Edição 490 | 08 Agosto 2016

A barganha nas vísceras do modo brasileiro de governar

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João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves

Paulo Sergio Peres entende que a crise política instalada no país foi causada pela inabilidade de gerir o presidencialismo de coalizão. Para ele, uma estratégia inescapável

Acomodar diferentes setores e distribuir o poder para garantir a governabilidade. Essa é a tônica que tem atravessado os diferentes arranjos governamentais democráticos brasileiros. De acordo com o pesquisador e professor Paulo Sergio Peres, seja durante o período da Primeira República, seja contemporaneamente, a construção de alianças é inerente ao modo de gestão do país, mesmo com a adoção de um sistema presidencialista, multipartidário e federalista, que em tese não favoreceria esse modo de organização. “No início dos anos 1990, alguns pesquisadores levantaram dados sobre o funcionamento do Legislativo brasileiro e mostraram dados surpreendentes. Os presidentes formavam coalizões majoritárias mediante a barganha de apoio parlamentar por cargos no governo e liberação de recursos para os parlamentares levarem políticas para suas bases eleitorais”, aponta. 

Ao longo da entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Peres analisa as principais características do modelo de presidencialismo de coalizão no Brasil, tendo em perspectiva o processo histórico brasileiro e o contexto de crise política que o país vem enfrentando. 

Paulo Sergio Peres é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP, onde também realizou pós-doutorado. É especializado na política brasileira, pesquisando os partidos políticos, os sistemas partidários e as eleições. Foi professor de Ciência Política da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e da UFSCar. Atualmente é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e professor do departamento de Ciência Política, ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. 

Na próxima quinta-feira, 11-08-2016, o professor participará do debate “Presidencialismo de Coalizão: Um Modelo em Crise?”, das 17h30min às 19h na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, campus São Leopoldo da Unisinos..


Confira a entrevista.


IHU On-Line - Como compreender o chamado “presidencialismo de coalização” enquanto modelo de governo? E como esse modelo aparece ao longo da história do Brasil? 

Paulo Sergio Peres - Esse modelo deve ser compreendido no âmbito do debate acadêmico de política comparada sobre as transições de regimes autoritários para regimes democráticos, ocorrido nos anos 1970 e 1980. Quando os países autoritários transitavam para a democracia, a preocupação dos especialistas se concentrou nas possibilidades de se implementar um modelo constitucional que pudesse realmente garantir a consolidação desse regime. Nesse contexto, a atenção se voltou para o que chamamos de desenho constitucional, ou seja, a forma de organizar o poder político e a governação, o que implica o mecanismo de distribuição do poder. 

Há desenhos que concentram e desenhos que fragmentam o poder político. Países federalistas desconcentram o poder, ao contrário de países unitários. Países com poucos partidos ou um sistema bipartidário concentram o poder representativo, ao contrário de países com sistemas multipartidários. Acreditava-se que países que adotassem eleições proporcionais estimulariam justamente o multipartidarismo e que onde se adotassem eleições majoritárias havia estímulo ao bipartidarismo. Os analistas defendiam, ainda, que países com sistemas de governo parlamentarista  concentrariam o poder decisório, tornando mais fácil e eficiente a governabilidade. Isso porque, no parlamentarismo, o Executivo e o Legislativo são poderes que, na prática, estão fundidos. O chefe do Executivo é oriundo da maioria parlamentar. Com isso, a maioria parlamentar controla tanto o Legislativo como o Executivo, que agem de maneira coesa, garantindo a governabilidade. 

No presidencialismo, ao contrário, o presidente é eleito diretamente pela população, sua legitimidade não depende do Legislativo. Isso significa que pode haver um chefe de governo, um presidente, cujo partido não controla a maioria das cadeiras legislativas. Nesses casos, o presidente pode sofrer vetos do Legislativo, pois a maioria parlamentar é composta por partidos que estão na oposição ao governo. 

Dessa maneira, a governabilidade será baixa e haverá constantes tensões entre Executivo e Legislativo. Essas tensões podem provocar crises de governabilidade, que é a capacidade de o Executivo aprovar sua agenda política no Legislativo e, desse modo, governar. As crises de governabilidade podem, por sua vez, provocar crise de governo. Se a crise de governo chegar a um ponto muito elevado, pode haver crise institucional, ou seja, tensões irreconciliáveis entre Executivo e Legislativo, com necessidade de interferência do Judiciário, que pode, inclusive, levar ao agravamento da crise. Esse agravamento pode incendiar as ruas, reduzir a legitimidade dos poderes representativos, dos partidos e até do Judiciário. Nesse caso, o resultado pode ser uma crise de regime político, uma crise da própria democracia no país.

