Edição 494 | 03 Outubro 2016

Judicialização da política vigora no Brasil desde o Império

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João Vitor Santos | Edição Vitor Necchi

Para Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, juristas garantem sua autonomia apenas se mantiverem algum grau de vinculação com o poder do Estado

Recentes acontecimentos podem dar a impressão de que se instaurou no Brasil uma judicialização da política, mas o advogado e professor Frederico Normanha Ribeiro de Almeida lembra que este fenômeno não é novo, sendo verificado no país pelo menos desde o Império. “Os juristas só garantem sua autonomia se mantiverem algum grau de vinculação com o poder do Estado, mesmo quando abdicam de uma atuação política direta”, explica em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

A presença destacada dos bacharéis em Direito na estruturação das elites políticas e administrativas foi marcante já no período imperial e na Primeira República. Os juristas perderam protagonismo após a revolução de 1930, mas isso não significou que eles se afastaram da política. “Afinal, os juristas continuaram cercando os palácios e centros de poder político, não mais na figura de governantes diretos — embora tenhamos resquícios desse velho bacharelismo —, mas como especialistas em uma burocracia e em uma organização jurídica do poder cada vez mais complexa”, destaca Almeida.

O professor afirma que “descobrir o protagonismo dos juristas somente após a redemocratização é ignorar a história e as relações sutis e mais profundas entre o direito e o poder, que acontecem sob a superfície dos desenhos institucionais formais, constitucionais”. É importante observar, no entanto, que os juristas alcançaram um novo momento de protagonismo após a redemocratização.

Ao refletir sobre a atuação do Ministério Público, Almeida observa que esse órgão que “faz parte da engrenagem punitivista responsável por um absurdo e seletivo encarceramento de jovens negros e pobres é o mesmo que promove ações coletivas em defesa do meio ambiente, do consumidor, da educação e saúde públicas e da moralização da política”.

Conforme Almeida, o termo “judicialização da política” teve origem na ciência política dos Estados Unidos, que buscava “compreender o protagonismo dos tribunais na tomada de decisões políticas de importância, num quadro institucional baseado numa separação um tanto esquemática e normativa dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo”.

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida é bacharel em Direito, cientista político e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde também é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Sua tese é intitulada A nobreza togada: as elites jurídicas e política da justiça no Brasil.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre os conceitos de justiça, política e sociedade no Brasil?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Melhor do que falarmos em "conceitos" é falarmos nas práticas concretas e nas interpenetrações das dimensões da vida social e política que estão sintetizadas nesses conceitos. E considero que a experiência brasileira é a de uma justiça que pouco conseguiu se distanciar das influências políticas, de um lado, e pouco conseguiu avançar na sua função de administrar pacificamente e isonomicamente a conflituosidade social. 

 

No primeiro aspecto, embora a instituição dos concursos públicos e as regras constitucionais de autonomia das carreiras e instituições de justiça tenham, em grande medida, distanciado a Justiça do mundo da política, isso não é necessariamente verdade no nível das cúpulas judiciais, e mesmo no nível das bases dessas carreiras, a profissionalização em muitos aspectos se deu no sentido de formação de um corpo burocrático com uma ideologia corporativa bastante marcada, elitista e poderosa politicamente. No segundo aspecto, o insulamento dessas burocracias judiciais se deu sem que essa autonomização se convertesse em maior eficiência na prestação jurisdicional e no aumento do acesso à Justiça, apesar do movimento de algumas carreiras em direção à sociedade e de mudança de suas práticas profissionais.


IHU On-Line – Como se dá a relação de juristas com a política no Brasil?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Como diversos Estados nacionais, o Brasil teve uma forte participação dos juristas na constituição da sua organização política e burocrática. Isso se deve ao fato de que o processo de constituição de uma autoridade soberana historicamente está atrelada ao processo de burocratização da administração e de instituição de uma ordem jurídica monopolista de validade nacional, o que faz com que a concentração do poder político esteja intimamente relacionada com a constituição de um campo de agentes e instituições especializadas na formulação e aplicação do direito; de outro lado, e contraditoriamente, os juristas só garantem sua autonomia se mantiverem algum grau de vinculação com o poder do Estado, mesmo quando abdicam de uma atuação política direta. 

