Edição 496 | 31 Outubro 2016

O espetáculo que banaliza

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João Vitor Santos

Sandra Stoll aponta que a rotineira espetacularização da morte na imprensa tem provocado uma banalização que impede reflexões e entendimentos mais amplos, como os propostos pelo espiritismo

Quando algo é comum, tende a se tornar banal. A morte, quando exposta de forma incansável por veículos de comunicação, corre esse risco. “Sua espetacularização, rotinizada nos meios de comunicação, tem sido reiteradamente apontada como responsável por sua banalização. Mas há quem sustente haver na superexposição a cenas de violência e morte a intenção de provocar reações”, pondera a antropóloga Sandra Stoll. A pesquisadora lembra que esse ser espectador da tragédia acaba elevando essas mortes, quando não são somente espetacularizadas, a uma espécie de função pública. “Tem se registrado também, em diferentes partes do mundo, produções em que o anonimato dos mortos visa chamar atenção à exorbitância das vítimas de violência, política e/ou ‘urbana’”, pontua, ao lembrar de intervenções como, por exemplo, cruzes espalhadas por cidades para lembrar vítimas de violência.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, a professora mescla essas abordagens sobre a morte na sociedade contemporânea com perspectivas que tratam das disputas, tensões que a exposição da morte nos dias de hoje pode gerar. “O ponto central de disputa é o sentido que se atribui às noções de vida e pessoa. Debate cuja riqueza e complexidade de respostas encontra-se em continuado processo de construção”. É, por exemplo, o caso da relação com os mortos. “O tema da morte e principalmente da vida pós-morte, assim como as práticas de comunicação ritual entre vivos e mortos, são as principais motivações de atração do Espiritismo. Trata-se, portanto, de um sistema filosófico e religioso que propicia não apenas a expressão ritual do luto, mas cria condições para um efetivo compartilhamento emocional”, destaca.

Sandra Stoll possui graduação em História pela Universidade de São Paulo – USP, mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutorado em Antropologia Social pela USP. É professora aposentada do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná e membro do Núcleo de Antropologia Urbana da USP. Entre suas publicações, destacamos Espiritismo à brasileira (São Paulo: Edusp/Orion, 2003) e O Espiritismo na encruzilhada: mediunidade com fins lucrativos? (in Pereira, João B. (org). Religiosidade no Brasil. P.257-269).


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Da perspectiva antropológica, como a morte vem sendo estudada nos dias de hoje? 

Sandra Stoll - A morte é um tema que vem se deslocando para o centro da reflexão sobre a sociedade contemporânea. Sua espetacularização, rotinizada nos meios de comunicação, tem sido reiteradamente apontada como responsável por sua banalização. Mas há quem sustente haver na superexposição a cenas de violência e morte a intenção de provocar reações. Sontag  (2003), por exemplo, sustenta que “há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna de ser ver — à distância, por meio de fotografias — a dor de outras pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada consciência (...) de que coisas terríveis acontecem”. Ser “espectador de calamidades”, conclui a autora, é uma experiência tipicamente moderna (p.16).

Em contraposição a essa visão da morte como experiência do outro, estudos contemporâneos em antropologia vêm buscando novos protocolos para sua abordagem como experiência próxima, seja pelo deslocamento do foco de análise para a sociedade do próprio pesquisador, seja pelo deslocamento da ênfase nos ritos funerários em diferentes culturas — tema clássico na Antropologia — para os processos de ritualização e experiência do luto. Deslocamento teórico e metodológico que, segundo Rosaldo  (1989), permite trazer para o centro da discussão a “força emocional da experiência de convívio com a morte” (p.2). A intenção, diz o autor, é problematizar a relação entre ritual e vida cotidiana, bem como considerar a diversidade de experiências diante da morte segundo a “posição dos sujeitos em determinadas redes de relações sociais” (p.2). Posição partilhada, dentre outros, por Veena Das  (1986) ao afirmar que por meio desse enfoque é possível apreender como “representações coletivas” “ganham sentido e são construídas no âmbito da experiência cotidiana dos atores sociais.

