Edição 489 | 18 Julho 2016

Pregadora de uma nova fé e em pé de igualdade com os outros apóstolos

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João Vitor Santos | Edição Márcia Junges | Tradução Walter O. Schlupp

Solteira e vinda de uma família abastada, Maria Madalena é tida como uma das únicas a testemunhar a ressurreição de Cristo. Para Katherine L. Jansen, é motivo de alegria que o Papa Francisco tenha elevado seu dia ao quilate dos demais apóstolos


Talvez uma das únicas testemunhas da ressurreição de Jesus Cristo, Maria Madalena “foi a primeira a ver o Cristo ressuscitado e a primeira a relatar esse evento para os/as demais”, afirma a teóloga Katherine L. Jansen, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Especula-se que ela foi uma “das primeiras e uma dedicada discípula de Cristo, que apoiou financeiramente o seu ministério”.

A pesquisadora adverte que “não se deve cometer o erro de pensar que Maria Madalena fosse quer símbolo do pecado, quer símbolo de evangelização. Ela era pecadora antes de sua conversão, mas depois da Ascensão de Cristo, foi pregadora da nova fé”. Antes de Cristo nada se sabe acerca da vida de Maria de Madalena, “exceto que ela parece ter vindo de uma família relativamente abastada e que ela era solteira. Seu status econômico é indicado pelo fato de o Novo Testamento nos dizer que ela e as outras mulheres que seguiam Cristo lhe serviam com seus próprios recursos.” Jansen, cuja pesquisa fundamental é centrada em Maria Madalena, comemora que sua figura esteja, finalmente, “recebendo o devido reconhecimento, na Igreja moderna, ao menos na liturgia”. E acrescenta: “Estou muito contente em ver que o papa Francisco elevou o dia em que se festeja Maria Madalena de um dia memorial para um dia festivo em pé de igualdade com os outros apóstolos”.

Katherine L. Jansen leciona no Departamento de História da Universidade Católica da América, em Washington, nos Estados Unidos. É Ph.D. pela Universidade de Princeton, especialista em Itália Medieval, gênero e mulheres da era medieval, religião e história cultural. É autora de Medieval Italy: Texts in Translation (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2009), coeditado com Joanna Drell e Frances Andrews, e de The Making of the Magdalen: Preaching and Popular Devotion in the Later Middle Ages (Princeton: Princeton University Press, 2000).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Com base nos relatos evangélicos, quem foi Maria Madalena? Quais as semelhanças e distinções nos relatos de Marcos, Mateus, Lucas e João?

Katherine L. Jansen - Os quatro Evangelhos contêm apenas doze referências a Maria Madalena, das quais apenas uma é independente da narrativa da Paixão. Lucas 8, 2-3 relata que ela era a mulher de quem Jesus expulsou sete demônios. Depois disso, ela se tornou um dos seus discípulos estáveis, contribuindo para ele com seus próprios recursos financeiros.

Nas narrativas da paixão, ela é uma, talvez a única testemunha da ressurreição de Cristo. No evangelho de Marcos 16, 9-10, ela é uma das três Marias a chegarem ao sepulcro na manhã de Páscoa e encontrá-lo vazio. Um anjo informa às mulheres que Cristo ressuscitou. Maria Madalena, no entanto, foi a primeira a ver o Cristo ressuscitado e a primeira a relatar esse evento para os/as demais.

Na versão de Mateus sobre os mesmos eventos (Mt 28, 1-10), ela e outra Maria visitam o túmulo e ambas ao mesmo tempo testemunham o Cristo ressuscitado. Ambas são encarregadas pelo anjo de espalhar a Boa Nova de que Jesus ressuscitou.

Uma das primeiras discípulas

Na versão de João (20, 1-18), a ênfase é totalmente diferente. Maria chega ao lado da sepultura, encontra o túmulo vazio e começa a chorar. Ao invés de interagir apenas com um anjo, também lhe é concedido o privilégio pascal de interagir com o próprio Cristo ressurreto. Ele pronuncia o nome dela e ela acorre, chamando-o de "Mestre". Embora Jesus rejeite seu toque, ele pessoalmente a encarrega de levar a boa notícia da sua ressurreição aos outros discípulos.

