Edição 496 | 31 Outubro 2016

A construção de cemitérios internos

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João Vitor Santos

Mário Corso analisa a importância do luto e dos ritos de passagem e como a vida moderna, com a exigência da brevidade, pode interferir nesse processo de elaboração da morte

O psicanalista Mário Corso acredita que a morte é uma experiência pessoal. Entender e refletir sobre o fim da vida requer, segundo ele, um tempo muito particular. Para assimilar a morte, na perda de alguém, é preciso que, de certa forma, se vivencie essa dor. “Não existe uma representação inconsciente da morte, insistia Freud. Por isso vamos ter que fazer uma inscrição particular para cada um que perdemos. Existe um cemitério dentro de cada um de nós”, destaca. “A ideia é sempre a mesma: fazer os rituais todos, falar sobre a morte e como sofremos”, completa, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

O problema é que nem sempre é dado esse tempo para elaboração da morte. “Atualmente, a morte é vedada aos olhos públicos, ela é confinada aos hospitais, morre-se sozinho, oculto, e os rituais de partida, como velório, enterro, trajar luto, estão cada vez mais economizados. Hoje nos despedimos mais rápido, como se a morte fosse contagiosa”, avalia. Para o psicanalista, a competitividade e a individualidade dos tempos de hoje são ingredientes para essa concepção. “O luto é dificultado pela ideologia individualista que nos desconecta das nossas raízes”, aponta. Corso entende que a modernidade, muitas vezes, não autoriza essa parada, esse tempo do luto e da construção do cemitério interno. Por isso, é fundamental sempre se ter a clareza de que “somos lentos para começar a amar e para deixar de amar”.

Mário Corso é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA. Formado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, trabalha com adolescentes e adultos. Entre suas publicações de livros estão Monstruário – Inventário de Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiros (Porto Alegre: Tomo, 2002), Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis (Porto Alegre: Artmed, 2009) e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia (Porto Alegre: Artmed, 2010). Em 2014 publicou seu primeiro livro infantil, A história mais triste do mundo (Porto Alegre: Editora Bolacha Maria, 2014).

 

Confira a entrevista. 


IHU On-Line - De que forma a psicanálise compreende a necessidade de elaboração  da morte? 

Mário Corso - A questão é elaborar, ter alguma consciência da nossa finitude, pois essa é a nossa condição básica. Sem isso estaremos a mercê de quaisquer promessas que negam essa premissa. As religiões basicamente vivem de negar a animalidade do homem e, como consequência, nossa finitude. Somos seres que nos sabemos mortais, ao mesmo tempo negamos o óbvio inventando transcendências. Nosso narcisismo  não suporta que tenhamos uma validade curta. 

 

IHU On-Line - Por que ainda é tão complicado abordar o tema do fim da vida?

Mário Corso - A palavra “ainda” coloca uma ideia de que um dia será mais fácil. Acredito que não, inclusive penso que o movimento caminha numa direção oposta. Atualmente, a morte é vedada aos olhos públicos, ela é confinada aos hospitais, morre-se sozinho, oculto, e os rituais de partida, como velório, enterro, trajar luto, estão cada vez mais economizados. Hoje nos despedimos mais rápido, como se a morte fosse contagiosa.

 

IHU On-Line - Como observa a forma como as pessoas constituem a ideia da morte nos dias de hoje, atravessadas pelas lógicas das tecnologias, redes sociais e velocidade da informação?

Mário Corso - O homem está demasiado conectado a máquinas velozes e temo que ele fique um tanto identificado a elas e exija de si aquilo que é impossível, pois o nosso tempo é muito distinto do tempo da máquina. Somos lentos para elaborar nossas perdas. Somos lentos para aprender e discernir. Somos lentos para começar a amar e para deixar de amar. O luto pede um tempo que a modernidade não autoriza. 

 

IHU On-Line - Hoje, parece haver um imperativo que torna obrigatório o anúncio da morte nas redes sociais. Mas, ao tempo, a solidão das grandes cidades ainda permite que saibamos de mortes de vizinhos apenas meses depois. Como compreender essas duas realidades? 

Mário Corso - Sou um usuário periférico das redes sociais. Uso mais para entender o fenômeno do que para de fato habitá-las. Acredito que elas fazem uma bolha mágica onde todos concordam entre si, um espaço de desinformação e autoengano. Criou-se um jornalismo sem jornalistas e isso é um perigo. Veja, não sou um crítico do uso dela, acredito que é a reencenação da aldeia perdida, da fome de comunidade, da fuga da solidão. Que façam bom proveito, mas para informar-se ela é um desastre. E de fato, se estamos demasiado dentro da rede, podemos nos comover com uma morte longínqua sem dar-se conta de que o vizinho ao lado se foi. 

 

IHU On-Line - Por que, essencialmente quando se perde alguém, é importante compreender a experiência morte?

Mário Corso - Especialmente para parar de esperar pelo morto. Não existe uma representação inconsciente da morte, insistia Freud . Por isso vamos ter que fazer uma inscrição particular para cada um que perdemos. Existe um cemitério dentro de cada um de nós. Arrastamos nossos mortos para sempre, e quanto mais estivermos em paz com cada um que se foi, mais fácil será carregar esse fardo, mas ele está ali, e um dia cobra o preço do seu peso. Atenção, esse peso pode ser positivo, também saímos mais sábios. Mas a sabedoria, mesmo que nos faça ver o mundo mais leve, paradoxalmente, tem seu peso. 

Tenho visto que muitas depressões são lutos mal curados. Mas um detalhe: às vezes o luto não é necessariamente por um morto, mas por um emprego, uma promessa, um sonho, um amor, mas sempre uma perda que não elaboramos, que não demos importância quando ela se foi e a perda vai ser sentida depois, em bruto, sem uma ligação com o que foi perdido. O trabalho terapêutico é restabelecer a ponte entre o sofrimento e o que foi perdido.