No Brasil, tivemos a experiência histórica do bacharelismo, que correspondia à centralidade dos bacharéis em Direito na composição social das elites políticas e administrativas, fenômeno que foi marcante no Império e na Primeira República. Após a revolução de 1930 , os juristas perdem gradativamente esse protagonismo político, graças ao rearranjo entre elites, ao surgimento de novos protagonistas, como os militares, e ao corporativismo como forma de organização política, que afetou também os juristas que, a partir de então, aumentaram sua profissionalização. 

Porém, e ao contrário do que pode parecer, a profissionalização dos juristas não representou seu afastamento da política, mas seu reposicionamento em relação a ela. Afinal, os juristas continuaram cercando os palácios e centros de poder político, não mais na figura de governantes diretos — embora tenhamos resquícios desse velho bacharelismo —, mas como especialistas em uma burocracia e em uma organização jurídica do poder cada vez mais complexa. Além disso, a profissionalização dos juristas fez surgir fortes corpos burocráticos e associações profissionais, como a magistratura, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, que, mesmo distantes do mundo da política partidária, atuam em um sentido fortemente político, seja quando defendem seus próprios interesses, seja quando em suas práticas profissionais regulares influenciam a formulação de políticas públicas, revisam decisões tomadas pelo Executivo e pelo Legislativo ou ainda em episódios de ações criminais de combate à corrupção, como a Operação Lava Jato .


IHU On-Line – Tendo em vista acontecimentos recentes (impeachment, operação Lava Jato, afastamento e cassação de Eduardo Cunha), é possível afirmar que o Judiciário assume outro status no Brasil pós-redemocratização? E que status é esse? Quais os riscos que se pode incorrer ao se ter um Judiciário com tamanho protagonismo?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Pelas razões que apresentei anteriormente, descobrir o protagonismo dos juristas somente após a redemocratização é ignorar a história e as relações sutis e mais profundas entre o direito e o poder, que acontecem sob a superfície dos desenhos institucionais formais, constitucionais. Mesmo com o protagonismo dos militares, de elites empresariais e de burocracias econômicas, é impossível negar a participação fundamental dos juristas na constituição do regime que vivemos de 1964 aos anos 1980, seja pelo papel de juristas como Francisco Campos , Gama e Silva  ou Alfredo Buzaid , seja pelo papel do Supremo Tribunal Federal - STF na legitimação do golpe de 1964, seja pela instituição de um aparato judicial aparentemente democrático para a perseguição criminal da oposição ao regime. 

Mas é verdade que a redemocratização é um novo momento desse protagonismo. Em primeiro lugar, porque a abertura política permitiu o surgimento de novos grupos de juristas, que buscavam reformular seus papéis institucionais, suas carreiras e suas relações com a sociedade, grupos esses que eram um reflexo da diversificação social do próprio campo jurídico, repleto de novos perfis trazidos pela massificação do ensino do direito. Em segundo lugar, porque o processo constituinte permitiu a ativação política de muitos desses grupos, que atuaram na elaboração da Constituição para garantir posições institucionais de poder e autonomia de suas carreiras, como foi o caso da magistratura, do Ministério Público e da OAB. Em terceiro lugar, justamente porque a Constituição trouxe uma série de novidades institucionais que aumentaram o poder e as capacidades de ação dessas instituições judiciais, além de um rol de direitos e de judicialização das relações sociais e políticas que lhes permitiu um amplo campo de atuação profissional e também política.

O que estamos vivendo atualmente talvez seja a expressão mais aguda e intensa dessas mudanças todas em um período curto e conturbado de tempo. O risco que vivemos é o risco de sempre do protagonismo judicial nas democracias contemporâneas, que é o da legitimidade. Afinal, não votamos nos juízes e promotores que têm sido atores centrais das mudanças políticas que vivenciamos. Isso não quer dizer que elegê-los seja a solução, e acho que há muitos bons motivos para adotarmos um modelo de carreira pública selecionada por concursos e formação superior específica. Mas temos um enorme problema quando há grandes expectativas sociais no fato de que esses juristas e suas instituições sejam capazes de depurar um sistema político corrompido, sem que tenhamos no horizonte qualquer perspectiva de recomposição do nosso sistema político a partir da participação cidadã, do papel dos partidos e movimentos sociais e das instituições representativas. 

