Edição 497 | 14 Novembro 2016

Desmilitarizar sem modelo seguro é instituir o caos

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Vitor Necchi

José Vicente da Silva Filho defende a fundação de uma polícia única, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação

José Vicente da Silva Filho é coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo e especialista em temas relacionados à segurança. Da combinação dessas experiências, parte sua convicção em garantir que a militarização não é um aspecto negativo das polícias brasileiras. “Profissões armadas – portanto, com o poder máximo de uso da força - precisam do controle severo que a sólida hierarquia e a disciplina rigorosa propiciam”, garante, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “A verdadeira questão não é a desmilitarização, mas a fundação de uma polícia única, sem adjetivos, nem militar, nem civil, uma polícia do estado A ou B, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação. Não seria militar, mas seria muito mais parecida com as atuais polícias militares do que com as polícias civis.”

Ao ser questionado acerca de abusos cometidos dentro das corporações por conta da excessiva hierarquia, o coronel é taxativo ao classificar essa avaliação de “equivocada e preconceituosa”. Ele se respalda em autores que estudaram organizações militares e o comportamento de seus integrantes, concluindo que “o entendimento do comportamento nessas instituições tem relações com a preparação para viver sob medo intenso e elevado grau de risco de morte”. Em situações de grande tensão, exemplifica José Vicente, “as pessoas tendem a desorganizar seu comportamento”, então “a disciplina austera e obediência imediata são vitais para manter a organização funcional”. O oficial reformado afirma que no militarismo há camaradagem, “até pelas condições de perigo”, situação rara no meio civil, “onde são clássicas as histórias de assédio moral que subsidiam muitas ações trabalhistas”.

José Vicente da Silva Filho é coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo. Tem graduação em Psicologia e mestrado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo - USP, graduação em Curso de Formação de Oficiais pela Academia de Polícia Militar do Estado de São Paulo. Foi secretário Nacional de Segurança Pública durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Consultor contratado do Banco Mundial para assuntos de organização e operação policial, tendo realizado missão junto ao governo da África do Sul para reestruturação da segurança da região metropolitana de Joahnnesburgo. Professor no Centro de Altos Estudos de Segurança da Academia da Polícia Militar de São Paulo. Tem aproximadamente 150 trabalhos publicados (papers, artigos).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - A Polícia Militar é subordinada diretamente ao Executivo de cada Estado, mas, indiretamente, é subordinada também ao Exército, de quem segue estrutura similar (hierarquia, patentes, fardamento etc.). O senhor considera acertado este modelo?

José Vicente da Silva Filho - Não existe essa subordinação ao Exército. É desinformação grosseira. Desde 1988, os governadores têm plena e total autoridade sobre seus policiais, não tendo que relatar ou pedir permissão ao Exército para qualquer iniciativa na área da segurança pública. A exceção óbvia fica para situações extremas em caso de guerra externa ou convulsão interna, como ocorre em qualquer país. Vamos lembrar que há pouco tempo a França decretou estado de emergência depois de ataques terroristas com fortes restrições militares. A similaridade da estrutura da polícia uniformizada não difere muito de outras polícias no mundo. Provavelmente a polícia mais respeitada das américas seja a polícia chilena, os Carabineros, que têm até postos de general, como também os Carabinieri italianos, a Guardia Civil espanhola (militar, apesar do nome), a Gendarmerie francesa, a Polícia Montada canadense. As polícias americanas utilizam os uniformes e muitas designações militares (sargentos, tenentes, capitães) e utilizam os mesmos símbolos da hierarquia militar. O modelo é muito similar aos padrões de polícias existentes no mundo, como as que conheci em alguns países (Argentina, França, Inglaterra, Holanda, Espanha, África do Sul e Estados Unidos, onde visitei as seis mais importantes organizações policiais locais e o FBI).

 

IHU On-Line - Com a redemocratização, lentamente as marcas do período ditatorial precisaram ser extirpadas das estruturas públicas do país. No que tange às polícias Militar e Civil, como foi este processo? Ainda há resquícios do arbítrio nessas duas corporações?