Diante disso, os analistas ficaram preocupados com o desenho constitucional que adotamos no Brasil. Nosso modelo é federalista, ou seja, os Estados têm autonomia em diversas questões e os governadores têm bastante poder dentro desse arranjo. Nosso modelo também é multipartidário com um sistema de governo presidencialista. Muitos partidos no Legislativo nacional e um presidente eleito diretamente pela população no Executivo. Esperava-se que a governabilidade seria muito baixa e que teríamos crises constantes nas relações entre o presidente e o parlamento. 

Porém, no início dos anos 1990, alguns pesquisadores levantaram dados sobre o funcionamento do Legislativo brasileiro e mostraram dados surpreendentes. O presidente tinha à sua disposição diversos mecanismos que possibilitavam que ele formasse alianças com os partidos no Legislativo e, assim, obtivesse seu apoio para aprovar sua agenda. Os presidentes formavam coalizões majoritárias mediante a barganha de apoio parlamentar por cargos no governo e liberação de recursos para os parlamentares levarem políticas para suas bases eleitorais. 

Até aquele momento, os analistas de política comparada achavam que somente em sistemas parlamentaristas multipartidários os governos formavam coalizões, afinal, sem formar uma coalizão majoritária não teria como indicar o primeiro-ministro. O multipartidarismo forçava os partidos a formarem coalizões para se construir uma maioria parlamentar nesse tipo de sistema de governo. No presidencialismo, o presidente ocuparia o cargo de qualquer maneira, mesmo sem ter apoio da maioria no parlamento, por isso os analistas acreditavam que não havia incentivos para que os presidentes formassem coalizões majoritárias em sistemas multipartidários. Mas o fato é que tanto em países parlamentaristas como presidencialistas, há incentivos para a formação de coalizões majoritárias quando existe o multipartidarismo. 

O Brasil era um caso que demonstrava isso e pesquisadores como Fernando Limongi  e Argelina Figueiredo  trouxeram uma inestimável contribuição empírica para a Ciência Política internacional quando mostraram esse fenômeno com seus dados sobre o processo legislativo no país. Sérgio Abranches , outro cientista político de grande importância nesse tipo de estudo, havia já contribuído significativamente ao identificar esse processo e ao dar o nome que acabou ficando para esse modelo de governação – presidencialismo de coalizão.

 

Resquícios da Primeira República brasileira

Pessoalmente, desconfio que o que eles perceberam era algo que já tinha aparecido de outra forma durante a Primeira República  no Brasil, chamado de política dos Estados ou política dos governadores. O mecanismo utilizado para a formação de uma coalizão majoritária em apoio ao Executivo nacional foi outro, mas a lógica era a mesma – existia um sistema multipartidário, na época, um multipartidarismo estadualizado, pois os partidos eram estaduais, em combinação com o presidencialismo. Depois de diversas tensões, inclusive violentas, entre Executivo e Legislativo nos primeiros anos da República, o governo do presidente Campos Sales  arquitetou uma estratégia de cooperação entre esses dois poderes, envolvendo o da diplomação dos parlamentares eleitos, barganhas com governadores de Estado e deputados, e a estrutura local de controle dos votos no âmbito do que foi denominado de coronelismo . 

No caso de Vargas , no Estado Novo , foi algo bem diferente, pois se tratou de um governo autoritário, sem o funcionamento dos partidos. Obviamente, ele teve que fazer alianças e composições com grupos políticos e sociais para além dos partidos, mas daí já não podemos aplicar esse termo ou essa lógica de governação a esse caso. Para isso, temos que ter um ambiente democrático ou pretensamente democrático, com o Legislativo em operação e um quadro partidário com poder de veto às políticas do Executivo.

Mesmo nos casos em que essa lógica se aplica, na Primeira República e agora, há diferenças fundamentais na dinâmica política e no ambiente institucional entre esses dois modelos de governação por coalizões legislativas em apoio ao Executivo. Por isso prefiro dizer que o que é comum em ambos os casos é a necessidade de se chegar a um acordo cooperativo entre os Poderes. Esse acordo cooperativo demanda a implementação de uma estratégia para se obter a governabilidade e a estabilidade dos presidentes. Presidencialismo de coalizão e política dos governadores ou dos Estados são duas estratégias para a consecução desses objetivos. Cada estratégia tem seus limites e seus problemas.