 

Ritos de memorialização e luto em espaços públicos

Essa perspectiva de análise vem encontrando ressonância em estudos recentes sobre ritos de memorialização dos mortos em espaços públicos. Estes frequentemente se associam a eventos de caráter traumático, envolvendo morte em massa, sejam eles decorrentes de acidentes, atos de terrorismo, massacres decorrentes de preconceito racial, étnico e/ou de gênero, ou associados à violência “urbana” e/ou de Estado.

A publicização do luto em espaços públicos configura uma novidade contemporânea. Observa Doss  (2008) a respeito: “a explosão da produção memorial coletiva em espaços públicos” inaugura uma nova forma de ritualização da memória dos mortos. Em contraste à narrativa memorialista “oficial” — normativa e monolítica —, a espontaneidade marca esse tipo de produção coletiva em espaços públicos. Esses eventos dão publicidade a experiências pessoais, tanto do morto como dos familiares em luto. Assim como observado pela autora na Europa e Estados Unidos, tais práticas vêm se difundindo também em países da América Latina, como Brasil e Argentina. Nesta última os estudos sobre o tema têm se concentrado na discussão sobre a morte e experiência de luto entre familiares dos “desaparecidos” (jovens que foram sequestrados e assassinados pela Ditadura Militar. Sobre o tema ver, dentre outros: Catela, 2004; Panizo).

Já no Brasil os chamados “murais da dor” (Birman e Leite, 2004) ritualizam em eventos públicos, organizados por ONGs, o drama da “violência urbana”. Ainda que diversas as suas motivações, esses eventos reúnem familiares das vítimas, que lhes prestam homenagens em espaços públicos. Prática de produção coletiva em que se alinhava, de forma espontânea, fragmentos de memória dos mortos: fotos, desenhos e escritos, alinhados ao acaso. “Diversos, subjetivos, frequentemente expressam versões conflitantes de múltiplos públicos” (Doss, 2008).  Catela e Novaes (2004), por sua vez, afirmam que tais fragmentos ao serem deslocados “da intimidade familiar (...) ao invés de esconder, silenciar a morte como convém ao mundo moderno, dão nome e rosto à abstração da violência” (p.124). 

 

Anonimato e vítimas da violência

Tem se registrado também, em diferentes partes do mundo, produções em que o anonimato dos mortos visa chamar atenção à exorbitância das vítimas de violência, política e/ou “urbana”: eles podem ser contados, por exemplo, por meio de rosas ou cruzes instaladas na areia de uma praia ou serem lembrados numa revoada de balões que incendeiam o céu ou lembrados a partir de pares de sapatos que perderam a intimidade de seus donos, dispersamente dispostos numa calçada no centro da cidade. Num exemplo mais recente, salva-vidas de refugiados foram dispostos num gramado em Londres para lembrar aqueles que não conseguiram cruzar o oceano, tornando-se náufragos de um sonho: a busca por viver em paz.  


IHU On-Line - Como observa a forma com que a sociedade ocidental contemporânea constitui a ideia da morte?

Sandra Stoll - Convivem e disputam distintas concepções a respeito da morte na sociedade contemporânea. O ponto central de disputa é o sentido que se atribui às noções de vida e pessoa. Debate cuja riqueza e complexidade de respostas encontra-se em continuado processo de construção. Basta lembrar que o tema voltou recentemente ao debate no espaço público, envolvendo especialmente os campos médico e jurídico mobilizados por temas polêmicos que envolvem questões de ordem moral, como a produção de embriões em laboratório, o emprego de células-tronco, o debate sobre a eutanásia e o aborto, dentre outros.  

No campo propriamente religioso, o debate envolvendo as noções de vida e pessoa se desenvolvem em torno da noção de imortalidade. As diferenças decorrem, sobretudo, de como se concebem as condições de sobrevivência do que se denomina “consciência” (também denominada “alma” ou “espírito”). Pautar as diferenças das concepções correntes e suas consequências na vida cotidiana dos adeptos é o que cabe ao estudo antropológico. Da perspectiva sociológica, porém, o que se afirma é que a noção de imortalidade — qualquer que seja sua formulação — aponta para a “recusa da morte” como atitude característica da sociedade ocidental contemporânea.