José Vicente da Silva Filho - Muitas das polícias civis e militares existiam há mais de um século antes que se instalasse o governo militar, ou seja, não foram criadas pelos militares. Se houvesse arbítrio nessas instituições, como sugere o clichê, estamos colocando em dúvida as instituições do Ministério Público e do Judiciário a quem competem as medidas corretivas que as leis exigem.

A imprensa também amadureceu e se fortaleceu em sua independência para denunciar arbítrios como desvios institucionais. Não se pode confundir eventuais excessos de força – preocupação constante em qualquer polícia no mundo – com padrões amplamente adotados numa organização que recebe diferentes níveis de vigilância externa: Ministério Público que tem obrigação constitucional de fiscalizar as polícias, corregedorias, ouvidorias, entidades sócias como OAB, Humans Right Watch etc. O que faltou no processo de redemocratização e na Constituição de 1988 foi desenhar uma nova polícia em formato único, como são as polícias do mundo, com um ramo uniformizado (85% do efetivo) e outro de investigação (15%). O modelo atual de duas organizações é bizarro, caro e, de maneira geral, ineficiente.

 

IHU On-Line - A hierarquia das Forças Armadas cria situações de abuso interno de poder. Os trotes talvez sejam a faceta mais conhecida desta distorção, em que o detentor de patente superior se sente à vontade até mesmo para humilhar seus subalternos. Essa prática se processa também nas polícias militares. Isso não incute no policial a ideia de que ele pode fazer o que quiser com alguém considerado inferior a ele?

José Vicente da Silva Filho - Essa avaliação é equivocada e preconceituosa. Autores – principalmente norte-americanos – que se debruçaram sobre as organizações militares e o comportamento de seus integrantes mostram que o entendimento do comportamento nessas instituições tem relações com a preparação para viver sob medo intenso e elevado grau de risco de morte. As pessoas tendem a desorganizar seu comportamento sob severa tensão (podemos lembrar de pais enfurecidos que batem em seus filhos que mal começaram a andar), e a disciplina austera e obediência imediata são vitais para manter a organização funcional em momentos de alta tensão. Não se preparam pessoas para situações extremas por Power Point, como não se ensina nadar por manuais. Nos tempos modernos, com policiais e militares mais esclarecidos, as relações entre superiores e subordinados estão cada vez mais respeitosas. Claro que existem polícias civis e militares que desprezam subordinados e não lhes dão o suporte e respeito que merecem. Há no militarismo uma camaradagem – até pelas condições de perigo – que raramente se observa no meio civil, onde são clássicas as histórias de assédio moral que subsidiam muitas ações trabalhistas. Fiz pesquisas sobre a pressão indevida de superiores no trabalho (harassment) no site Deepdyve.com e encontrei 1.337 estudos sobre assédio no trabalho, 146 sobre assédio no meio militar e 37 estudos no meio policial.

 

IHU On-Line - O senhor já declarou que a desmilitarização não é a resposta para os problemas da polícia no país. Por quê?

José Vicente da Silva Filho - Por um motivo simples: alguém ofereceu um modelo alternativo de como seria essa polícia não militar? Como seria essa polícia desmilitarizada? O capitão passaria a ser um inspetor? Ou não haveria hierarquia, mas tudo dirigido por comitês, como sugeriu o candidato Freixo , no Rio? Os regulamentos disciplinares seriam abolidos? E por que não se questiona a ineficiência, a burocracia e o elevado grau de corrupção das polícias civis? Por que questionar apenas uma delas?

Desmilitarizar sem um modelo seguro de transição é instituir o caos em organizações grandes e armadas. Profissões armadas – portanto, com o poder máximo de uso da força - precisam do controle severo que a sólida hierarquia e a disciplina rigorosa propiciam. O Exército americano vem desenvolvendo um novo padrão de liderança baseado no respeito e na competência do subordinado, mesmo sem abrir mão da disciplina e da hierarquia tradicional. A questão vai além; a verdadeira questão não é a desmilitarização, mas a fundação de uma polícia única, sem adjetivos, nem militar, nem civil, uma polícia do estado A ou B, com um grande ramo uniformizado e outro de investigação. Não seria militar, mas seria muito mais parecida com as atuais polícias militares do que com as polícias civis.