Então, com base nessas poucas passagens, que podemos reconstruir sobre a personagem Maria de Magdala? Podemos dizer que foi uma das primeiras e uma dedicada discípula de Cristo, que apoiou financeiramente o seu ministério. Podemos dizer que ela provavelmente sofria de algum mal (físico ou espiritual) que Cristo curou. Mais significativamente, podemos dizer que ela foi a primeira (ou uma das primeiras) testemunhas da ressurreição de Cristo, à qual foi concedido o privilégio ímpar entre os apóstolos de anunciar a Boa Nova para o mundo, como a "apóstola do[s] apóstolo[s]".

 

IHU On-Line - Como compreender a construção que se faz dessa personagem na Idade Média?

Katherine L. Jansen - Logo no início da Idade Média, a personagem do evangelho Maria Madalena foi totalmente transformada pelo Papa Gregório I , também conhecido como Gregório Magno. Em 591 ele pregou um sermão que amalgamou a personagem do evangelho com outras mulheres mencionadas no Novo Testamento, incluindo a anônima mulher pecadora do evangelho de Lucas (7,36-50), que entra na casa do fariseu onde Jesus está descansando, lava seus pés com suas lágrimas e os seca com seus cabelos. E ele vai além: também sugeriu que no caso de Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro, se tratava da mesma pessoa (João 11,1-45 e 12,1-8).

Embora não possamos saber definitivamente por que o Papa Gregório criou essa nova santa, o mais provável é que ele estava tentando harmonizar os relatos dos Evangelhos. O evangelho de Lucas menciona em rápida sucessão a pecadora anônima e Maria Madalena, de quem Cristo expulsara sete demônios. Além disso, uma passagem em João (11,1-2) observa que a mulher que tinha ungido Cristo e enxugara seus pés com os cabelos se chamava Maria de Betânia. Daí se pode ver como era tentador para Gregório considerar todas essas díspares figuras como uma só.

O legado que essa "amálgama" deixou para a posteridade foi que agora Maria Madalena, além de ser devotada discípula de Cristo e sua apóstola para os apóstolos, passou a ser considerada uma pecadora.

 

IHU On-Line - Qual o papel da mulher entre os cristãos primitivos e como esse papel se transforma a partir da Idade Média, período que condenou a sexualidade feminina e pregação das mulheres?

Katherine L. Jansen - Esta é uma questão formidável, que não pode ser respondida plenamente em algumas poucas frases. Além disso, acho que a caracterização da Idade Média é demasiado esquemática. Eu diria que, nos primórdios da Igreja, temos algumas evidências de que as mulheres desempenhavam papéis de liderança. Maria Madalena, juntamente com uma série de outras mulheres, estava entre os primeiros discípulos. Como mencionei anteriormente, ela também foi privilegiada entre os apóstolos, tendo-lhe sido concedida a primeira visão do Cristo ressuscitado e o mandato de espalhar a Boa Nova para os outros. Na geração seguinte, sabemos que São Paulo tinha confiado uma de suas cartas, a carta aos Romanos (Rm 1-2), a Febe, diaconisa da igreja de Cencreia. Uma diaconisa mulher indica que ainda não tinha aparecido uma hierarquia rígida de gênero a estruturar a igreja institucional. Textos cristãos também indicam que Paulo pode ter tido uma seguidora do sexo feminino, uma ajudante de nome Tecla. 

Na Antiguidade tardia, no entanto, essas posições de autoridade [feminina] na igreja tinham desaparecido, porque se argumentou que a autoridade apostólica foi transmitida de São Pedro através dos bispos, nenhum dos quais era mulher. Existe, no entanto, um retrato do século IX em mosaico maravilhosamente enigmático na igreja de Santa Prassede, em Roma. Na capela de San Zeno, uma mulher chamada Theodora  é identificada como "Epíscopa", forma feminina de epíscopo/bispo.