IHU On-Line - Quais as diferenças e semelhanças entre o presidencialismo de coalizão, popularizado no governo petista, e o pacto social, discutido nos governos de Getúlio Vargas e depois novamente após a eleição de Tancredo Neves?

Paulo Sergio Peres - As propostas de pacto social são amplas, incluem grupos da sociedade civil organizada. Quando se fala em pacto, faz-se apelo a uma grande concertação social, para além do sistema partidário. Além disso, as proposições de pacto social são raras e pontuais, surgem em momentos delicados, de grande instabilidade ou de necessidade urgente de algum tipo de unificação para o enfrentamento de grandes problemas comuns. Trata-se de transcender os muros ideológicos e partidários, trata-se de unificar o país em nome de um bem maior. 

O presidencialismo de coalizão se refere à dinâmica cotidiana de governo. Ao dia a dia das relações entre Executivo e Legislativo. Inclui apenas os partidos, de acordo com sua distribuição de forças políticas no interior dos dois Poderes representativos – o Executivo e o Legislativo. Mas há um prolongamento entre essas duas lógicas, ou seja, geralmente, quando o modelo de governabilidade falha e isso leva a uma crise maior do que a de governo, portanto uma crise institucional ou de regime político, surgem os apelos por um pacto social.


IHU On-Line - Hoje, no Brasil, o presidencialismo de coalizão está em crise? Por quê? E em que medida nos leva ao estado de crises em que nos encontramos?

Paulo Sergio Peres - Na minha avaliação, a estratégia de formação de coalizões majoritárias para governar não está em crise. Pelo contrário, ela continua sendo inescapável. Esta é uma estratégia dominante da qual não se pode escapar. Afinal, ainda temos um sistema multipartidário bastante fragmentado e articulado com a forma de governo presidencialista. Isso significa que, para governar, não há outra alternativa, é preciso formar coalizão majoritária. E não basta formar uma coalizão majoritária, é preciso saber conduzi-la habilmente.

A atual crise política, que, de uma crise de governo tornou-se rapidamente uma crise institucional, foi desencadeada justamente porque a presidenta Dilma  acreditou que, no seu segundo mandato, poderia descartar o pivô do presidencialismo de coalizão – o PMDB. Com isso, acabou abrindo espaço para o crescimento de Eduardo Cunha  e o ativismo da agenda conservadora que ele representa e que corresponde aos interesses do chamado baixo clero da Câmara dos Deputados . A isso se somou a atuação do PSDB e do DEM, que eu chamo de oposição irresponsável porque consiste em investir em ações que forçam os limites aceitáveis das regras do jogo democrático. 

O presidencialismo de coalizão é tão imperioso que, no vácuo deixado por Dilma, ele se deslocou para o presidente da Câmara dos Deputados. O que aconteceu então foi a emergência do presidencialismo de coalizão do presidente da Câmara dos Deputados. Eduardo Cunha montou uma coalizão suprapartidária que se opôs à frágil e minoritária coalizão que se manteve fiel ao governo Dilma. Em suma, o presidencialismo não está em crise e a crise é decorrente da tentativa de se governar sem o presidencialismo de coalizão. 

Agora, as bases de sustentação do presidencialismo de coalizão, que são as barganhas envolvendo a troca de votos no parlamento por cargos e outros recursos, são vistas com grande desconfiança pela população em geral. O problema é que esse tipo de negociação política é o motor da dinâmica dos governos e partidos há muito tempo e em praticamente todos os países democráticos, com graus variados, obviamente. Não é mero acaso que ao mesmo tempo em que a democracia se tornou o único regime político considerado aceitável em todo o mundo, paradoxalmente, é crescente o descontentamento popular em relação às instituições representativas.


IHU On-Line - O presidencialismo de coalizão é insuficiente para promover mudanças estruturais na sociedade? E como entender o fato de que, quando essa aliança está em crise, as conquistas e direitos sociais são o primeiro alvo?