 

IHU On-Line - Na condição de coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, o senhor conhece intimamente a instituição. Quais são os principais problemas da corporação?

José Vicente da Silva Filho - Embora haja similaridade de estrutura e processos de trabalho, há muitas diferenças nas condições de trabalhos e nos problemas na variedade de unidades federativas. Em termos gerais, os principais problemas, em meu ponto de vista:

a. Os padrões de violência do país, que sujeitam os policiais - principalmente os PMs que atuam diretamente nas ruas - a alto risco e intenso estresse funcional.

b. A impunidade decorrente principalmente da legislação criminal (por exemplo, prisão por porte ilegal de arma tem liberdade imediata com pagamento de fiança; criminosos violentos alcançam a liberdade com o cumprimento de um sexto da pena, prescrição de homicídio etc.) é estímulo ao crime, associada a deficiências do aparato policial e lentidão da Justiça. Ou seja, sobra muito do controle para a polícia na rua.

c. Os policiais militares geralmente trabalham em regime extenuante (12 horas de trabalho), ganham pelo menos um terço de seus colegas policiais civis e acabam trabalhando nas horas de folga para complemento de salários, o que incrementa a fadiga.

d. Em muitos estados, o treinamento é insuficiente ou de má qualidade, criando dificuldades acentuadas para o desempenho profissional. Em São Paulo, o treinamento básico para o soldado é de dois anos, mas frequentemente a formação é de seis meses, tendo ocorrido até em três meses no Ceará. No treinamento de São Paulo, a programação é de 700 tiros, mas é comum o treino de 50 tiros em outros estados.

e. Por falta de visão de como deve ser a organização e gestão do aparato policial, muitos governos estaduais encurtam responsavelmente a formação policial ou investem em unidades especializadas (tipo Bope) ou em aparatos de marketing de segurança.

f. Há outro problema sério nas polícias Civil, Militar e Federal, a falta de preparo para gestão, seja operacional, seja financeira ou de recursos humanos. Quando a polícia reclama que falta papel higiênico, ela está confessando seu fracasso em gestão.

 

IHU On-Line - As críticas comumente feitas à Polícia Militar, e que acabam alimentando o debate acerca da desmilitarização, procedem ou resultam de desinformação e preconceito?

José Vicente da Silva Filho - As duas, com certeza. Falar em desmilitarização, como já mencionei, como se fosse um mal em si mesmo, é preconceito. Os excessos e distorções de comportamento disciplinar ocorrem, mas ocorreriam mesmo sem a configuração militar por características do próprio ambiente policial muito burocratizado, cheio de normas e problemas em penca. Uma pesquisa no site Deepdyve mostra 530 estudos sobre suicídio de policiais, abrangendo polícias de vários países, a maioria sem característica militar. Deixo a seu critério a questão da desinformação: quanto dos dados que mencionei aqui – e que são públicos – você conhecia ou procurou para embasar as questões?

 

IHU On-Line - O que permitiu o surgimento de esquadrões da morte dentro das polícias? 

José Vicente da Silva Filho - Isso ocorreu por estímulo ou tolerância das autoridades políticas de então. Quando o Ministério Público de São Paulo e depois o Departamento de Homicídios da Polícia Civil e o empoderamento das corregedorias resolveram dar um basta, o problema praticamente acabou. O que ainda ocorre é a ação esporádica de policiais que cometem barbaridades, como fenômenos isolados. Desconheço existência desses grupos criminosos na atualidade. 

 

IHU On-Line - A impunidade é suficiente para explicar execuções e outros crimes cometidas por policiais?

José Vicente da Silva Filho - Desconheço alguma execução ou crime esclarecido praticado por policial (portanto com autoria claramente definida) que tenha ficado impune. Impunidade é fator gerador de crime para qualquer tipo de criminoso. Perversões de personalidade também explicariam muitos crimes. Nas polícias, são fatores críticos para reduzir crimes: seleção rigorosa, treinamento de qualidade, eficiência de supervisão nos trabalhos policiais e disciplina severa. Em Nova York, um policial pode ser demitido se aceitar um lanche grátis.