 

IHU On-Line - Como compreender a relação entre política e santidade no sul da França e Itália a partir da história de Maria Madalena? A que se atribui a histórica devoção de leigos a Madalena nessa região? E como passa de pecadora a símbolo de conversão e evangelização?

Katherine L. Jansen - Não se deve cometer o erro de pensar que Maria Madalena fosse quer símbolo do pecado, quer símbolo de evangelização. Ela era pecadora antes de sua conversão, mas depois da Ascensão de Cristo, foi pregadora da nova fé. No que tange a seu "apostolado" na França, trata-se de uma história interessante, porém fantasiosa. Ela emerge no século XI, quando cidades ansiosas por não terem seu próprio santo padroeiro, começam a associar-se a personagens do Novo Testamento. Pense na lenda de São Tiago de Compostela , por exemplo. Foi nessa mesma época em que Compostela foi tramando sua lenda de São Tiago arribando na costa espanhola, que se fez o mesmo no sul da França. No século XI, provavelmente em conjunto com o desenvolvimento do culto de Maria Madalena em Vézelay, começou a circular no Ocidente uma lenda segundo a qual Maria Madalena, sua irmã Marta e o irmão Lázaro, juntamente com 72 discípulos, foram jogados num barco sem leme na Palestina e largados à deriva no mar. Acabaram arrastados até a Provença e passaram a evangelizar lá, primeiro em Marselha, mais tarde em Aix-en-Provence. Outras lendas acrescentam que ela passou os últimos trinta anos de sua vida como eremita na montanha de La-St-Baume, onde veio a falecer. 

Apóstola da Provença

Um dos principais promotores do culto de Maria Madalena no sul da França foi Carlos II de Anjou , rei de Nápoles e Duque da Provença. Era grande devoto de Maria Madalena, sendo que uma lenda alega ter ele descoberto restos mortais dela em Saint-Maximin, na Provença. Em consequência, ele ali fundou uma nova basílica em sua honra, determinando que a Ordem Dominicana assumiria a respectiva custódia. Isso explica por que Maria Madalena até hoje é conhecida como apóstola da Provença e a veneração dela ser tão forte na região.

 

IHU On-Line - Qual o papel das ordens mendicantes na construção da figura de Madalena? Como compreender a relação de Madalena com os Dominicanos, de quem é padroeira?

Katherine L. Jansen - Devemos lembrar que na Idade Média sermões eram o veículo de "comunicação de massa", e as ordens mendicantes eram os pregadores por excelência naquela época. Consequentemente, as suas mensagens sobre o santo eram as mensagens que a maioria das pessoas recebia. Como sua mensagem tratava principalmente da penitência e conversão para a vida cristã, a figura de Maria Madalena que Gregório Magno legou à Igreja se adequava perfeitamente às campanhas de pregação dos frades. Já a devoção dos frades dominicanos à santa cresceu particularmente após terem recebido a custódia da nova basílica de Charles II, dedicada a ela.

 

IHU On-Line - O que se sabe de Madalena antes de Cristo? Qual terá sido seu destino depois da crucificação de Jesus?

Katherine L. Jansen - Nada sabemos sobre a vida de Maria Madalena antes de Cristo, exceto que ela parece ter vindo de uma família relativamente abastada e que ela era solteira. Seu status econômico é indicado pelo fato de o Novo Testamento nos dizer que ela e as outras mulheres que seguiam Cristo lhe serviam com seus próprios recursos. Em 2009, escavações em Magdala junto ao mar da Galileia indicam que Magdala era uma localidade importante. Arqueólogos encontraram o que parece ser uma grande cidade, com uma sinagoga do primeiro século, uma de apenas sete naquele período em todo o Israel e a única naquela área. Pode-se especular que ali Maria Madalena, pela primeira vez, ouviu Jesus ensinar. A outra coisa que podemos dizer com alguma certeza é que ela era solteira. Numa época em que sobrenomes ainda não tinham sido regulamentados, as mulheres eram conhecidas mediante referência a seus maridos, daí Maria de Tiago, por exemplo. No caso dela, Maria Madalena era identificada por sua cidade: Magdala.

