Edição 489 | 18 Julho 2016

A transcendência de Madalena: múltiplas faces no espírito dos tempos

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João Vitor Santos | Edição Leslie Chaves | Tradução Vanise Dresch

Para Régis Burnet, ao longo da tradição Cristã os sentidos atribuídos à figura de Maria Madalena são diversos, mas acabam evidenciando um ponto, a marca de sua presença feminina

Diferentes perspectivas, intencionalidades e modos de ver a trajetória de Jesus resultaram em um painel multifacetado de interpretações não só sobre os atos desse importante personagem da história da humanidade, mas também acerca das figuras que de algum modo experienciaram diretamente a convivência com Cristo ou se debruçaram no legado deixado por ele. Uma dessas personalidades que fazem parte da construção da narrativa cristã é Maria Madalena, a quem foram atribuídos traços e perfis que ainda continuam em processo de recriação constante, revelando pistas sobre os diferentes tempos e sociedades em que foram idealizados. Entretanto, um ponto é pacífico dentro dessa multiplicidade de conotações: a força da presença dessa mulher, que atravessa as épocas e se mantém vívida. 

Conforme nos chama a atenção o filósofo e doutor em Ciências Religiosas Régis Burnet, “a memória de Madalena nunca morreu, como demonstra a moda do uso do seu nome, que a lembra em todas as línguas: Madeleine, Magdeleine, Maddalena, Magdelen etc.”. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o professor e pesquisador alerta que “mesmo que nossa modernidade tenha a impressão de que "faltam mulheres" no Novo Testamento, constatamos que Jesus dá a elas um lugar que não possuíam nos outros contextos religiosos (seja nos textos do paganismo, seja nos do judaísmo, por exemplo)”. 

Para Burnet, independente das interpretações que se possa fazer acerca de Madalena, se sobressai a importância da figura feminina, apesar dos obstáculos e tentativas de apagamento. Bergoglio, ao resgatar a memória dessa personagem bíblica, atualiza esse debate na sociedade e no clero. “O gesto do Papa me parece ser uma maneira, talvez, de reconhecer o lugar surpreendente (para a época) que as mulheres ocupavam junto de Jesus, mas, sobretudo, um apelo a um maior reconhecimento delas na Igreja de hoje”, frisa. 

Régis Burnet é graduado em Filosofia pela Universidade Pierre Mendes-France e doutor em Ciências Religiosas pela École Pratique des Hautes Études, em Paris. É especializado em história do cristianismo e atualmente é professor de Novo Testamento na Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Entre suas publicações mais importantes destacam-se Paroles de la Bible (Paris: Seuil, 2011), L’Évangile de la trahison, une biographie de Judas (Paris: Seuil, 2008), Marie-Madeleine. De la pécheresse repentie à l'épouse de Jésus (Paris: Cerf, 2008) (2ª edição) e Le Nouveau Testament (Que Sais-Je?) (Paris: PUF, 2004).

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Com base nos relatos evangélicos, quem é Maria Madalena? Quais as semelhanças e distinções nas representações feitas pelos três Evangelhos sinóticos e por João? 

Régis Burnet - Em primeiro lugar, é importante compreender que certos traços que atribuímos a Maria Madalena pertencem, na verdade, a vários personagens dos Evangelhos. O fato de ela ser uma pecadora perdoada provém do episódio da ceia na casa de Simão, o Fariseu, presente somente em Lucas . Da mesma maneira, o fato de ela ser irmã de Marta e de Maria provém de uma analogia com Maria de Betânia  (que é, de fato, a irmã de Marta e Lázaro). Essa confusão pode ter ocorrido porque as duas têm o mesmo nome (Maria), mas também por causa do seu gesto (uma unção com óleo perfumado durante a ceia). Porém, nada indica que Maria possa ter sido uma pecadora e que possa ter espalhado seu perfume fora de casa.