Afirmação essa que, para ser melhor qualificada, implica perguntar-se como e de que forma as diferentes concepções abrigadas por essa atitude convivem e se disseminam socialmente e como são vivenciadas por diferentes grupos ou segmentos sociais em contextos históricos específicos. Trata-se de balizadores importantes para se apreender diferenças existentes quanto às formas de se relacionar com a morte. Quanto aos sentidos que a esta se atribui, afirma Panizo  (2012), há que se qualificar o contexto histórico e circunstâncias específicas desse acontecimento. Isso porque diferentes categorias de mortos, e seus próximos, propõem diferentes formas de aproximação do morto, assim como modos distintos de homenagem e rememoração” (p.1). 


IHU On-Line - A morte não é o fim da vida? Por quê?

Sandra Stoll - Existem várias concepções correntes na sociedade contemporânea sobre a noção de vida e pessoa, como já mencionado. O debate se dá em torno da noção de consciência. Acreditam os materialistas ou agnósticos que esta se dissolve com a morte do corpo físico. Aqueles que acreditam na imortalidade, ao contrário, sustentam que a consciência sobrevive à morte do corpo físico. O objeto de dissenso é como se concebe pessoa: os dualistas entendem que corpo (ou “matéria”) e consciência (também denominada “alma” ou espírito”) são princípios irredutíveis embora arraigados à pessoa individual. A matéria é efêmera, ao contrário da consciência, tida como perene, ou melhor, eterna, uma vez que se acredita que esta participa (no sentido de ser “parte”) de uma instância transcendente (“divina” conforme denominação corrente em vários sistemas religiosos).

Também se pode conceber a pessoa como tríade: matéria, “corpo sutil” (“alma”) e consciência (“espírito). Nesse caso os dois primeiros corpos (físico e sutil) são considerados formas passageiras por meio das quais se manifesta a dimensão transcendente do indivíduo. Há ainda sistemas religiosos que sustentam serem múltiplos os segmentos da consciência, cabendo a estes destinos diversos no pós-morte. Vale lembrar que o tema implica por vezes uma outra noção, a ideia da reencarnação. Sustentada por certos sistemas religiosos disseminados na sociedade ocidental contemporânea, tal concepção é fundamental para se compreender algumas das concepções de vida e pessoa assinaladas, tema que remete à discussão de uma noção particular de temporalidade, e, portanto, também da relação tempo-espaço. 


IHU On-Line - Como compreender a relação entre o mundo dos vivos e dos mortos?

Sandra Stoll - São diversas as formas de se conceber a relação entre vivos e mortos. Numa passagem de Tristes Trópicos , Lévi-Strauss  sintetiza o tema da seguinte forma: há sociedades, diz ele, que deixam os mortos em paz, abstendo-se de perturbá-los. “Se voltam a vê-los, fá-lo-ão com intervalos e em ocasiões previstas. E sua visita será benéfica, uma vez que os mortos garantem, pela sua proteção, o regresso regular das estações, a fecundidade dos campos e das mulheres”. Outras sociedades, ao contrário, “recusam-lhes o descanso”, mobilizando-os de várias formas (1986:225-226).

Inserida no segundo caso, a sociedade brasileira, segundo Da Matta  (primeiro antropólogo brasileiro a chamar atenção para o tema), é um caso típico do que denomina “sociedades relacionais”. Afirma o autor que neste caso “pode até desaparecer a relação pessoal entre um dado morto e seus sobreviventes e relações, mas não desaparece a relação complementar e compensatória entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos”. E acrescenta: “isso nos permite compreender o uso do morto em nossa sociedade... é preciso não perder de vista que o “morto” é alguém que deixou o cenário (...) mas que ainda mantém um elo potente com os que ficaram...” (Da Matta, 1987: 169, 170 e 172 respectivamente).  

As condições de presença e inscrição dos mortos na vida cotidiana implicam, portanto, entender como em diferentes contextos sociais e históricos estas relações são construídas e vivenciadas na vida cotidiana. 


IHU On-Line - O espiritismo é buscado por muitas pessoas, até mesmo que professam outras religiões, em momentos de luto e perda, quando se é confrontado com a morte. Como compreender esses movimentos?

