Edição 492 | 05 Setembro 2016

Da crise civilizatória à utopia tropical, caminhos de retorno à complexidade da vida

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Ricardo Machado

Eduardo Gianetti da Fonseca aborda os dilemas da atual crise civilizacional em seu livro lançado recentemente, Trópicos Utópicos, propondo uma vida menos submetida ao império dos valores econômicos
Trópicos Utópicos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016)

As três grandes promessas de libertação da modernidade – a elucidação da condição humana por meio da ciência, a possibilidade de controle da natureza e a conquista da felicidade por meio do crescimento econômico – se tornaram, enfim, uma grande frustração. A crise civilizatória em que vivemos é uma espécie de síntese desses três fatores, em que nem mesmo os mais ricos do planeta sentem-se realizados. “Vou dar um exemplo simples do país mais rico do planeta: nos Estados Unidos, um norte-americano com renda mediana, ou seja, aquele cidadão que está na metade da distribuição de renda, pertence aos 5% mais ricos do planeta. No entanto, ele sente que lhe faltam mais coisas que a maior parte dos 95% restantes”, pondera o professor e pesquisador Eduardo Giannetti da Fonseca, em entrevista por telefone à IHU On-Line.

Ao fazer uma crítica ao modelo hegemônico de civilização, Gianetti é enfático. “O que me parece condenável no mundo que nós estamos é uma supervalorização da dimensão econômica da vida e uma exacerbação do elemento competitivo, em detrimento dos elementos cooperativo e contemplativo. A humanidade nunca teve tanta tecnologia, tanta produtividade e provavelmente nunca foi tão obcecada, como é hoje, com o sucesso econômico, o que me parece uma coisa no mínimo questionável, para não dizer estranha”, critica.

Eduardo Gianetti da Fonseca lançou recentemente o livro Trópicos Utópicos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), em que ele aborda, justamente, a crise civilizacional que vivemos e tenta responder à questão: “Existe uma utopia capaz de mobilizar a alma e a energia dos brasileiros? O livro propõe essa pergunta e responde afirmativamente. A nossa utopia consiste na construção de uma forma de vida menos submetida ao império dos valores econômicos e mensuráveis”, prospecta. 

Eduardo Gianetti da Fonseca possui graduação em Ciências Econômicas e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e doutorado em Economia pela University of Cambridge. É autor, além de Trópicos Utópicos, de outros nove livros, dos quais destacamos Vícios privados, benefícios públicos? (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), vencedor do Prêmio Jabuti 1994, categoria Estudos Literários – Ensaio; e O Valor do Amanhã (São Paulo: Companhia das Letras, 2005), laureado com o segundo lugar no Prêmio Jabuti 2006, categoria Economia, Administração, Negócios e Direito. 


Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o livro Trópicos Utópicos aborda a crise civilizatória que vivemos?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Ele a aborda em três etapas. A primeira é uma crítica à ciência moderna, no que ela alimentou uma falsa expectativa em sua origem, de que permitiria uma elucidação da condição humana do sentido da vida. A segunda é uma crítica à tecnologia, que prometia um controle crescente da natureza por parte do ser humano e que agora nos ameaça com um total descontrole das bases naturais da vida, como por exemplo a mudança climática. A terceira crítica é em relação à expectativa de que o crescimento econômico, da renda e do consumo trariam, ao ser humano, felicidade e vidas mais livres e dignas de serem vividas. São três grandes desapontamentos em relação às promessas que acompanharam a modernidade. Contudo, com o prelúdio do que seria uma utopia brasileira, faz-se uma crítica à civilização ocidental moderna desde uma perspectiva brasileira.   


IHU On-Line – Por que o crescimento econômico, um dos três vetores da crise civilizatória, não significou aumento da realização humana?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Primeiro, as evidências empíricas sobre bem-estar subjetivo são unânimes ao apontar para o fato de que, a partir de um certo nível de renda, não há correlação forte entre aumento de renda e bem-estar subjetivo, da felicidade. As razões por que isso acontece são muitas. A hipótese que eu desenvolvo no livro é a da renda relativa. A partir de um certo momento na trajetória de crescimento econômico, as pessoas que já satisfizeram suas necessidades básicas passam a ficar muito mais preocupadas com sua posição relativa que com aquilo que estão consumindo e usufruindo. 

Isso deflagra uma corrida armamentista do consumo, porque, à medida que as pessoas se comparam com seu grupo de referência, elas percebem que ficaram para trás. Então elas precisam alcançar os que estão na “frente” e isso vai renovando e recriando perpetuamente uma situação de escassez. Vou dar um exemplo simples do país mais rico do planeta: nos Estados Unidos, um norte-americano com renda mediana, ou seja, aquele cidadão que está na metade da distribuição de renda (a metade da população dos Estados Unidos está abaixo dele, a outra metade acima, do ponto de vista de renda monetária), pertence aos 5% mais ricos do planeta. No entanto, ele sente que lhe faltam mais coisas que a maior parte dos 95% restantes. Ele é considerado na sociedade norte-americana um perdedor, embora ele esteja entre os 5% mais ricos do planeta na métrica da renda per capita. Trata-se de uma corrida que não tem fim e que gera, para a grande maioria, uma situação inescapável de derrota. Será que é isso que o mundo inteiro almeja?