Paulo Sergio Peres - As coalizões majoritárias, necessárias à governabilidade nos sistemas presidencialistas, acabam envolvendo diversos partidos com ideologias e agendas políticas diferentes. Algumas vezes, as coalizões são formadas com partidos cujas preferências políticas são até divergentes em algumas questões. Isso quer dizer que as coalizões garantem uma governabilidade de políticas minimamente convergentes, afastando a possibilidade de aprovação de uma agenda mais radical, envolvendo grandes reformas estruturais, por exemplo. Como é possível mexer profundamente no sistema tributário quando, mesmo um governo de esquerda, que em princípio defenderia um sistema mais justo que taxe os mais ricos, se vê obrigado a compor uma coalizão com um partido de centro-direita ou de direita? 

Alguém poderia dizer que o problema já começa quando um partido de esquerda aceita fazer aliança com um partido de direita ou centro-direita. Pode ser. Mas, se não fizer tal aliança não vai aprovar nem reforma estrutural e nem reforma pontual, pois não terá a maioria necessária para tanto. Os partidos de centro-direita e direita também representam as preferências de uma parcela da população. Eles têm poder de veto e para influenciar a agenda política do país. 

Enfim, não é o presidencialismo de coalizão que não permite reformas estruturais, mas sim a heterogeneidade de interesses sociais que se expressam no sistema partidário e que obrigam os presidentes a formar coalizões heterogêneas. As reformas que são propostas agora pelo governo interino, de teor conservador do ponto de vista moral e que atacam direitos sociais, não são o resultado da crise do presidencialismo de coalizão, mas sim o resultado da formação de uma nova coalizão formada em torno de um presidente que defende essa agenda. Formou-se uma maioria parlamentar que resulta num presidencialismo de coalizão de centro-direita, capitaneada pelos interesses que levaram ao afastamento da presidenta que, por sua vez, representava uma agenda de centro-esquerda.


IHU On-Line - Em que medida o presidencialismo de coalizão gera uma espécie de cooptação nos partidos políticos e movimentos sociais? E, a partir da história recente do Brasil, quais são as consequências, essencialmente para a ideia de esquerda?

Paulo Sergio Peres - As coalizões partidárias que se formavam e se formam não são um processo simples de cooptação. Os partidos são protagonistas nesse processo. Mesmo os partidos que não elegeram o presidente são protagonistas na formação das coalizões porque, afinal, eles controlam a maioria das cadeiras do Legislativo e isso lhes dá poder em sua relação de negociação com o presidente. Forma-se um mercado de trocas em que os agentes, os partidos, oferecem seus produtos e, assim, promovem as alianças. Em outras palavras, o presidencialismo de coalizão é, essencialmente, uma estratégia de cooperação com ganhos mútuos. É uma relação mutualista. Todos que participam desse acordo cooperativo ganham alguma coisa, em graus variados. Nem todos ficam satisfeitos, especialmente quando julgam que oferecem mais do que ganham. Por isso essa dinâmica cooperativa é permanente, exige negociação e cuidado constantes. 

Por definição, o presidencialismo de coalizão é algo que envolve os partidos na relação entre Executivo e Legislativo, o que significa que não se aplica ao apoio de movimentos sociais ao governo. Pode-se dizer que as lideranças dos movimentos sociais são cooptadas quando participam dos governos ou são contempladas com maior espaço em instâncias decisórias. Assim, por intermédio da cooptação das lideranças, o governo ganha controle indireto sobre os movimentos sociais. Mas, novamente, esse processo é mais complexo do que pode parecer à primeira vista, pois também há protagonismo das lideranças e dos movimentos sociais na relação de cooptação. Quero dizer, lideranças e movimentos sociais ganham alguma coisa quando apoiam o governo. 

As consequências disso para a esquerda, no caso da coalizão partidária em apoio ao presidente, é que essas alianças incluem partidos que se enquadram em alinhamentos ideológicos ou programáticos muitas vezes distantes, o que impede a implantação de uma agenda mais radical de reformas. Partidos de esquerda que precisam contar com o apoio de partidos de centro, centro-direita e até direita terão que abrir mão de grande parte de sua agenda de reformas mais estruturais. A heterogeneidade de interesses do país e a posição do eleitorado, majoritariamente de centro-direita, demanda que se formem governos com maior grau de moderação, mais inclinados a manter o status quo. 