Sandra Stoll - O tema da morte e principalmente da vida pós-morte, assim como as práticas de comunicação ritual entre vivos e mortos, são as principais motivações de atração do Espiritismo entre pessoas de diversos credos — em especial católicos, mas também evangélicos ainda que em menor número. Trata-se, portanto, de um sistema filosófico e religioso que propicia não apenas a expressão ritual do luto, mas cria condições para um efetivo compartilhamento emocional entre pessoas que estão vivendo uma mesma experiência de sofrimento.

Além disso, a doutrina propicia um “novo” entendimento da noção de vida e pessoa, na medida em que se trata de um sistema doutrinário que sustenta a tese da reencarnação. São duas, portanto, as possibilidades de “reencontro” entre vivos e mortos sustentadas pelo Espiritismo: de um lado tem-se as práticas rituais de comunicação entre vivos e mortos, por meio das quais se promove a intercessão entre “dois planos de existência”: o “plano material” (dos vivos) e o “plano espiritual” (dos mortos);  a outra possibilidade é sustentada pela tese da reencarnação: por outro, a tese da reencarnação cria a expectativa de um reencontro futuro, seja neste ou “no outro” plano de existência. Daí o seu papel fundamental de “consolação” especialmente entre familiares em processo de luto. 

 

IHU On-Line - Quais as particularidades do espiritismo no Brasil?

Sandra Stoll - Tratei justamente desse tema em minha tese de doutorado com o intuito de demonstrar que o Espiritismo assume características diversas conforme o contexto histórico e social. Essa hipótese me levou a tomar três personagens, tidos como paradigmáticos (ou seja, que sintetizam certas características históricas e culturais de uma dada sociedade) como exemplares de formas distintas de expressão cultural do Espiritismo. Diacronicamente começo com Kardec  — formulador da doutrina, o qual confere a esta ênfase científica, seja por utilizar protocolos de prática científica correntes à época, seja por interpretar seus dados à luz das principais correntes científicas em debate na época.

No traslado para o Brasil, o Espiritismo adquire novas feições, as quais caracterizo a partir das práticas e ideias difundidas por dois médiuns: Francisco Cândido Xavier  (popularmente conhecido como Chico Xavier) e Luiz Antonio Gasparetto . O primeiro foi responsável pelo diálogo intenso estabelecido entre a “nova doutrina” e o catolicismo, dando origem ao que denomino “espiritismo à brasileira”. O segundo, responsável pela tentativa de rompimento com essa formatação doutrinária, dando origem a uma corrente (dentre outras) que buscava a renovação da doutrina por meio do contato com correntes diversas da chamada “Nova Era”. Não apenas duas concepções, mas duas éticas emergem desse confronto: a “ética da santidade”, propagada por Chico Xavier, e a “ética da prosperidade”, defendida por Gasparetto, tema que permite um diálogo inusitado entre o espiritismo e certas correntes do campo evangélico.■

 

Referências Bibliográficas

Catela, L e Novaes, R. 2004 “Rituais para a dor. Política, religião e violência no Rio de Janeiro” in: Birman, P. e Leite, M. (eds) – Um mural para a dor. Movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora UFRGS.

Da Matta, R. 1987.  A casa e a rua. Rio de Janeiro: Editora Guanabara.

Das, Veena 1986. “The work of mourning: death in a Punjab Family” in: White, M. e Pollak, S (eds) – The cultural transition. Loun, Routhledge.

Doss, E. 2008 The Emotional Life of Contemporary Public Memorials. Amsterdam. Amsterdam University Press.

Lévi-Strauss 1975. Tristes Trópicos. Lisboa: Presença.

Panizo, L 2010. Etnografias de la muerte. Clacso. Ediciones Circus.

 ---------  2012 “La muerte enmarcada; diferentes formas de dar sentido a la muerte em la guerra de  Malvinas” In: academia.edu.documents

http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/32414488/Programa_Malvinas_en_la_Universidad_Concurso_de_ensayos_2012.pdf?AW Academia.edu

Rosaldo, R. 1993 “Grief and headhunte’rs rage”. Culture and truth. Massachussetts: Beacon Press

Sontag, S 2003. Diante da dor dos outros. São Paulo: Cia das Letras.

 

Leia Mais

- Encontro entre vivos e mortos no contexto espírita. Entrevista com Sandra Stoll, publicada na revista IHU On-Line, número 121, de 01-11-2004.

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