IHU On-Line – Podemos pensar a financeirização, como o processo que tenta reduzir todas as dimensões da vida à lógica financeira, como um dos motores que mantêm a crise civilizacional em movimento? Não haveria nisso um “desejo” de quantificar o inquantificável?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Eu reformularia esta questão em outros termos, mas, provavelmente, apontando na mesma direção. O que me parece condenável no mundo que nós estamos é uma supervalorização da dimensão econômica da vida e uma exacerbação do elemento competitivo, em detrimento dos elementos cooperativo e contemplativo. Essa exacerbação da dimensão econômica e do elemento competitivo está calcada naquilo que se pode medir, no quantificável. A dimensão contemplativa não é passível da mesma lógica de ranqueamento, de quantificação.

Concordo com a tese de que a maioria dos seres humanos do século XXI gostaria de viver em um mundo que não fosse tão escravizado pela dimensão econômica e que não julgasse sucesso e fracasso de uma forma tão fechada em torno dos resultados econômicos. A humanidade nunca teve tanta tecnologia, tanta produtividade e provavelmente nunca foi tão obcecada, como é hoje, com o sucesso econômico, o que me parece uma coisa no mínimo questionável, para não dizer estranha. 

Faço um paralelo entre economia e saúde. Se uma pessoa perde a saúde, é natural que ela concentre todo o esforço em recuperá-la, porque isso se torna um imperativo para tudo o mais. Mas se a pessoa goza de boa saúde, ela acredita que a saúde a liberta para viver plenamente a própria vida. A saúde quando é boa tem o efeito de libertar o ser humano para desfrutar a vida e realizar os seus sonhos como ele os concebe. A economia deveria ser como a saúde, quando a gente alcança um certo padrão como a humanidade já alcançou – de produtividade e de capacidade de gerar os bens e serviços indispensáveis para uma vida razoável –, deveríamos nos libertar para outros valores da existência. Dedicarmo-nos às relações pessoais, à criação, à relação harmoniosa com a natureza, à busca do conhecimento, mas isso não acontece. Parece que quanto mais nós avançamos na dimensão da economia, mais a economia se torna o valor central da vida. É mais ou menos como uma pessoa que quanto mais saudável fica, mais obcecada ela se torna para conquistar mais saúde. Algo que seria para libertar o ser humano, torna-se um instrumento de crescente alienação e subjugação.


IHU On-Line – E como nos livramos da métrica monetária?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Não será por decreto e tampouco por um salto no escuro. Isso ocorrerá por uma crítica e um amadurecimento que nos permita descobrir outras formas de organizar nossa convivência e vida prática. Uma coisa me parece clara, a natureza impõe limites, o que talvez seja a grande novidade do século XXI. Esse caminho economicista e muito calcado na população e no consumo, agora encontra, além de sua limitação ética, sua limitação biológica, porque põe em risco de maneira muito ameaçadora o equilíbrio da biosfera.  Creio que isso vai pressionar por alternativas, e o que estou oferecendo no livro é exatamente em que o Brasil pode contribuir nessa busca por alternativas. 


IHU On-Line – A crise brasileira que vivemos atualmente é resultado da falta de imaginação política para superar esses momentos ou é resultado, justamente, de uma imaginação política que transita entre a euforia e a melancolia?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Isso não diz respeito à crise civilizatória, mas à crise brasileira. O Brasil é um país com uma imaginação muito volátil, que oscila com muita facilidade entre estados eufóricos e estados depressivos. O que me chama atenção, olhando para a humanidade, é como se tem épocas da história do pensamento e da política em que uma espécie de maré montante toma conta da capacidade de sonho coletivo. 

Foi assim com a primeira geração romântica no início do século XIX, foi assim nos chamados “loucos anos 20” no início do século XX e foi assim na década de 1960, quando os movimentos jovens esboçaram uma utopia e uma revisão radical dos valores que tinham presidido a vida das gerações anteriores. A partir dos anos 1980 o que vimos foi um grande refluxo, um retrocesso dessa onda de pensamento utópico coletivo, que foi a geração dos anos 1960 e 1970. Tenho a impressão de que são movimentos cíclicos e que em algum momento, espero que em breve, a humanidade recupere essa ousadia de sonhar formas de vida radicalmente distintas dessa forma falida que nós temos hoje. 


IHU On-Line – A imprevisibilidade das crises econômicas não seria resultado de sua própria lógica de funcionamento que “prevê” não prever crises?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Cada crise econômica tem a sua dinâmica e a sua natureza. O que nós vimos em 2008 e 2009 foi o estouro de uma bolha imobiliária gigantesca, especialmente nos Estados Unidos. Há um elemento muito curioso, e nisso a palavra financeirização se justifica. A partir dos anos 1980 a dimensão financeira da economia passa a crescer de maneira desligada do resto da economia real. O volume de ativos financeiros, que no fundo são papéis que representam riqueza, cresceu de maneira muito desproporcional ao crescimento da economia real, que é o que produz bens e serviços que as pessoas consomem. Esse movimento gerou várias crises financeiras a partir de então, a principal delas em 2008/2009.