Mais recentemente, vem se formando uma aliança social e, mais claramente, partidária de centro-direita em questões econômicas e de direita em questões morais. Partidos que se encontravam mais próximos do centro, como o PMDB e o PSDB, nos últimos anos se aproximaram desse estrato social e partidário tentando fazer com que o pêndulo da disputa bipolarizada entre petistas e tucanos pendesse para o lado dos tucanos e de parcelas expressivas do PMDB. 

Em resumo, o modelo de coalizão majoritária necessário à governabilidade no Brasil, diante do quadro multipartidário fragmentado, coloca sérios obstáculos às reformas mais esquerdistas. No caso de uma reforma política que leva à implantação do parlamentarismo, esse quadro pioraria, pois o presidente seria sempre eleito indiretamente pela maioria parlamentar. Se analisarmos a distribuição das cadeiras no Legislativo desde a redemocratização, perceberemos que seriam formadas maiorias de centro-direita muito facilmente, levando a governos desse perfil ideológico e partidário. Certamente, a esquerda nunca teria chegado à presidência, como conseguiu chegar por quatro vezes consecutivas em virtude do voto popular. 


IHU On-Line - Como compreender o lugar da oposição na Política Nacional? E como essa oposição se configura num cenário de coalizão? Em que medida esse é um lugar essencialmente da esquerda?

Paulo Sergio Peres - O fato é que no presidencialismo de coalizão o presidente tem que compor uma aliança partidária majoritária, relegando à oposição a função de coadjuvante sem muito poder de veto. Isso ocorreu até o segundo mandato de Dilma. A oposição não tinha como fazer oposição efetiva à agenda do governo no Legislativo. Cabia-lhe apenas fazer críticas, denúncias, tentar impor CPIs, adiar tramitações de projetos, criar uma série de obstáculos nas votações e no processo legislativo. Tudo isso sem muita eficácia real. Em último caso, a oposição podia judicializar a política, levando ao STF demandas contra o governo, alegando que havia qualquer violação à constituição. 

O processo todo ficou bastante complexo quando a maior oposição ao governo, uma oposição que se tornou efetiva enquanto tal, veio de dentro do próprio governo. A perda de controle sobre a base partidária da coalizão governamental fez com que a oposição se tornasse majoritária. Daí, quem ficou impotente foi o governo. Inclusivamente, a crise política desencadeada por essa inversão da coalizão majoritária, do governo para a oposição, tanto a oposição formal como a oposição interna ao governo, mostrou que, ao contrário do que se supunha há alguns anos, o presidencialismo brasileiro não atribui poderes imperiais ao presidente, ele não tem tanto controle assim sobre o Legislativo. O presidente tem poder de agenda e tem controle sobre o processo legislativo se contar com uma coalizão majoritária no parlamento, em caso contrário, o ator mais forte nessa relação é o Legislativo. 

Esse deslocamento da maioria legislativa nesse processo de mudança do presidente que controla o presidencialismo de coalizão, passando da presidenta da República para o presidente da Câmara dos Deputados, deu poder à oposição exercida pelo PSDB e o DEM, que já estavam meio perdidos depois de tantos anos do governo PT e de mostrarem que não eram animais bem adaptados ao ambiente oposicionista. O PT e as esquerdas, por sua vez, consolidaram-se enquanto organizações partidárias no ambiente oposicionista. Demoraram para chegar ao poder. Por isso ficamos com a impressão de que fazer oposição é uma função mais bem executada pelos partidos de esquerda, uma vez que são muito críticos e combativos. Porém, acredito que os governos do PT mostraram que partidos de esquerda também podem ser governo. Claro que para ser governo num ambiente político que exige coalizões heterogêneas, esses partidos pagam um preço bastante alto, que é aprender a jogar da mesma forma como jogam seus adversários e a fazer determinadas políticas que descontentam seu eleitorado mais fiel. 


IHU On-Line - Uma pauta já presente nas manifestações de 2013 e que volta à tona com o processo de impeachment e o cenário da Operação Lava Jato é a reforma política. Mas, na sua opinião, que reforma política se precisa?

