Edição 491 | 22 Agosto 2016

A inanição de um organismo desidratado

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João Vitor Santos

José Antonio Sestelo analisa um esquema em que agentes econômicos atuam na saúde apenas como mais um de seus negócios. Pleiteiam irrigação pelo Estado enquanto políticas públicas vão secando

Para José Antonio Sestelo, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, a tensão que há entre os sistemas público e privado de assistência à saúde no país é mais complexa do que parece. Num primeiro momento, pode-se concluir que o privado quer suplantar o público para “herdar” seus pacientes. Porém, a realidade é outra. “A expectativa dos agentes econômicos envolvidos com esse esquema de comércio é que o SUS continue existindo como um sistema pobre para pobres e um resseguro para os estratos médios de renda”, explica. Assim, o desejo real dos agentes que tratam a saúde como negócio é de que o “governo autorize o aumento da base de arrecadação das empresas a partir de planos individuais baratos de baixa cobertura”. “Não tem dinheiro para políticas sociais, mas uma das principais rubricas orçamentárias permanece intocada: despesas financeiras com juros e amortizações da dívida pública interna”, completa.

O caráter universal do SUS não impede que isso ocorra, pois a intenção é oferecer atendimentos a todos e compor a atenção à saúde de forma sistêmica. O problema é que na mesma proporção em que os planos buscam mais recursos, diminui o orçamento da saúde pública. Para Sestelo, é uma aposta num sistema que já se sabe que não dá certo. “Aqui as empresas têm apresentado uma pauta, integralmente assumida pelo atual ministro, que reatualiza tudo que já deu errado nos Estados Unidos como se fosse uma novidade”, alerta. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ainda evidencia que há mais em jogo. Para ele, a equipe do governo interino de Michel Temer trabalha para hidratar o sistema financeiro, enquanto vai matando políticas públicas por inanição, revogando direitos sociais inaugurados com a Constituição de 88. “No Brasil é evidente a caducidade dos protagonistas atuantes na cena política. O governo interino cheira à naftalina, mas muitos dos que, em tese, fazem oposição a ele, poderiam ser guardados no mesmo sarcófago”, dispara.

José Antonio de Freitas Sestelo é graduado em Odontologia, com especialização em Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo Facial, pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Possui mestrado em Saúde Comunitária pelo Instituto de Saúde Coletiva - ISC da UFBA e é doutorando em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina/Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IESC/UFRJ. Atualmente é pesquisador do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento da Saúde – GPDES na UFRJ, onde estuda os planos de saúde no Brasil dos anos 2000 em ambiente de dominância financeira, e também é Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO. É Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª região para área de saúde.


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como compreender a lógica do Sistema Único de Saúde - SUS e em que medida essa lógica se contrapõe aos planos e seguros de saúde privados?

José Antonio de Freitas Sestelo - O SUS pressupõe uma lógica sistêmica e integral, enquanto o esquema de comércio de planos e seguros de saúde promove a segmentação da assistência. São, portanto, lógicas distintas. Mas, além disso, no caso brasileiro, são também dinâmicas concorrenciais e não suplementares. Os planos de saúde em geral ocupam um espaço residual na maioria dos países e dessa forma estão limitados aos segmentos de renda mais elevada que querem e podem pagar por esquemas assistenciais particulares e privativos. No Brasil, entretanto, cerca de 25% da população utiliza planos de saúde a partir de subsídios à demanda patrocinados pelo Estado. 

A hipertrofia dos esquemas segmentados constitui a principal distorção e fonte de tensão permanente entre as duas lógicas concorrenciais de funcionamento em disputa. Na prática, o SUS funciona como uma estrutura de resseguro para as empresas que praticam a intermediação da assistência, funcionando como pagador de última instância para despesas catastróficas e todas as situações que não sejam economicamente rentáveis, como atendimento a idosos e doentes crônicos. 

Os programas preventivos, a promoção de saúde e a vigilância produzem externalidades positivas sobre o conjunto da população que são capitalizadas pelas empresas de planos de saúde. 


IHU On-Line - No primeiro semestre de 2016, 910 mil pessoas deixaram os planos de saúde. O que esse número revela, essencialmente a planos privados? E o que representa para o SUS?