A aposta na desregulamentação dos mercados financeiros foi feita na década de 1990 e gerou essa bolha, que os próprios defensores da desregulamentação financeira, como Alan Greenspan,  ex-presidente do Federal Reserv americano, se penitenciam e se dizem arrependidos de terem feito uma aposta desastrada que gerou grande sofrimento e desapontamento nas pessoas. 


IHU On-Line – O fracasso das teorias econômicas, manifestado no ato de que o crescimento econômico não corresponde à totalidade da realização pessoal, deriva exatamente do quê? 

Eduardo Giannetti da Fonseca – Em grande medida isso foi o estreitamento do pensamento econômico, que começa no início do século XX, quando a economia se torna uma disciplina separada das demais disciplinas das ciências humanas. Os grandes economistas dos séculos XVIII e XIX, como Adam Smith,  John Stuart Mill,  Karl Marx  e Alfred Marshall  eram filósofos e a economia era parte de um projeto intelectual abrangente, do qual faziam parte a história, a biologia, a ética, de uma reflexão sobre o ser humano em sua complexidade. 

Especialmente a partir da segunda metade do século XX, houve uma especialização e a economia se tornou quase que um ramo da matemática aplicada, uma espécie de engenharia econômica que perdeu o vínculo com o resto das ciências humanas. Esse é um problema da divisão do trabalho intelectual e de um modo de especialização do pensamento, que levou ao estreitamento do âmbito de perguntas e do rol de reflexões que a economia se permite fazer. 


IHU On-Line – O que há de efetivamente novo em termos de condução da política econômica brasileira? Avançamos ou recuamos 15 anos trazendo os mesmos nomes do primeiro mandato de Lula?

Eduardo Giannetti da Fonseca – Nós estamos lidando com as consequências do desastre do experimento da nova matriz econômica conduzida no primeiro mandato da Dilma.  Estamos em movimento de colocar a casa minimamente em ordem, especialmente na política fiscal e nas contas públicas depois de um experimento que resultou muito pior do que as piores expectativas. Levou o Brasil a ter 12 milhões de desempregados, inflação acima de 10%, 60 milhões de pessoas inadimplentes com dívidas acima de 90 dias, milhares de empresas em situação de recuperação judicial e um investimento caindo no Brasil há 11 trimestres consecutivos. 

Seria difícil imaginar um resultado mais desastroso do que esse que derivou do primeiro mandato da Dilma Rousseff, que apostou em uma fórmula completamente equivocada, chamada “nova matriz econômica”. Então, não há nada de novo. Estamos voltando a ter o mínimo de racionalidade depois de ter perdido completamente o pé na condução da economia brasileira. 


IHU On-Line – Como as utopias podem nos ajudar a retomar a imaginação política em busca de uma vida melhor?

Eduardo Giannetti da Fonseca – O livro Trópicos Utópicos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016) não entra nas questões conjunturais e de economia política em um sentido mais corriqueiro do termo. O movimento intelectual que o livro propõe é o seguinte: a grande e bela linhagem de intérpretes do Brasil, entre os quais Sérgio Buarque de Holanda,  Gilberto Freyre,  Darcy Ribeiro,  Caio Prado Júnior  e tantos outros, sempre buscou a identidade brasileira com um olhar retrospectivo. Nossa identidade estaria em nossa história, em nossa formação, em nossas raízes e em nossos “males e bençãos de origem”, para fazer eco ao livro de Manuel Bonfim.  

Por que não pensar a busca de uma identidade prospectiva? Ou seja, qual é o sonho que nos une? Existe uma utopia capaz de mobilizar a alma e a energia dos brasileiros? O livro propõe essa pergunta e responde afirmativamente. A nossa utopia consiste na construção de uma forma de vida menos submetida ao império dos valores econômicos e mensuráveis. Digo que é uma compreensão mais lúdica e amigável da vida, não submetendo tudo à métrica da renda e da produtividade. Os nossos valores decorrem da presença, na cultura e na vida brasileira, de fortes elementos das culturas não ocidentais pré-modernas de extração ameríndia e africana que nos dão a condição de uma originalidade no mundo moderno. ■

 

Leia mais...

- "Alternamos embriaguez eufórica com depressão que arrasa". Entrevista com Eduardo Giannetti da Fonseca, publicada por Zero Hora, em 20-08-2016, e reproduzida nas Notícias do Dia de 23-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

- “O Brasil ideal não é um país do hemisfério norte. Temos que valorizar nosso dom de celebrar a vida”. Entrevista com Eduardo Giannetti da Fonseca, publicada por El País, 25-07-2016, e reproduzida nas Notícias do Dia de 26-08-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

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