Paulo Sergio Peres - Sou bastante cético em relação à reforma política quando ela é considerada uma espécie de elixir capaz de resolver todos os nossos problemas. Costumo dizer que a Ciência Política é uma ciência que estuda os paradoxos envolvidos naquilo que a sabedoria popular chamaria de dilema do cobertor curto. Ou seja, lidamos com o fato de que para cobrir os pés descobriremos a cabeça e vice-versa. A política envolve a seguinte escolha: com qual problema aceitamos conviver? Portanto, temos que discutir a reforma política partindo de um ponto que deve ficar claro, qual seja, não há modelo político perfeito que seja capaz de resolver todos os problemas sem criar outros. Se adotarmos o parlamentarismo, como já disse antes, teríamos outros problemas, talvez até piores. Sendo o PMDB um partido tão forte no parlamento, já poderíamos imaginar quem teria sido primeiro-ministro antes e até quem seria o primeiro-ministro agora. Se adotarmos o voto majoritário simples ou o sistema misto [parte majoritário e parte proporcional] para o parlamento, resolveremos alguns problemas e criaremos outros. 

Outro ponto que devemos ter bem claro é que não é verdade que não fazemos reformas política. Fizemos e continuamos a fazer várias reformas, pequenas e médias. A cada nova eleição temos algumas regras novas. Vamos lembrar que, desde os anos 1990 tivemos um plebiscito sobre a forma de governo [república ou monarquia], o sistema de governo [presidencialismo ou parlamentarismo], tivemos a implantação da reeleição, agora vamos testar uma mudança importante no financiamento das campanhas. De qualquer modo, um aspecto do processo político-eleitoral que é um problema crescente em todas as democracias e aqui não é diferente, muito pelo contrário, está ligado diretamente com grande parte da corrupção envolvendo partidos, burocracia estatal e empresas, é a influência do dinheiro na política. Esse é um aspecto crucial. Isso mina as bases do regime democrático. Isso faz com que exista uma separação entre duas coisas que estiveram juntas até então, o poder e o governo. Até há algum tempo, já faz algum tempo, é verdade, o poder estava com o governo. Hoje, o poder não está com o governo. Está com os mercados, com as grandes empresas. Mas os mercados e as corporações não são atores democráticos, não são eleitos. Sequer prestam contas. Na verdade, eles têm o poder e ainda controlam os governos justamente porque o poder está com eles. 

Outro aspecto importante que poderia contribuir bastante para uma mudança estrutural no exercício da cidadania é a educação política. Penso que deveríamos ensinar Ciência política nas escolas, como parte do currículo básico obrigatório. Sei que alguns dirão que isso já faz parte do ensino da Sociologia, mas não se trata da Ciência Política que penso que deveria ser ensinada. Deveria haver a alfabetização política no sentido de se ensinar como funciona o sistema político do país. No prazo de alguns poucos anos teríamos cidadãos realmente mais sintonizados com a dinâmica política. Como o voto é transformado em representação? O que significa um regime presidencialista? O que é representação proporcional? Quais as atribuições dos Poderes Executivos nas esferas municipal, estadual e federal? Quais as atribuições dos parlamentares nesses três níveis de representação? O que é e como se distribui o orçamento? Como atuam os partidos nas eleições e no governo? Enfim, como funciona o sistema político brasileiro? Conhecer essas coisas faz uma diferença substantiva no exercício da cidadania.  


IHU On-Line - Como avalia os movimentos do governo interino de Michel Temer? Em que medida reedita um tipo de coalizão?

Paulo Sergio Peres - Temer é o resultado de um movimento golpista que violou princípios constitucionais relativos à forma de governo presidencialista. No presidencialismo, não se pode remover um presidente porque a maioria do Legislativo quer colocar outra pessoa no cargo. Quem elege o presidente é o voto popular e só ele pode remover o governo na próxima eleição. Voto de confiança só existe no parlamentarismo. Para não parecer um golpe, os partidos que querem retirar Dilma do poder apelam para a observância das formalidades do processo e recorrem de maneira indevida ao impeachment. 

Então, o governo Temer já começa sem legitimidade, porque é resultado de um procedimento altamente contestável. Temer também começa o governo sem legitimidade porque é, pelo menos até o momento, um ficha suja. Ele foi condenado pela justiça eleitoral e está inelegível. Um absurdo, na verdade, pois assume a presidência um político que sequer pode ser candidato na próxima eleição porque tem condenação na justiça. Ele também assumiu sem legitimidade porque fez os mesmos procedimentos, chamados de pedaladas fiscais, que levaram ao afastamento de Dilma. 