José Antonio de Freitas Sestelo - Esse tema tem sido veiculado frequentemente pela imprensa como se houvesse uma relação direta entre diminuição da clientela de empresas de planos de saúde e aumento da demanda na rede pública. O ministro interino da Saúde, Ricardo Barros, também utiliza esse mesmo argumento de forma invertida ao afirmar que quanto mais pessoas forem clientes de planos de saúde, melhor para o SUS. Penso que a questão não pode ser analisada de forma assim tão simplificada.

O argumento utilizado parte de uma premissa falaciosa que define a existência de dois compartimentos estanques no sistema de saúde, um público e outro privado. Na verdade, muitos clientes das empresas sempre utilizaram a assistência pública e deverão continuar utilizando depois de deixarem os planos. Além disso, outros esquemas assistenciais financiados por desembolso direto têm florescido na periferia de grandes cidades com oferta de consultas e exames complementares a preços populares, cartões de desconto e bônus de fidelidade. Trata-se de um fenômeno ainda não analisado e de extensão desconhecida. 

Como a maioria dos clientes de planos de saúde atualmente tem seu vínculo estabelecido por meio da relação de trabalho, é esperado que um aumento no nível de desemprego tenha impacto sobre as carteiras de clientes das empresas. O que ainda não está claro é em que medida esses números refletem apenas uma mudança de conjuntura macroeconômica ou expressam os limites do modelo de negócios de intermediação assistencial fomentado pelo Estado.


IHU On-Line - Em que medida essa redução de usuários de planos de saúde faz com que as operadoras de saúde privadas avancem sobre o SUS, numa perspectiva de privatizar a saúde até então financiada com recursos públicos? E quais os riscos de se ter uma política pública, como o SUS, financiada por recursos privados?

José Antonio de Freitas Sestelo - Penso que um esquema de comércio de planos e seguros de saúde só pode ser sustentável se custar caro e for reservado para uma parcela pequena da população. Não é possível tratar esse modelo como uma solução estrutural para nenhum sistema de saúde. Está aí o exemplo dos Estados Unidos para demonstrar empiricamente o que digo. Lá eles gastam quase 20% do Produto Interno Bruto - PIB com saúde e sem resultados efetivos. Não por outro motivo, a reforma do sistema de saúde foi e continua a ser tema palpitante na disputa eleitoral daquele país.

Aqui as empresas têm apresentado uma pauta, integralmente assumida pelo atual ministro, que reatualiza tudo que já deu errado nos Estados Unidos como se fosse uma novidade. Esse é um sintoma típico da defasagem das mentes colonizadas em relação à metrópole. Eles não se dão conta do sentido das mudanças em curso e repetem uma retórica ultrapassada.

 

Saúde pública

Não vejo nenhuma possibilidade de ter uma política pública como o SUS financiada por recursos privados. Ao contrário, o que se propõe atualmente é que recursos públicos financiem mais empresas privadas e esquemas assistenciais privativos. Talvez o modelo colombiano seja uma inspiração para essas propostas; lá os recursos públicos são quase que inteiramente repassados para uma extensa rede de agenciadores e intermediadores privados.

Eu diria que a expectativa dos agentes econômicos envolvidos com esse esquema de comércio é que o SUS continue existindo como um sistema pobre para pobres e um resseguro para os estratos médios de renda. E que o governo autorize o aumento da base de arrecadação das empresas a partir de planos individuais baratos de baixa cobertura restaurando a situação que vigorava até 1998. O que não está claro é se os clientes em potencial vão aceitar esse engodo e comprar o que eles querem vender.


IHU On-Line - Quando o atual ministro da Saúde declara que a universalidade do SUS é inviável do ponto de vista de financiamento, o que está evidenciado? E o que revela seu discurso sobre a eficiência, a necessidade de “choque de gestão” no SUS, como forma de fazer frente ao contingenciamento de recursos?

José Antonio de Freitas Sestelo - A declaração do ministro evidencia a existência de uma disputa política pelos recursos do orçamento público. Não tem dinheiro para políticas sociais, mas uma das principais rubricas orçamentárias permanece intocada: despesas financeiras com juros e amortizações da dívida pública interna.

É verdade que não é só aqui no Brasil que esse novo regime global de acumulação controlado pela alta finança determina um movimento regressivo sobre políticas sociais. Temos assistido algo semelhante na Europa ultimamente. Entretanto, no Brasil, diferente da Europa, há um déficit histórico de infraestrutura assistencial que precisa ser compensado e, ao contrário do que ocorre nos países centrais, no Brasil o nível de remuneração dos ativos financeiros ultrapassa qualquer limite razoável. O ministro, portanto, está dizendo que a riqueza do país deve ser reservada para compromissos financeiros nebulosos e nunca auditados e sonegada para as necessidades reais de saúde da população de trabalhadores. É inacreditável que um ministro da Saúde não se disponha sequer a defender o orçamento da sua pasta.