Quanto ao que aconteceu com ela depois da ascensão de Cristo, nada sabemos, uma vez que nenhum túmulo da época ou evidência textual veio a lume. O melhor que podemos fazer é atentar para Gregório de Tours , escritor do século VI, que nos diz que Maria Madalena teria acompanhado a Virgem Maria e João Evangelista até a Ásia Menor, onde ela morreu e foi  sepultada. Até hoje a cidade de Éfeso, na Turquia moderna, preserva uma sepultura da qual se alega ter sido a de Maria Madalena.

 

IHU On-Line - Os relatos bíblicos dão conta de que é Madalena quem faz o anúncio da ressurreição e que é ela que encoraja Pedro  e os demais. Ainda assim, como compreender que a Igreja é erguida a partir de Pedro? Como compreender o que poderia ser chamado de ideologia de gênero medieval a partir da história de Madalena? Como essa ideologia se atualiza na história do Cristianismo e qual suas influências nos dias de hoje?

Katherine L. Jansen - Pelo menos desde o século V, começando com o Papa Leão, o Grande , a Igreja institucional tem apelado para a passagem em Mateus 16,18, quando Jesus diz: "Tu és Pedro, e sobre esta rocha edificarei a minha Igreja", como evidência de um mandato para a sucessão apostólica do sexo masculino para a autoridade e liderança episcopais. Como se acreditava que Pedro fosse o líder da comunidade romana cristã (e, portanto, "bispo" de Roma), argumentou-se também que Roma fosse a principal sede [ou sé] episcopal do mundo cristão, mesmo que outras sedes no Oriente Médio tivessem direito e pedigree mais veneráveis. Este argumento, claro, naturalmente marginaliza o significativo papel de Maria Madalena na história da salvação como "apóstola dos apóstolos", e concede a Pedro e aos seus sucessores poder e autoridade eclesiásticas. Finalmente, gostaria de dizer que isso encapsula a tensão (muitas vezes não reconhecida) na Igreja em relação aos papéis das mulheres e à autoridade desde o período cristão primitivo até os dias atuais.

 

IHU On-Line - Em que medida é possível afirmar que a Igreja de hoje, em específico a partir do pontificado de Francisco, se move para um resgate da figura de Madalena? E como esse resgate pode contribuir para as discussões do papel da mulher na Igreja hoje?

Katherine L. Jansen - Estou muito contente em ver que o Papa Francisco  elevou o dia em que se festeja Maria Madalena de um dia memorial para um dia festivo em pé de igualdade com os outros apóstolos. Tanto o decreto quanto a carta de acompanhamento da Congregação para o Culto Divino, de 10 de junho, são intitulados "Apostolorum Apostola" ("Apóstola dos Apóstolos"), título que não tem sido conferido à santa desde a Idade Média; sua história eu analiso em profundidade no meu livro The Making of the Magdalen (Princeton: Princeton University Press, 2000). Por isso, considero extremamente gratificante que Maria Madalena finalmente esteja recebendo o devido reconhecimento, na Igreja moderna, ao menos na liturgia, e espero que minha pesquisa tenha contribuído para isso. Gostaríamos de interpretar isso como um primeiro passo numa discussão voltada para a reabertura de posições de autoridade e poder para mulheres na Igreja Católica Romana. A carta do secretário da Congregação para o Culto Divino sugere essa interpretação: "Está certo que a celebração litúrgica dessa mulher tenha o mesmo nível festivo dado à celebração dos apóstolos no calendário romano geral, destacando a missão especial dessa mulher que é exemplo e modelo para cada mulher na igreja".

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