Mas, como é que, mesmo assim, ele conseguiu assumir o governo e ter o apoio da maioria do parlamento? Ocorre que Temer representa essa nova maioria que se formou contra o governo Dilma, em alguma medida, contra as investigações da Lava Jato, como ficou demonstrado nas gravações divulgadas contendo declarações de Romero Jucá nesse sentido. Essa nova maioria também tem uma agenda política que dificilmente seria implementada por um partido de esquerda ou mesmo de centro-esquerda. Existe uma agenda política que avançará sobre direitos, especialmente direitos de reconhecimento conquistado por minorias, direitos sociais e trabalhistas. Trata-se de uma agenda que abrange os recursos do pré-sal e também da política internacional do país, que voltará a se alinhar de maneira direta e submissa aos Estados Unidos. A participação do Brasil nos Brics  está ameaçada. 

Temos uma coalizão de centro-direita, com uma agenda que deverá enfrentar resistências de grande parte da sociedade civil organizada. O governo Temer, caso se torne permanente, terá dificuldades. De qualquer modo, nossa democracia já foi seriamente arranhada.


IHU On-Line - Como tem observado os movimentos de coalizão na América Latina e seus desdobramentos?

Paulo Sergio Peres - Na América Latina começa uma onda de retorno de governos e coalizões de centro-direita. Há pouco ocorreu na Argentina. A Venezuela está com grandes dificuldades e os desdobramentos políticos desse cenário no país ainda são incertos. Na Bolívia, apesar da estabilidade e dos avanços sociais, pode ocorrer algo parecido nos próximos anos. No Chile, há dificuldades ameaçando o governo de centro-esquerda. Enfim, tudo indica que os Estados Unidos resolveram retomar o controle da região e estão incentivando de diversas maneiras, diretas e indiretas, uma nova onda liberalizante no sentido econômico nos países que ficaram durante alguns anos a cargo de governos de esquerda ou centro-esquerda.


IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Paulo Sergio Peres - Estamos vivendo um período em que temos que refinar nossos instrumentos de análise e redobrar nossa atenção com o que está ocorrendo na política do país. Temos que repensar nosso conceito de golpe político, porque hoje eles podem acontecer sem tanques nas ruas, fechamento do Congresso e tomada do governo pelos militares. Eles podem ocorrer sob a liderança do parlamento, em alguns casos do Executivo, em alguns casos com a anuência do Judiciário. Eles podem ocorrer dentro da democracia, o que parecia um despropósito. Podemos sim ter golpes políticos dentro da democracia e a democracia, em alguns de seus elementos, continuar em funcionamento depois do golpe. Podemos ter golpes que derrubam os governos e golpes que são dados pelos governos para prolongar seus mandatos. 

Desde a chamada “terceira onda” democrática, já foram removidos do poder cerca de 16 presidentes latino-americanos. É um número muito elevado. Algo está acontecendo. Alguns começam a achar que a culpa é da forma de governo presidencialista. Eu duvido disso. Acho que se esses países fossem parlamentaristas a situação de instabilidade e queda dos governos poderia ser igual ou até pior. Há uma tradição golpista na região, seja da esquerda ou da direita, incentivada e utilizada habilmente pela política externa norte-americana. Enquanto houver essa ingerência de outro país na região, enquanto houver essa tradição golpista, teremos arranhões o tempo todo na democracia. 

Nesse contexto, temos que repensar o instrumento do impeachment. Ele não pode ser um julgamento jurídico e político, porque o que acaba acontecendo é que ele se transforma apenas num julgamento político. Ou seja, se o presidente controla a maioria legislativa, ele pode ter cometido crimes de responsabilidade que não será afastado; mas se o presidente não controlar a maioria parlamentar, será afastado mesmo que não tenha cometido crime de responsabilidade. Para evitar essa distorção, temos que fazer com que o impeachment seja um processo apenas jurídico. Mas isso nos leva a ter que discutir a estrutura e atuação do Poder Judiciário. 

Temos que discutir isso porque esse Poder é cada vez mais importante, mais indispensável, e pode incorrer em abusos. Tudo isso mostra que estamos num momento em que está clara a necessidade de analisarmos criticamente e de maneira equilibrada a democracia, o presidencialismo e os Poderes da República. Como venho dizendo, eu e meus colegas vivemos um grande paradoxo, pois ao mesmo tempo em que temos uma grave crise política que retorce as bases institucionais da nossa democracia, nunca foi tão interessante ser cientista político no país como agora. Mas, como eu já disse antes, por dever profissional e vocação, lidamos mesmo com paradoxos.■

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