Maria de Magdala aparece, de fato, muito pouco. Está presente em Lucas, entre as mulheres que seguem Jesus, e nos Evangelhos Sinóticos , na crucificação, no sepultamento e, é claro, na aparição do Ressuscitado, junto ao túmulo.


IHU On-Line - O que se sabe de Madalena antes do encontro com Cristo? Como compreender a história de possessão pelos sete demônios? E qual terá sido seu destino depois da crucificação?

Régis Burnet - Realmente não se sabe muita coisa! Podemos apenas supor que ela era originária da cidade de Magdala, um povoado muito próspero, à beira do lago Tiberíades, graças à pesca e à salga de peixes. As escavações arqueológicas revelaram verdadeiras pequenas fábricas pesqueiras. Além disso, Maria faz parte de um círculo de mulheres bastante ricas que ajudavam o grupo dos discípulos com seu dinheiro.

A menção feita por Lucas à possessão pelos sete demônios  nos depara com a questão, difícil para a modernidade, da interpretação da presença dos demônios na Bíblia. De fato, nossa época científica tem dificuldade de acreditar nos casos de possessão pelos demônios e na demonologia. Para propor uma explicação, podemos destacar que, na Antiguidade, a presença de demônios não está associada ao que chamaríamos de "possessão", no sentido de invasão de um indivíduo pelo princípio do mal, e sim a enfermidades. De fato, doenças mentais (esquizofrenia, depressão, melancolia etc.) ou físicas (paralisias, epilepsia) foram muitas vezes associadas aos demônios. Não saberíamos dizer mais do que isso.

Também não se sabe muito mais sobre o fim da vida de Maria de Magdala, depois da Ressurreição. Na verdade, a viagem para a França pertence à lenda tardia, uma vez que isso não é mencionado nos textos antes do século XII.


IHU On-Line - Qual era o papel de Madalena no movimento de Jesus? O que ela representava ao grupo?

Régis Burnet - É muito difícil responder a essa pergunta. Aparentemente, como dissemos, ela era uma das mulheres afortunadas que ajudavam Jesus com seu dinheiro. De certa forma, eram as "mecenas" do grupo. O episódio da aparição no jardim  leva à compreensão de que ela era próxima de Jesus, o que parecem confirmar os textos apócrifos . Mas trata-se de escritos tardios e muitas vezes polêmicos contra os apóstolos masculinos. Quanto a uma possível história de amor entre ela e Jesus, as especulações não remontam a um período anterior ao século XIX e são muito hipotéticas.


IHU On-Line - Como compreender a figura de Maria Madalena no contexto histórico da época? E como interpretar a construção que se faz dela “de pecadora arrependida a esposa de Jesus”?

Régis Burnet - É muito difícil avaliar o lugar exato que a mulher ocupava na sociedade antiga. Na verdade, precisamos entender que não existe uma única cultura na Antiguidade, mas um número muito grande de realidades radicalmente diversas. Os papiros do Egito nos mostram ricas negociantes que administram com mãos hábeis os negócios de seus falecidos maridos; historiadores cultivam a lembrança de imperatrizes ou mulheres da corte poderosas; os romanos nos mostram como as moças podiam exercer poder sobre o coração dos jovens; as mulheres dos comerciantes de Palmira também eram representadas em seus túmulos, como seus maridos. Mas como saber de que modo viviam as camponesas do delta do Nilo, as gaulesas de Narbonne ou as judias das margens do Tiberíades? Não sabemos.

No século II, Hipólito de Roma  não hesita em glorificar Maria de Magdala e reler o episódio da manhã de Páscoa à luz do Cântico dos Cânticos  e do relato do Gênesis . Buscando o bem-amado, ela nada mais é que a nova Eva em um novo jardim. Isso abre um grande espaço para Maria, mas seria em nome de uma revalorização da feminilidade ou seria mais o gosto por uma leitura simbólica dos textos bíblicos?