 

Uma falsa questão

A expressão “choque de gestão” é infeliz. Qualquer organização pública ou privada precisa ter sua gestão permanentemente melhorada e ajustada aos desafios que se apresentam. O ministro é o gestor federal do SUS e tem se mostrado, na minha opinião, um mau gestor. Acho que gerir o SUS é um desafio que está além da sua capacidade e da de seus principais assessores.

Essa antinomia entre subfinanciamento e má gestão no SUS é uma falsa questão. O SUS é historicamente subfinanciado, não há dúvida, e a questão gerencial é também importante como em qualquer organização complexa. O ministro deveria se esforçar para ser um melhor gestor e reivindicar mais recursos para suprir as lacunas no orçamento do seu ministério.


IHU On-Line - Os planos de saúde privados estão sempre no topo do ranking de reclamações, seja no Procon ou na própria Agência Nacional de Saúde - ANS. Como o senhor avalia a fiscalização feita sobre esses planos?

José Antonio de Freitas Sestelo - A fiscalização é pouco efetiva. Como mencionei anteriormente, penso que a principal falha na fiscalização sobre o comércio de planos de saúde é a ausência de limites para a abrangência populacional desse esquema de intermediação. Isso compromete o conjunto do sistema e transforma algo que deveria ser suplementar em concorrencial.

Além disso, o modelo de fiscalização praticado pela ANS tem sido muito mais no sentido de assegurar a saúde financeira das empresas e diminuir o risco de quebras do que de atuar de forma sinérgica com a lógica sistêmica do SUS. Na sua origem, na década de 1990, o modelo fiscalizatório incorporado pela ANS fez uma síntese entre os interesses das grandes seguradoras dotadas de um nível alto de capitalização e uma lógica atuarial estrita, os interesses das empresas de medicinas de grupo que haviam prosperado à sombra da medicina previdenciária, assim como das cooperativas médicas, que são um caso atípico sem precedentes conhecidos em outros países. O resultado foi uma colcha de retalhos repleta de contradições.

Se, por um lado, o marco legal representado pela criação da ANS garantiu alguns direitos fundamentais para os clientes das empresas, também conferiu legitimidade a um esquema comercial que até então havia prosperado de forma predatória sobre a estrutura pública estabelecida pelo sistema previdenciário. A ANS, que deveria ser uma agência enxuta voltada para a fiscalização setorial, cresceu junto com a hipertrofia do comércio de planos de saúde e foi, em grande medida, capturada pelos interesses das empresas.


IHU On-Line - Em que medida a mudança da Lei 8.080 , descumprindo o princípio constitucional e passando a admitir a presença de capital estrangeiro nos hospitais sem qualquer condicionante, se constitui uma ameaça ao SUS? Qual é a questão de fundo na mudança dessa Lei?

José Antonio de Freitas Sestelo - Não há dúvida de que a mudança na lei ofende a Constituição, mas esse é também um caso típico onde a lei, na prática, era letra morta sem que ninguém notasse. O capital estrangeiro já estava presente na assistência de forma insuspeita.

A maneira como foi operada a mudança na lei também chama atenção. Foi uma iniciativa do governo da época por meio de um deputado do baixo clero que inseriu um “jabuti” no meio de alterações de outros temas em nada relacionados com a saúde. Não foi fruto de discussão pelo controle social, nem pelas entidades representativas do movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Em outras palavras, foi um “golpe” parlamentar.

 

Submissão sanitária à lucratividade

Em um ambiente de dominância financeira, a participação societária de sócios estrangeiros em empresas de assistência se dá por meio de fundos de investimento de composição variada com investidores nacionais e estrangeiros abrigados sob a mesma plataforma. O fator mais relevante nessa questão, a meu ver, é a submissão da lógica sanitária às expectativas de lucratividade no curto prazo trazidas para dentro do ambiente hospitalar.

Exemplo disso tem sido a redução sistemática de leitos de obstetrícia verificada em hospitais privados com objetivo de assegurar a manutenção das margens de lucro projetadas pelos quotistas controladores. As mulheres precisam dos leitos, mas a direção do hospital é pressionada para maximizar a utilização do ambiente assistencial por procedimentos rentáveis como a venda de órteses, próteses e materiais especiais e a quimioterapia oncológica ambulatorial.