Depois que tudo vier abaixo, seremos governados por esses mesmos juristas que, para o bem e para o mal, são portadores das expectativas sociais e assumem o papel de defesa do interesse público contra a corrupção e a criminalidade? É claro que estou exagerando nesse cenário para o futuro, não acho que teremos um governo de juízes, mas exagero justamente para apontar o risco de um protagonismo das instituições judiciais que represente uma diminuição das instituições representativas e da participação cidadã.


IHU On-Line – Como o senhor compreende a ideia de judicialização da política? Quais as consequências, avanços e limites para a sociedade civil?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – O termo “judicialização da política” veio da ciência política estadunidense para compreender o protagonismo dos tribunais na tomada de decisões políticas de importância, num quadro institucional baseado numa separação um tanto esquemática e normativa dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. Como disse antes, esse olhar para a superfície institucional do problema trata como novidade algo que é constitutivo dos Estados nacionais modernos, que é muito mais antigo e muito mais profundo. Por outro lado, o termo ajudou a iluminar um fenômeno político realmente novo e interessante, que é o da revisão judicial de decisões executivas e legislativas e do papel do Judiciário no ciclo de formulação e implementação de políticas públicas, e com isso gerou um grande desenvolvimento da ciência política, que passou a olhar com mais atenção para o mundo do direito, coisa que a sociologia e a antropologia nunca deixaram de fazer. 

Devemos olhar para esse fenômeno tanto do ponto de vista dessa dinâmica institucional específica, da interação entre poderes e do processo de tomada de decisões, quanto de uma perspectiva sociológica e histórica de prazo mais longo e profunda, que entenda essa rearticulação institucional como um momento e um nível institucional de processos mais amplos. Nesse sentido, esse olhar em perspectiva mais profunda e de longo prazo nos ajuda a situar o fenômeno da judicialização da política entre visões um tanto extremadas, que o veem ou como uma intervenção indevida dos tribunais num processo de tomada de decisão que deveria ser essencialmente legislativo e executivo, ou, no outro extremo, que veem a judicialização como um processo de expansão da democracia e da participação social para além das instituições representativas liberais.

Há um pouco das duas coisas, e é nessa contradição que devemos compreender o fenômeno. De um lado, há voluntarismo político e ideologias profissionais dos juristas que buscam aumentar seu próprio poder e se colocarem como substitutos da política representativa; de outro lado, há também movimentos desses mesmos juristas e instituições judiciais em direção à sociedade, abrindo-se como espaço de reivindicação de direitos e canais de demandas sociais legítimas. Ou seja, me parece que a dimensão “progressista” da judicialização como forma de ampliação da cidadania, muitas vezes em sintonia e parceria com movimentos que vêm da sociedade civil, é um lado da mesma moeda que tem do outro lado projetos políticos de autonomização e fortalecimento dos juristas e suas instituições em uma luta pelo poder de Estado que, em grande parte, exclui a política representativa e a participação cidadã. O mecanismo que parece unir esses dois lados é o da legitimação social das instituições judiciais, que conseguem aumentar seu poder e sua esfera de ação justamente porque buscaram as fontes de sua legitimação em suas aproximações com a sociedade civil e com as demandas de cidadania.


IHU On-Line – O que o sistema judiciário brasileiro revela sobre as elites nacionais? Como esses valores se atualizam hoje, perpetuando as desigualdades?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – No geral, o Judiciário brasileiro me parece elitista e refratário aos movimentos que acontecem na sociedade, muito embora, como eu já disse, haja movimentos em seu interior que se abrem para demandas sociais e promovem mudanças importantes. O problema é a forma como esses movimentos um tanto contraditórios acontecem no interior dessas instituições e são mediadas pelas ideologias profissionais e corporativas. E aí vemos problemas profundos de nossa democracia se reproduzindo no interior do Judiciário. A persistência do autoritarismo, a conivência com a violência estatal e o desprezo por direitos individuais básicos de liberdade convivem, na sociedade brasileira e nas instituições de justiça brasileiras, com demandas sociais por direitos coletivos e políticas públicas. 