Quando Gregório Magno  (ou Gregório, o Grande) combina as três figuras a que nos referimos (Maria de Magdala, Maria de Betânia e a Pecadora), na virada do século VI, não é tanto por se tratar de mulheres. O que interessa ao Papa é a construção de uma figura de perdão naquele momento em que a Igreja está dilacerada por divisões. A pecadora é a melhor amiga de Jesus: que imagem de perdão poderia ser mais bela para propor aos fiéis?


IHU On-Line - Quem são as mulheres da vida de Jesus e qual o papel de cada uma na vida de Cristo e nos primórdios do cristianismo?

Régis Burnet - Mesmo que nossa modernidade tenha a impressão de que "faltam mulheres" no Novo Testamento, constatamos que Jesus dá a elas um lugar que não possuíam nos outros contextos religiosos (seja nos textos do paganismo ou do judaísmo, por exemplo). 

Primeiramente, há o círculo íntimo, da família ou dos amigos. Encontramos ali, é claro, sua mãe, que parece tê-lo acompanhado durante uma parte de sua vida (pelo menos, na última Páscoa em Jerusalém ). Há também as mulheres de sua família: as "Santas Mulheres" parecem, de fato, ser suas tias ou primas. A esse círculo íntimo, podemos acrescentar as mulheres amigas, como as da família de Lázaro, Marta e Maria, cuja casa servia de etapa no caminho para Jerusalém. 

Além disso, há o círculo de mulheres que o acompanhavam e lhe prestavam assistência com suas doações pecuniárias: não só Maria de Magdala, mas também Joana, mulher de Cuza . Elas parecem ter o papel de se encarregarem da intendência, o que teria feito com que a existência do movimento de Jesus fosse possível graças às mulheres. 

E depois, todas aquelas mulheres encontradas pelo caminho que Jesus tratou como iguais, contrariando os costumes – isso é reconhecido pelos textos em vários momentos: mulheres pecadoras com as quais ele aceita falar; mulheres enfermas consideradas impuras em quem aceita tocar para curá-las etc.


IHU On-Line - Como avalia a construção feita à figura de Madalena pela Igreja ao longo da história, tendo sempre muito forte a imagem da pecadora arrependida, mas também de apóstola dos apóstolos?

Régis Burnet - A história da figura de Madalena passou por muitas metamorfoses e nem sempre foi aquela de uma "mulher forte". Certamente, no final da Antiguidade, a Madalena que triunfa é a mais heroica. Assimilada a ilustres "prostitutas convertidas", como Maria, a Egípcia, a tendência foi torná-la uma asceta um pouco sobre-humana, alimentando-se de tâmaras no deserto. Encontra-se essa representação durante os séculos XII e XIII, na Maria Madalena venerada em Vezelay, França. Na verdade, era a Madalena dos príncipes, dos papas, dos cruzados. 

Mas é bem diferente a santa muito mais popular da [gruta de] Sainte-Baume. Na coletânea dos milagres  compilada por um dos priores da Sainte-Baume, Jean Gobi l'Ancien , descobrimos que são as mulheres solteiras que recorrem a ela, miseráveis a quem a santa alivia da gravidez difícil, camponesas cujos filhos ela cura... Maria Madalena torna-se uma figura protetora, um recurso para os casos desesperados, muito mais próxima do povo do que a austera penitente.

Em outras épocas, encontramos uma figura muito mais opressiva. Madalena serviu de "padroeira" para uma série de instituições encarregadas de cuidar de mães solteiras e que costumavam se transformar em prisões. O filme Magdalen sisters ilustra essa prática ainda na metade do século XX. 


IHU On-Line - Em que medida a “história da construção da figura” de Madalena se atualiza em outras mulheres da Igreja?