 

IHU On-Line - Os policiais recebem treinamentos similares aos das Forças Armadas, que se preparam para combater o “invasor externo”. Esta lógica bélica ajuda a explicar por que os PMs costumam ser violentos em situações distintas quanto uma manifestação em vias públicas ou um enfrentamento com criminosos armados?

José Vicente da Silva Filho - Pode mostrar algum exemplo desse suposto treinamento similar aos das Forças Armadas? E para combater invasor externo? Desafio a mostrar um único nas unidades federativas. Nas quase 2 mil horas de treinamento do policial militar em São Paulo, não há uma só aula de preparo militar.

Quando se fala “costuma”, emite-se um julgamento com suposição de algo constante, que ocorre na maioria das vezes. Ou, pelo menos, um em cada quatro (25% dos casos)? Que tal analisar com fatos? Em 2015, a polícia paulista prendeu 189 mil criminosos em flagrante ou procurados com mandado de prisão; não eram meros suspeitos. Em quantas prisões ocorreram mortes em confronto? Se ocorresse mortes em 10%, teríamos 18 mil mortes; 1% seriam 1.890. Foram 607 casos, ou 0,32%. Em que porcentagem das manifestações as polícias se excederam? Em São Paulo, a Polícia Militar acompanhou 6.148 manifestações de 2013 a 2015. Em quantas ocorreram problema graves, já que a polícia “costuma ser violenta”? Se fosse violenta em 10% das manifestações, teríamos mais de 600 casos de abusos ou uso excessivo de força. Na capital paulista, ocorreram 768 manifestações de janeiro a setembro de 2016 e apenas em 68 (8,8%) ocorreram situações que exigiram uso da força. Isso confirma o “costumam ser violentos”? Em São Paulo, a Polícia Militar aborda 1 milhão de pessoas por mês; se ela costumasse ser violenta, não seria um banho de sangue?

 

IHU On-Line - Qual a sua análise sobre o trabalho da Justiça Militar?

José Vicente da Silva Filho - Absolutamente desnecessário. Entendo que é mais prático demitir um policial insubordinado do que condená-lo à prisão por crime militar.

 

IHU On-Line - Em julho de 2013, a Human Rights Watch enviou uma carta ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), apresentando sua preocupação com o número expressivo de suspeitos que eram mortos por policiais. A organização internacional cobrou investigação desses casos, que indicariam um “claro padrão de execução de vítimas”. Também destacou temor com a letalidade do trabalho das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota). Na sua análise, expedientes deste tipo surtem algum efeito ou os governos são blindados a críticas?

José Vicente da Silva Filho - Isso teria que ser perguntado aos governos. O que seria “número expressivo”? E a cobrança não deveria ser ao governador, mas aos órgãos que investigam e julgam todos os casos. Em todos os casos de morte por policiais, são instaurados inquéritos, e todos os inquéritos são encaminhados ao Ministério Público, e esse deve relatar ao juiz. Posso garantir que, na maioria dos estados, há absoluta intolerância com os crimes praticados por policiais.

 

IHU On-Line - O que pode ser feito para reverter o histórico de violência das corporações, mesmo que mantida a natureza militar?

José Vicente da Silva Filho - Primeiro, mitigar as condições que geram a elevadíssima violência no país, que vitimam mortalmente mais de 100 mil brasileiros por ano (incluindo a violência no trânsito) e tornam o policial brasileiro o mais agredido e morto no mundo. A polícia que temos é reflexo da sociedade que somos, de suas mazelas, de suas leis e justiça criminal defasadas e ineficientes para controle do crime, de suas autoridades que gerenciam mal os problemas sociais e de segurança, de suas corporações, das incompetências políticas que nos governam. Segundo, oferecer condições decentes de trabalho ao policial e treinamento de alta qualidade. ■

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