Edição 489 | 18 Julho 2016

Brasil e o genoma humano, discussões sobre o CRISPR-Cas9

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Marcelo de Araujo

“Como o ‘código genético’ contido no genoma de uma espécie é representado por uma sequência de letras (A, T, C, e G), cientistas usam a palavra ‘editar’ para se referir ao processo pelo qual essas letras são apagadas ou substituídas. O genoma humano é formado por uma sequência com mais de três bilhões de letras. Mas até o momento cientistas conseguiram decifrar apenas uma pequena parte de nosso código genético”, explica Marcelo de Araujo, em artigo enviado à IHU On-Line.


Marcelo de Araujo possui graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, doutorado em Filosofia pela Universität Konstanz, da Alemanha, 2002. Atualmente, é professor de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professor adjunto de Filosofia do Direito da UFRJ. Sua pesquisa filosófica se concentra nas áreas de ética, filosofia política e filosofia do direito. Este artigo resulta de um trabalho apresentado em janeiro de 2016 em um congresso na Universidade de Oxford, e de um intercâmbio acadêmico com a Universidade de Birmingham, Inglaterra. O trabalho contou com o apoio financeiro do CNPq e da FAPERJ.

 

Eis o artigo.

 

Faz pouco mais de um ano que um experimento científico deflagrou um debate mundial sobre a ética da pesquisa em engenharia genética. Em abril de 2015 cientistas chineses publicaram um artigo sobre a manipulação do genoma de 86 embriões humanos. O experimento tinha como objetivo investigar a possibilidade de cura para uma doença sanguínea de origem hereditária chamada beta-talassemia. Os embriões usados no experimento eram “não viáveis”, ou seja, não poderiam se desenvolver e formar um feto. Mesmo assim, o artigo dos cientistas chineses causou muita polêmica. 

A manipulação do genoma, por si só, não é nenhuma novidade. Mas duas coisas chamaram a atenção da comunidade científica para o experimento dos pesquisadores chineses. Em primeiro lugar, esse tipo de pesquisa nunca havia sido feito antes com embriões humanos, pois muitas pessoas consideravam moralmente questionável a tentativa de se manipular o “código genético” de nossa espécie.  Em segundo lugar, a “ferramenta” que foi utilizada para se modificar o genoma dos embriões humanos é bastante diferente de outras técnicas que vinham sendo usadas para esse fim até poucos anos atrás. Essa ferramenta se chama CRISPR-Cas9. 

CRISPR-Cas9 representa uma verdadeira revolução nas pesquisas em biotecnologia. CRISPR-Cas9 é muito mais barato, preciso e rápido do que as outras ferramentas para alterações no código genético de um determinado organismo. Uma organização sem fins lucrativos chamada Addgene, localizada nos Estados Unidos, é a principal fornecedora de kits de CRISPR-Cas9, despachados pelo correio todos os dias para diversas partes do mundo.  Em princípio, qualquer pesquisador, ou até mesmo estudantes de biologia com conhecimentos razoáveis de genética, e acesso aos reagentes e equipamentos necessários, já podem realizar experimentos que envolvem a modificação do código genético de um organismo.

Como o “código genético” contido no genoma de uma espécie é representado por uma sequência de letras (A, T, C, e G), cientistas usam a palavra “editar” para se referir ao processo pelo qual essas letras são apagadas ou substituídas. O genoma humano é formado por uma sequência com mais de três bilhões de letras. Mas até o momento cientistas conseguiram decifrar apenas uma pequena parte de nosso código genético. Conforme o nosso conhecimento nessa área for se ampliando, a utilização de CRISPR-Cas9 com vistas ao tratamento de doenças congênitas deve se tornar cada vez mais difundida. E é justamente por isso que muitas pessoas sustentam que o uso dessa nova tecnologia deve ser acompanhado de um debate ético mais aprofundado.