O Ministério Público que faz parte da engrenagem punitivista responsável por um absurdo e seletivo encarceramento de jovens negros e pobres é o mesmo que promove ações coletivas em defesa do meio ambiente, do consumidor, da educação e saúde públicas e da moralização da política. Nesse aspecto, as instituições judiciais reproduzem concepções de mundo que vão além das defendidas pelas elites, embora possam agir nos interesses dessas elites, ao reproduzirem desigualdades, segregarem os mais vulneráveis pelas políticas criminal e penal e legitimarem essas contradições pela expansão de direitos sociais, bens coletivos e pela defesa judicial do chamado "interesse público". 

Nesse aspecto, temos que compreender mais profundamente como se dá o recrutamento e a socialização dos juristas nessas carreiras e instituições. Há dados que mostram que as bases profissionais são relativamente diversificadas e sofreram as influências de processos de mobilidade social, de aumento da escolarização e de ampliação da classe média desde os anos 1970. Mas além de mesmo assim serem pouco representativos de todo o corpo social brasileiro, esse perfil não garante necessariamente uma maior democratização de ideias e do poder interno dessas instituições judiciais. Por isso, precisamos atentar para as formas de recrutamento e de socialização dos juristas, suas ideologias profissionais, a democratização interna das carreiras e a relação dessas bases profissionais mais diversificadas com as elites jurídicas, muito menos diversificadas socialmente e ainda muito próximas do poder político e econômico.


IHU On-Line – Como se dá a dinâmica sociopolítica de produção das elites jurídicas no Brasil? Em que medida as elites jurídicas inebriam a democratização plena da Justiça?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Se a ampliação da escolarização e de acesso ao Ensino Superior aumentou a diversidade social das carreiras jurídicas no geral, isso não aconteceu com o mesmo ritmo e intensidade ao nível das elites jurídicas. Nesse nível da hierarquia social e política do mundo do direito, ainda vemos um perfil elitizado e de características sociais bastante peculiares, muito parecidas tanto com outras elites políticas quanto com elites jurídicas do passado.

Apesar da massificação do ensino jurídico, que permitiu o surgimento de uma nova geração de juristas de classe média, vindas de cursos particulares e noturnos, muitos deles filhos de trabalhadores com baixo grau de escolarização, no nível das elites jurídicas predominam os egressos das faculdades de direito mais antigas do Brasil, consideradas as mais "tradicionais", com trajetórias educacionais de elite, seja pela sua formação em escolas privadas de ensino médio, seja pelos investimentos posteriores em títulos de pós-graduação. Apesar do distanciamento do mundo da política que o recrutamento por concurso público e a autonomia das carreiras permitiu a magistrados e membros do Ministério Público, nas cúpulas dessas carreiras ainda persistem os vínculos dessas elites com as elites políticas, seja pela atuação política direta, bastante resquicial, seja pelo trabalho de assessoria jurídica ou ocupação de cargos de confiança junto aos gabinetes das elites políticas.

Apesar da crescente feminização das carreiras jurídicas, as mulheres ainda são muito raras nos tribunais superiores. Obviamente, essas diferenças de perfil variam entre as carreiras, e também no tempo e no espaço, mas é significativa a resistência geral do perfil das elites em relação à diversificação que afeta suas bases há pelo menos 40 anos. As barreiras que permitem a reprodução desse perfil de elites jurídicas e seu isolamento relativo em relação à diversificação de suas bases estão no aumento do peso da indicação política para acesso às instâncias superiores das hierarquias institucionais, que tendem a valorizar aqueles que já trazem uma bagagem mais rica de capitais sociais, culturais e políticos, e a falta de democracia interna dessas carreiras e instituições, que permitem às elites jurídicas reproduzirem seu poder de controle sobre os mecanismos de recrutamento e treinamento de novos membros, disciplinarem sua atuação profissional e controlarem muito restritivamente os processos de seleção de novas lideranças.

