leopoldo. De uma maneira geral, sua história é contada a partir da chegada dos primeiros colonos, o que não corresponde à realidade. Antes, já existia uma história merecedora de registro. A casa do imigrante, antes de receber este nome, era chamada de “casa da feitoria”, onde estava presente atividade econômica que havia como base a mão de obra negra escravizada. Não se trata de retirar valor ao papel do imigrante, mas de dizer, a bem da verdade, que, antes de sua vinda, houve uma história que merece também ser narrada. Nem sempre o Vale do Sinos teve o atual perfil étnico. 

A sonegação histórica é um ato de discriminação. Temos que redescobrir e divulgar a feitoria e a história dos afrodescendentes que ali viveram e vivem nesta região. Os negros são sujeitos históricos desse município, em que pesem as tentativas de esconder tal fato.

 

IHU On-Line - Qual era a importância da mão de obra escravizada para a economia do Rio Grande do Sul no século XIX?

Jorge Euzébio Assumpção - Existe no Rio Grande do Sul um posicionamento ideológico de sonegação da participação afrodescendente na formação do Estado, principalmente quando se refere ao período escravista. Ao admitir que a antiga província era sustentada pela mão-de-obra servil, bate-se de frente com o mito do gauchismo que pretende uma formação diferenciada do restante do país, a tornar o gaúcho um ser distinto dos demais brasileiros, chegando-se até, em face de tais pretensas diferenças, a criarem-se movimentos de tendências nazifascistas, propondo a separação da Região Sul do restante da nação. A frase “nós não somos como eles” guarda falácia que não se sustenta historicamente.

Analisando os censos populacionais, verifica-se que o Rio Grande do Sul sempre esteve entre as províncias que se destacaram por possuir uma grande quantidade de trabalhadores escravizados, o que desmonta a tese da formação diferenciada. Como se não bastasse sermos iguais por possuirmos quantidade significativa de cativos, a economia do Brasil meridional também dependia dos cativos negros. No século XlX, o charque era o carro-chefe das exportações da província, estando sua fabricação centralizada no polo charqueador, em Pelotas, que tinha como principal característica a utilização de trabalhadores escravizados em seu modo de produção. Tal circunstância ocasionava uma concentração de africanos e seus descendentes nesta região. Diga-se de passagem que Pelotas chegou a possuir mais de 70% de sua população com origem afrodescendente.

As grandes charqueadas, que tinham como motor de seu funcionamento a mão de obra escrava, impulsionaram a economia gaúcha do século XIX, chegando a ser responsável por 85% das exportações gaúchas do período. Portanto, para se falar de economia e prosperidade da Região Sul, tem-se que falar sobre a escravidão dos afrodescendentes, e o papel que esta representou para a região.

 

IHU On-Line - Recentemente, uma iniciativa de transformar o Dia da Consciência Negra em feriado foi rejeitada em Porto Alegre. Qual seria a importância dessa data fazer parte do calendário oficial da cidade?

Jorge Euzébio Assumpção - O dia 20 de novembro deveria ser feriado nacional, a exemplo do que acontece nos Estados Unidos, onde é comemorado o dia de Martin Luther King Jr. , sendo celebrado na terceira segunda-feira do mês de janeiro. Em mais de 700 municípios brasileiros, o dia que celebra a morte de Zumbi  é marcada como feriado. Em Porto Alegre, o mesmo não acontece devido à resistência de setores conservadores da sociedade, que arguiram a inconstitucionalidade da comemoração — da mesma forma que impediram, no passado, a construção da pista de eventos próxima ao centro da cidade, quando a associação de moradores do bairro Menino Deus se postou contra, pretextando que o carnaval iria trazer intranquilidade aos ali residentes, de classe média. Estas atitudes mostram lamentável fundo de racismo gaúcho. 

Fosse marcada a data como feriado, ter-se-ia o reconhecimento do martírio pelo qual os africanos e seus descendentes passaram, vitimados pela escravidão, um dos crimes mais cruéis já cometidos na história da humanidade.  

 

IHU On-Line - O senhor acredita que a ideia de democracia racial se aplica ao Rio Grande do Sul?

Jorge Euzébio Assumpção - Jamais! No Brasil, não existe democracia racial; o que existe é um perverso racismo não assumido, que coloca os negros na base da pirâmide social, onde os jovens negros têm mais probabilidades de serem assassinados do que os brancos, onde os negros são mais de 53% da população e somente 8% chegam aos bancos universitários. Isto é democracia racial? ■

Leia mais

- O negro no Rio Grande do Sul: uma história de omissão e esquecimento. Reportagem com Jorge Euzébio Assumpção publicada nas Notícias do dia, de 19-11-2016, no sítio do IHU.

- O racismo e a sonegação da história afrodescendente no Rio Grande do Sul. Entrevista especial com Jorge Euzébio Assumpção publicada nas Notícias do dia, de 30-05-2014. , no sítio do IHU, disponível.

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