Algumas pessoas alegam que, ao tentarem editar o genoma de embriões humanos, os cientistas chineses teriam violado uma “linha ética” sem precedentes e que novas pesquisas envolvendo a manipulação do genoma humano deveriam ser banidas. Mas outras pessoas veem no experimento do ano passado o início de uma nova era de pesquisas que poderiam um dia levar à cura para o câncer e à erradicação de uma série de doenças hereditárias. O debate sobre as implicações éticas e jurídicas do uso de CRISPR-Cas9 em pesquisas envolvendo embriões humanos continua gerando discussões. Até o momento, dois encontros globais já foram realizados com vistas ao estabelecimento de diretrizes para um uso ético de CRISPR-Cas9 e para a orientação dos governos na elaboração de legislações específicas.

O primeiro encontro ocorreu em dezembro de 2015, em Washington. O evento contou com a participação de representantes da comunidade científica mundial e da sociedade civil de vários países.  O segundo encontro ocorreu em 29 de abril deste ano, em Paris, e contou com a participação de representantes da China, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Bélgica, Malásia, Canadá, Singapura e Espanha. Mas o Brasil, até o momento, não tem participado das rodadas de discussões.  

Enquanto o tema é discutido em fóruns internacionais e na imprensa especializada, novas pesquisas envolvendo o uso de CRISPR-Cas9 em embriões humanos já foram anunciadas. No início deste ano pesquisadores do Instituto Francis Crick, na Grã-Bretanha, obtiveram autorização para a realização de experiências em embriões humanos viáveis, mas que deverão ser descartados dentro de no máximo 14 dias após o início do experimento. Pesquisadores do Karolinska Institute, na Suécia, também obtiveram recentemente uma autorização do governo sueco para usar CRISPR-Cas9 em pesquisas com embriões humanos.  E em abril de 2016, um ano após a publicação do artigo que gerou todo esse debate, outra equipe de cientistas chineses publicou um novo trabalho no qual relatam o uso de CRISPR-Cas9 em 213 zigotos humanos (óvulos fertilizados). Dessa vez, porém, a notícia causou bem menos alvoroço do que o experimento de abril do ano passado. O novo experimento teve como objetivo usar o CRISPR-Cas9 na tentativa de provocar uma mutação genética que às vezes ocorre espontaneamente em seres humanos, e que os torna resistentes ao vírus HIV. 

CRISPR-Cas9 já foi utilizado com sucesso na edição, por exemplo, do genoma de algumas espécies de soja, arroz e batata com o objetivo de torná-las mais resistentes a pragas. Mas esse processo é diferente da criação de uma semente “transgênica”, já que nesse caso não ocorre a mistura do material genético de diferentes espécies. O governo americano já deu sinais, inclusive, de que não tratará produtos alimentícios, gerados por meio de CRISPR-Cas9, com a mesma legislação que aplica à produção de produtos transgênicos.  CRISPR-Cas9 também já foi usado para a criação de mosquitos incapazes de transmitir a malária. Mas esses mosquitos ainda não saíram dos laboratórios, e são geneticamente diferentes dos mosquitos que a empresa britânica Oxitec vem usando no combate à dengue no Brasil.  CRISPR-Cas9 também vem sendo usado em pesquisas para criação de porcos que, no futuro, poderiam ser utilizados na produção de órgãos para transplantes em seres humanos.  A empresa responsável por essa pesquisa é a eGenesis.  

São inúmeras as possibilidades de aplicação do CRISPR-Cas9. O potencial que essa ferramenta possui para o tratamento de doenças, e avanços no setor agropecuário, é inquestionável. Mas é fundamental também que haja um amplo debate com o objetivo de delinear princípios éticos claros para a utilização de CRISPR-Cas9, ou de outras tecnologias para a edição do código genético de seres vivos, especialmente seres humanos. A comunidade científica brasileira e a sociedade civil, a meu ver, não podem ficar de fora desse debate. 

 

Leia mais...

- Entre o tratamento e o aprimoramento humano. Entrevista com Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 487, de 13-06-2016. 

- O que significa ser humano se faculdades cognitivas e físicas forem aprimoradas? Entrevista com Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 472, de 14-09-2015.

- Política e moralidade na teoria dos contratos sociais. Entrevista com Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 436, de 10-03-2014.

- Os algoritmos e os desafios às novas configurações acadêmicas. Artigo de Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 482, de 04-04-2016.

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