Acredito que uma maior democratização interna das carreiras pode mudar um pouco esse perfil. Isso não quer dizer que teremos elites jurídicas mais democráticas, mas certamente serão mais diversas socialmente e aumentarão o espaço do conflito de posições e visões de mundo em disputa no interior das instituições. De certa forma, é o que aconteceu com o Ministério Público e com a OAB, cujos líderes podem ter perfis menos elitistas, mas não são necessariamente mais democráticos ou progressistas; de qualquer forma, nessas instituições o conflito social e político se expressa mais vivamente, abrindo algum espaço para a apresentação e o debate de alternativas.


IHU On-Line – Qual é a emergência de reforma do Judiciário? E de que ordem o senhor imagina essa reforma?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – As demandas por reforma do Judiciário aparecem no Brasil com a redemocratização, diante de um diagnóstico amplamente compartilhado de falta de acesso à justiça pelos mais pobres e do caráter elitista e hermético do Judiciário em relação às mudanças sociais e políticas. Muitas reformas pontuais e infraconstitucionais começam a acontecer ainda nos anos 1980, antes da Constituição, como os juizados de pequenas causas e a Lei da Ação Civil Pública , que buscavam ampliar o acesso dos pobres e das demandas coletivas por justiça. Na constituinte , porém, o processo de redefinição institucional esteve muito marcado pela influência das elites políticas e jurídicas do momento e pela atuação dos lobbies corporativos da advocacia, do Ministério Público e da magistratura, que propalavam projetos de ampliação da cidadania e garantia dos direitos, mas faziam isso de maneira atrelada ao aumento de suas próprias garantias e capacidades institucionais, vistas como necessárias para a defesa dos direitos e da cidadania previstas pela nova Constituição.

Não por acaso, menos de cinco anos depois já se falava em uma reforma do Judiciário, certamente com base na percepção de que as mudanças trazidas pela Constituição não seriam suficientes para resolver todos os problemas da Justiça brasileira. A proposta de emenda constitucional foi apresentada por Hélio Bicudo , então no Partido dos Trabalhadores - PT, em 1992, e só foi aprovada no primeiro governo Lula , em 2004. De uma proposta inicial de claro cunho democratizante, tanto no que se refere à ampliação do acesso à Justiça quanto no que diz respeito à organização interna das carreiras e instituições, chegamos a uma reforma que aumentou o poder das cúpulas judiciais, com medidas como a súmula vinculante , e que foi politicamente costurada como um acordo de elites jurídicas em torno de consensos mínimos.

É claro que medidas democratizantes também surgiram, como o fortalecimento das defensorias públicas, mas o ímpeto de democratização interna das instituições judiciais teve resultados muito modestos. Mesmo a criação do Conselho Nacional de Justiça - CNJ , que tem na sua origem um aspecto democratizante, seguiu a mesma tendência. A criação de um órgão de controle externo da magistratura surge nos debates dos anos 1990 sobre a reforma, e as propostas de composição desse órgão foram mudando de um perfil efetivamente "externo", com maior participação de membros de fora do Judiciário, para um perfil majoritariamente composto por membros do próprio Judiciário, com grande influência das cúpulas judiciais no processo de indicação desses membros. E logo nos primeiros anos de sua implementação, o CNJ vivenciou um processo de reforço de sua dimensão de planejamento e administração de políticas judiciárias nacionais, com atuações erráticas, a depender do perfil do seu presidente, no que se refere ao que poderíamos chamar de controle externo, ou seja, o controle disciplinar sobre desvios de conduta.

Além disso, logo após sua instituição ficou estabelecido, primeiro como prática, depois como regra, que a presidência do CNJ estaria sempre a cargo do presidente do STF e que o cargo de corregedor nacional de Justiça seria sempre de ministro do STJ. Ou seja, o CNJ acabou sendo absorvido pelas estruturas de poder do Judiciário, e não se colocando de maneira externa a ele. Enfim, a reforma de 2004 trouxe avanços importantes, mas foi bastante tímida em relação a problemas estruturais do Judiciário, e dificilmente teremos tão cedo conjuntura e capacidades políticas para uma nova e mais ousada reforma, a não ser reformas pontuais.