 

IHU On-Line - De que maneira a morte pode ser elaborada em diferentes fases da vida, especialmente na infância e adolescência?

Mário Corso - Nunca é fácil, seja em qual fase da vida for. Pois, se na infância estamos muito despreparados e desamparados para enfrentar, quando a idade avança, embora com mais suporte interior, mais nos aproximamos de sermos os próximos a partir. A ideia é sempre a mesma: fazer os rituais todos, falar sobre a morte e como sofremos.

Sou a favor de levar crianças, mesmo que pequenas, aos enterros de seus queridos, deixá-las de fora é dificultar seu luto. O mesmo vale para os animais de estimação. Acredito que, como eles duram menos, uma de suas funções é ajudar os pequenos a pensar na finitude e não ficar dizendo que eles foram para uma “fazenda”. Quanto mais se fala sobre a perda, menos ela pesa. No intuito de proteger as crianças, as deixamos despreparadas e solitárias para pensar na nossa condição humana e nas perdas que inevitavelmente ela terá. É uma falsa proteção e é egoísta, na verdade protegemos a nós mesmos de falar sobre um tema difícil.

 

IHU On-Line - Qual é o papel do luto e como é vivido hoje?

Mário Corso - O luto é dificultado pela ideologia individualista que nos desconecta das nossas raízes. Nos vemos como seres autônomos e não como fruto de nossos pais, avós e do nosso meio. A experiência de luto nos reconecta com nossa história, com o peso de cada um dos indivíduos que nos emprestou elementos com os quais nos identificamos. Somos a somatória daquilo tudo que uma vez amamos, uma coleção particular, única, mas ligado a uma rede de pessoas que nos ajudou a ser alguém. Se negamos a nossa pertença a essa rede, é normal que o luto vá ser mais complicado, na verdade não sentimos como luto e sim como uma injustificada depressão, que como é desligada de tudo, parece genética, orgânica, uma falha cerebral.

 

IHU On-Line - Como compreender o fato de que para algumas pessoas a morte é algo abominável e para outras exerce um grande fascínio? Quais os riscos que há nas duas perspectivas?

Mário Corso - A morte é nosso limite, não há como ela não assustar e não nos fascinar. Acho que enquanto uns acreditam que evitá-la é a melhor estratégia para não temê-la, outros acreditam que desafiá-la é a maneira de dizer que não tem medo. Mas existe algo a mais, concordo com Simone de Beauvoir  quando diz que a mulher, por dar a vida, está ligada a ela, enquanto o homem extrai sua identidade do papel de quem tira a vida, como guerreiro, soldado. O arquétipo masculino é de quem se prova contra a morte, ou é seu representante ou instrumento. Logo, quando temos masculinidades instáveis, para assumir seu valor, e mostrar que ele é homem, ele pode, mais facilmente que a mulher, matar. Assim, a morte como as armas, podem ser um fetiche para masculinidades frágeis.

 

IHU On-Line - Em que medida a morte poder ser interpretada como um sentido para a vida?

Mário Corso - Sou da geração que viu a aids dizimar muita gente. Eu mesmo perdi muitos amigos próximos. Quando chegava o diagnóstico, eu percebia duas atitudes distintas, uns se desorganizavam de vez e morriam rapidamente. Outros, sabendo que seu tempo seria curto, se organizavam para viver alguma coisa.

Paradoxalmente, um sinal da proximidade da morte organizava vidas que andavam sem sentido, sobreviver tornou-se um sentido e muitos foram bem longe e outros ainda estão vivos. Creio que, de certa forma, na vida de cada um, essa experiência que se dá pela doença é quase caricata, da forma como se mostra. Passamos a ser mais responsáveis quando sabemos que nosso tempo é limitado.

 

IHU On-Line - Como compreender o suicídio? Que questões estão em jogo e o que leva a esse extremo?

Mário Corso - Não existe o suicida, é sempre caso a caso. Difícil responder uma pergunta que pede uma generalização. Mas, em muitos casos, eles não querem morrer; na fantasia, só querem matar a parte dentro de si que os impede de viver. Recentemente, conheci um jovem que queria matar sua parte homossexual. Outro, o pai que o abandonou na infância e que nunca se refez das esperas das visitas que nunca aconteceram. Enfim, não há uma resposta única para esse ato desesperado de fazer uma marca no mundo, nem que seja pelo avesso, sendo uma falta. 


IHU On-Line - O suicídio ainda é tratado como tabu. Como superar essa perspectiva e encarar a questão como saúde pública?

Mário Corso - É muito delicado, porque, se ao mesmo tempo precisamos tratar do assunto (os índices no nosso estado são elevadíssimos), é necessário muito cuidado para não romantizar o ato, pois isso encoraja novos suicídios. Apenas uma regra é comum no suicídio, eles são contagiosos. Um suicídio público, espetacular, anima outros, por isso o silêncio correto da imprensa. Mas precisamos criar maneiras alternativas de falar sobre o suicídio. Não é uma tarefa fácil.■

 

Leia mais

- O flerte dos adolescentes e jovens com a morte. Entrevista com Mário Corso, publicada na revista IHU On-Line, número 312, de 26-10-2009.

- 'O grande medo dos jovens é não encontrar um lugar no mundo adulto'. Entrevista com Mário Corso, publicada na revista IHU On-Line, número 273, de 15-09-2008.

- A grande experiência da revolução sexual não se deu. Entrevista com Mário Corso, publicada na revista IHU On-Line, número 173, de 27-03-2006.

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