IHU On-Line - O que é o Livro Branco e como seus princípios agem nesse contexto?

José Antonio de Freitas Sestelo - O Livro Branco da Saúde foi uma iniciativa da Associação Nacional de Hospitais Privados – ANAHP, mas expressa muito do senso comum que prevalece no meio empresarial da assistência. Eles contrataram uma pequena empresa de consultoria espanhola para elaborar um documento que pretende apontar soluções válidas para o conjunto do sistema de saúde brasileiro. Trata-se de um trabalho desprovido de bases teóricas coerentes, mas que expressa ideias com ampla penetração em diversos setores políticos inclusive no campo progressista. Justamente por isso o Livro Branco se tornou dispensável. É uma tautologia que repisa o que o senso comum já veicula. Um exemplo é a assertiva propalada pelo ministro de que o esquema de comércio de planos de saúde “alivia” o SUS, entre outros disparates.


IHU On-Line - Quais os avanços, limites e retrocessos do SUS na gestão de Lula e Dilma Rousseff? E como observa os primeiros movimentos na área da Saúde nesse governo interino de Michel Temer?

José Antonio de Freitas Sestelo - Em tempos de vacas gordas, os governos Lula e Dilma promoveram avanços incrementais minimalistas no SUS e colheram melhorias importantes em alguns indicadores de saúde/doença que precisam ser reconhecidos. O que ainda não está claro é em que medida a melhoria nos indicadores guarda uma relação direta com o nível da assistência ou com as condições gerais de reprodução da vida em sociedade.

Entretanto, ao longo de todo esse período, nunca houve uma decisão política resoluta a favor do estabelecimento daquilo que estava previsto na Constituição de 1988. É melancólico registrar o fato de que na história da previdência social sempre houve algum nível de compartilhamento entre o pagamento de pensões, a assistência social e de saúde nos antigos institutos segmentados por categorias profissionais. Quando finalmente, na Constituição de 1988, foi criado o Orçamento da Seguridade Social como ordenador unificado de despesas, vislumbrou-se a perspectiva de uma maior segurança nos níveis de financiamento das políticas sociais. 

Porém, justamente a partir da criação do SUS a burocracia previdenciária se retirou para o seu isolamento e a saúde nunca recebeu o necessário para cumprir com a sua finalidade estratégica. Os mecanismos de Desvinculação de Receitas (sociais) da União – DRU para pagamento de despesas financeiras se consolidaram, ao que tudo indica, definitivamente. A proposta recentemente encaminhada de ampliação da DRU havia sido concebida ainda no governo Dilma.

 

Governo interino

Quanto ao governo interino, além de toda a pauta anunciada de terra arrasada para as políticas sociais, é importante registrar o fato concreto da maior importância política e institucional registrado até o momento que foi a extinção do Ministério da Previdência e a incorporação de sua burocracia ao staff do Ministério da Fazenda.  É digno de nota que esse ato de governo passou ao largo de críticas em quase toda a extensão do espectro político. É como se o ministro da Fazenda fosse mesmo a melhor pessoa para administrar o caixa da previdência. Naturalizou-se um “novo normal” onde 80 anos de história de políticas sociais viraram coisa do passado e partidos políticos, sindicatos e instituições acadêmicas se calam.

Vejo esse fato como a maior vitória ideológica do campo conservador nos últimos anos. Espero que, em algum momento, os trabalhadores percebam a dimensão regressiva do que está em curso.


IHU On-Line - Em que medida o discurso de déficit da previdência pública alimenta o ideário de privatização dos sistemas previdenciário e de saúde? Historicamente, quando e como emerge esse discurso e como vem se desenvolvendo até os dias de hoje?

José Antonio de Freitas Sestelo - É uma velha disputa ideológica que remonta à criação do antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários - IAPI . Ainda na década de 1930, esse instituto se estabeleceu como tipo ideal de burocracia imune à influência política dos sindicatos e rigorosa no cumprimento de metas atuariais voltadas para garantia da segurança das despesas futuras com o pagamento de pensões. O IAPI limitou as despesas assistenciais de seus segurados e dificultou o pagamento de pensões no limite da responsabilidade. Paradoxalmente promoveu um esquema assistencial privativo para os seus funcionários (Assistência Patronal, atual GEAP autogestão ) e diferente daquele espartano oferecido para o operário do setor industrial em geral. 