IHU On-Line – Podemos considerar as nomeações para o Supremo Tribunal Federal como indicações políticas? A forma como são feitas as nomeações podem interferir nas decisões da corte?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Há um pressuposto, no senso comum e também em parte da ciência política, de que as indicações políticas influenciam o padrão de decisão da corte, no sentido de que ministros seriam fiéis aos presidentes ou partidos que os indicaram. Isso não é necessariamente verdade no caso brasileiro. Muitas vezes, as indicações acontecem em função da acomodação de interesses no interior da coalização de governo, e nem sempre a indicação é feita pessoalmente pelo presidente ou por seu partido.

Também é comum que as indicações, mesmo quando mediadas por líderes partidários, expressem suas conexões com determinados grupos de juristas, ou seja, as indicações políticas na verdade acabam sendo atos de deferência de líderes políticos a elites jurídicas, e não de submissão de juristas às elites políticas. E é importante lembrar que há diversas pesquisas que mostram que ministros não são fiéis aos presidentes que os indicaram, e o caso do chamado mensalão  parece ser uma ilustração significativa desse padrão, já que uma corte majoritariamente indicada pelo PT condenou as principais lideranças do partido. Isso não quer dizer que não haja fidelidades políticas em sentido estrito e que os ministros do STF não tenham suas redes de relações políticas e que não as alterem enquanto estão no poder. O modelo de indicação política tem sua razão de ser na expectativa de que o tribunal superior não se submeta à influência da opinião pública e aos humores das maiorias ocasionais, preservando assim sua função de defesa da Constituição, dos direitos fundamentais e dos interesses contramajoritários.

Além disso, da forma como ele foi pensado nos Estados Unidos, de onde o importamos, ele prevê uma interação efetiva entre Executivo e Legislativo no processo de indicação, sabatina e aprovação do indicado, justamente para evitar um aparelhamento direto da corte suprema pelo Executivo. No Brasil, a sabatina pelo Senado é meramente ritual, e já seria um grande aperfeiçoamento se essa casa legislativa assumisse essa função efetivamente e realmente tivesse uma postura de controle e contrapeso no processo de indicação. Mas também podemos pensar em formas alternativas de aperfeiçoar esse mecanismo, talvez investindo em processos de escolha de indicados pelas próprias carreiras de juristas, mas com algum grau de interação com o Executivo e o Legislativo, para que um processo mais democrático internamente não se tornasse uma escolha puramente corporativa e imune ao controle da representação popular.


IHU On-Line – Como interpretar o discurso da ministra Cármen Lúcia  na sua posse como presidente do STF? É possível afirmar que ela já imprime um outro momento da suprema corte nacional?

Frederico Normanha Ribeiro de Almeida – Com o aumento da visibilidade do STF na cena política, e com a acumulação das presidências do Supremo e do CNJ, que é responsável por políticas judiciárias, cada vez mais se espera que os presidentes do tribunal tenham uma pauta, deem uma cara à sua gestão. Nos últimos anos, temos assistido a variações nesse quesito, com alternância entre perfis mais claramente de gestão política e perfis mais corporativos e de simples manutenção de práticas e procedimentos.

A gestão de Lewandowski  foi muito tímida e muito corporativista, muito afinada com os interesses corporativos da magistratura, tanto é que criou dentro do CNJ dois “miniconselhos”, um de presidentes de tribunais e outro de lideranças de associações de magistrados. O discurso de Cármen Lúcia dá a entender que ela será menos corporativa e estará mais atenta à opinião pública. Isso pode ser bom ou ruim, pois a sensibilidade do STF à opinião pública pode ser fonte de injustiças e de populismo judicial, em um momento em que isso tem sido alvo de fortes críticas por conta do papel de Sérgio Moro  e da Operação Lava Jato, e de várias decisões do próprio STF no processo de impeachment. Mas pode ser bom, especialmente no que se refere à presidência do CNJ, pois pode fazer o órgão avançar em políticas de aproximação do Judiciário com o cidadão, de aumento do acesso à Justiça.

Sinceramente, não há nada no perfil e na trajetória de Cármen Lúcia que me faça ser otimista com a nova gestão, não ao menos no sentido de esperar grandes mudanças estruturais. O STF claramente assumiu um papel de mediador casuísta da crise política, e acho que deve continuar a fazer isso. Se alguma mudança mais importante vier, será no CNJ, mas não acredito que venha algo realmente capaz de quebrar a lógica corporativista do Judiciário.

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