Régis Burnet - Nenhuma mulher teve tantas figuras e representações na história da Igreja; por isso, Madalena serviu de modelo para muitas mulheres. Muitas religiosas imitaram a pecadora convertida que terminou sua vida no silêncio e na austeridade de um deserto. Madalena também assumiu traços que encontramos atualmente na piedade mariana, sobretudo em seu papel materno e de assistência aos mais pobres.


IHU On-Line - Judas é tido como o apóstolo traidor, e Pedro, o que negou Cristo. No entanto, a tradição cristã parece minimizar essa face desses apóstolos, enquanto Madalena segue sempre com a imagem da pecadora voluptuosa, envolta em malícias e mistérios. Por que isso ocorre? Como compreender a questão de fundo dessa perspectiva?

Régis Burnet - O que você descreve é uma tendência geral da história da humanidade. De fato, ao longo da história, constatamos que os grandes personagens costumam ser simplificados para se tornarem heróis resumidos em um único traço. Isso funciona tanto para personagens literários quanto para personagens históricos. 

No mundo grego, Aquiles era a imagem da força guerreira, com toda a sua grandeza e todos os seus excessos; Ulisses era a astúcia e a sagacidade. Os historiadores gregos e romanos não ficaram atrás quando "construíram" a figura de Alexandre, o Grande, como o jovem herói fundador de uma civilização, ou de Nero como imperador cruel. E nós, modernos, não escapamos dessa propensão. Não tendemos a fazer de Martin Luther King  ou de Gandhi  os heróis da paz e da não violência, deixando de lado o caráter profundamente político do combate deles? Não tendemos a fazer de Simón Bolívar  a própria figura do libertador, sem vermos os lados eminentemente parciais e problemáticos dessa "libertação"? A ver em Hitler  a encarnação do mal absoluto, a ponto de subestimarmos todo o sistema administrativo e político que permitiu sua ação? 


IHU On-Line - Quais as semelhanças e distinções nas experiências de Paulo e Madalena no exercício da evangelização? Como compreender o papel de cada um no cristianismo primitivo e nos dias de hoje?

Régis Burnet - As duas experiências não têm absolutamente nada a ver uma com a outra! Na verdade, a experiência evangelizadora de Paulo é perfeitamente histórica e bem conhecida pelos escritos do próprio Apóstolo, que a descreve ao longo de suas cartas. Em compensação, a evangelização da Provença (região do sul da França) por Maria Madalena é lenda, uma lenda até mesmo tardia, uma vez que o relato de sua atividade remonta ao século XIII. Aliás, essa lenda mistura elementos estereotipados da vida de santos (a conversão de reis e rainhas, a fundação de bispados) com narrativas claramente mais fantasiosas (como o combate de sua irmã, Marta, com a tarasca , uma espécie de dragão). Portanto, não podemos comparar.


IHU On-Line - Em que medida é possível afirmar que a Igreja hoje faz um resgate à memória de Madalena? Como compreender a ação do Papa Francisco ao elevar à festa o dia dedicado a ela na liturgia católica? (seria a abertura de espaços para a mulher de hoje? Ou é mais um reconhecimento histórico, o papel dessa mulher no seu contexto?)

Régis Burnet - Penso que a memória de Madalena nunca morreu, como demonstra a moda do uso do seu nome, que a lembra em todas as línguas: Madeleine, Magdeleine, Maddalena, Magdelen etc. Na França, os locais de culto de Vezelay e Sainte-Baume continuam sendo muito frequentados. O gesto do Papa me parece ser uma maneira, talvez, de reconhecer o lugar surpreendente (para a época) que as mulheres ocupavam junto de Jesus, mas, sobretudo, um apelo a um maior reconhecimento delas na Igreja de hoje. Esse gesto muito contemporâneo é feito com fidelidade à tradição. De fato, ao propor o título de apóstola dos apóstolos, Francisco resgata uma maneira antiguíssima de designá-la, uma vez que remonta a Hipólito de Roma, de quem falamos. E o título apostola apostolorum está presente nas mais antigas liturgias dedicadas à Santa.■

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