Na reforma de 1966, que criou o Instituto Nacional de Previdência Social - INPS , os “cardeais do IAPI” deram as cartas e consolidaram a sua posição avessa a despesas assistenciais no seio da burocracia previdenciária. O déficit da previdência passou a ser um risco permanente e os guardiões da austeridade orçamentária passaram a ser também os salvadores da pátria.

A história se repete como uma farsa grotesca e, hoje, o salvador da pátria é um ex-funcionário do banco de Boston  que detém as chaves do cofre da previdência e direito de vida e morte sobre os trabalhadores brasileiros.

O modelo restritivo está traçado e consiste fundamentalmente no estabelecimento de um teto baixo para os benefícios de forma a estimular a compra de planos de previdência complementar, ou seja, entregar para os operadores do mercado financeiro remunerados por comissão a tarefa de gerenciar os recursos dos aposentados que deveriam estar resguardados pela proteção do Estado. É um caso típico de acumulação primitiva de capital baseado na socialização dos riscos e apropriação privada do lucro. A consequência dessa rota é aumento na desigualdade de renda e na insegurança social em um país já seriamente ameaçado por uma herança histórica perversa. 

As informações de que dispomos apontam que o Orçamento da Seguridade Social, se estivesse em vigor, seria superavitário, ou seja, é com recurso das receitas sociais que se pretende viabilizar uma política de transferência de renda regressiva.


IHU On-Line - O que a desidratação do SUS, entre outras políticas públicas, revela sobre os limites de um pacto “feito por cima” na redemocratização? E o que emerge como caminho para assegurar conquistas sociais da Constituição de 1988?

José Antonio de Freitas Sestelo - O pacto feito “por cima” no fim do regime militar nunca engoliu as políticas sociais desenhadas na Constituição de 1988. Uma versão desidratada foi posta em prática ao longo desses anos até hoje de tal forma a manter um nível aceitável de tensão social. O que se anuncia agora é a inanição de um organismo já desidratado.

Alguns analistas políticos e a própria presidente afastada têm afirmado que o pacto na Nova República se esgotou e agora é chegado o momento de formação de um novo bloco de poder. Resta saber quem se apresenta para compor esse pacto. Que tipo de pacto é possível em uma sociedade dividida em estratos tão desiguais?

O novo padrão global de riqueza representado pela dominância financeira tornou obsoletos os mecanismos de regulação extramercado desenvolvidos depois da última guerra na Europa. O Estado de Bem-Estar Social , tudo indica, foi um parêntesis que vigorou nos 30 anos dourados de expansão do capitalismo industrial condicionado por limites agora revogados e expandidos. A barbárie reivindica de volta seu espaço existencial perdido. Nos países periféricos, onde apenas um verniz de políticas sociais chegou a ser implementado, já tomamos conhecimento do que se anuncia.

 

Apanágio conservador e cheiro de naftalina

A ideia de que não há alternativa possível é, entretanto, apanágio dos conservadores. Eu não penso assim. Se os mecanismos habituais de regulação perderam sua validade e uma nova configuração se instaurou, as soluções também precisam ousar para além dos limites das fronteiras nacionais e se constituir a partir de uma articulação de escopo bem mais amplo.

Não é só no Brasil que o pacto de poder se desmancha. Há sinais de tensão cada vez mais intensos entre os diversos componentes do condomínio formado pelos países centrais, ainda liderados pelos Estados Unidos, mas com novos protagonistas se apresentando no cenário geopolítico mundial.

No Brasil é evidente a caducidade dos protagonistas atuantes na cena política. O governo interino cheira à naftalina, mas muitos dos que, em tese, fazem oposição a ele, poderiam ser guardados no mesmo sarcófago. A resistência dos movimentos sociais progressistas precisa estar apoiada nas questões da vida quotidiana que realmente mobilizem corações e mentes.

 

Como avançar?

Em um país urbanizado, em processo de desindustrialização, o que se pode prometer para os jovens da periferia das grandes cidades? Eles não vão voltar ao campo e espero que não aceitem os limites estreitos que se delineiam para seu futuro.

Penso que é preciso avançar sem receio de desconstruir o que já não se sustenta. É preciso também reaprender a olhar para a realidade empírica com a maior humildade possível. Reconhecer que nossa compreensão é limitada e que o dinamismo da vida não tem compromisso com nossos preconceitos.■

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