Edição 489 | 18 Julho 2016

Detração, o fio que costura relações sociais

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Ricardo Machado

Leandro Karnal observa como a detração se constitui em um traço cultural marcante que atravessa o tempo e as civilizações
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2016

A detração nos constitui. A história da humanidade é a história da detração. No Brasil ainda há uma espécie de agravante em nosso ethos, uma vez que tendemos a ser mais sensíveis às críticas mesmo quando elas não são de cunho pessoal. Em meio a tudo isso a democracia descortina o palco das relações sociais e vivemos o ínterim entre o contraditório e a detração. “A democracia precisa conviver com o contraditório e com a detração. Ela também precisa (e quase todas fazem) estabelecer limites legais como temos, no Brasil, para calúnia, difamação e injúria”, propõe Leandro Karnal, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Em seu livro A detração (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2016), lançado recentemente e no qual esta entrevista se inspira, ele aborda a detração, ou a fofoca, como matéria constitutiva das relações humanas.

Talvez a tarefa mais difícil seja, justamente, separar a fofoca da crítica racional, isto é, ser crítico sem cair na maledicência. “Teoricamente, a crítica tem como mira a verdade e não é pessoal ou não contém imputação ao sujeito. A maledicência é pessoal e subjetiva. A Igreja medieval tinha a bela ideia de odiar o pecado e amar o pecador”, provoca o entrevistado. “A rigor, quando eu deixo claro que um texto contém erro e que meu objetivo é melhorar e atingir a verdade, estou no campo da crítica. Quando eu recrimino o outro como analfabeto ou burro, estou no campo da detração”, complementa.

Leandro Karnal é graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, com doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo - USP. Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Atualmente é professor da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, membro de corpo editorial da Revista Brasileira de História e da Revista Poder & Cultura. Entre suas publicações, destacamos a recém-lançada A detração (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2016), A Escrita da Memória - Interpretações e Análises Documentais (São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004) e Cronistas da América (Campinas: Unicamp, 2004).

Eis a entrevista.


IHU On-Line – Como a detração se constituiu na história do Brasil?

Leandro Karnal - Provavelmente começou quando Cabral  encontrou os indígenas. Comentários maldosos dos portugueses sobre os nativos. Depois ela foi institucionalizada, por exemplo, com as três visitas da Inquisição à colônia. O processo Inquisitorial é um antro de fofoca. Denúncias anônimas são terreno  fértil para toda espécie de vingança. 


IHU On-Line – De que maneira podemos entender o atual cenário político brasileiro a partir da perspectiva da detração?

Leandro Karnal - As redes sociais juntaram ao nosso ódio político a liberdade e facilidade de postagens. Imagine que, há 100 anos, se alguém quisesse ser contra o governo, teria de tornar pública sua crítica num grande jornal e isto era muito mais difícil. Hoje, com um clique, podemos tratar de igual para igual um Juiz do supremo ou o chefe do Executivo. Mais, além da facilidade em fofocar com as redes, a média das pessoas acha importante manifestar sua opinião, especialmente a detratora. Perdemos a noção de hierarquia, para o bem e para o mal. 


IHU On-Line – Qual a relação entre a democracia e a detração?

Leandro Karnal - A democracia precisa conviver com o contraditório e com a detração. Ela também precisa (e quase todas fazem) estabelecer limites legais como temos, no Brasil, para calúnia, difamação e injúria. Mas há uma linha muito tênue entre a detração e a democracia, que precisa resolver medianamente a questão: como conviver com liberdade de expressão e direito de não sermos devassados na nossa intimidade?


IHU On-Line – O que está em jogo no debate público na atual política brasileira: crimes ou a “fofoca mais bem elaborada”? 

Leandro Karnal - Não sei se podemos ter uma distinção clara entre estas duas coisas. Crimes também dependem de opinião pública para serem investigados. Temos crimes cometidos há décadas e que esperam um último recurso no Supremo Tribunal Federal - STF e outros, muito mais recentes, são examinados com rapidez por pressão da opinião pública. A lei rápida ou lenta depende de muitas coisas. Nas sociedades de informações de massa, até o crime precisa ter uma versão bem elaborada. 


IHU On-Line – O que a votação sobre o impeachment e as argumentações contra e a favor demonstram sobre o uso da detração na política brasileira?

Leandro Karnal - Que a detração veio para ficar e que a mulher de César, além de ser e parecer honesta, deve contratar uma boa assessoria de imprensa. 


IHU On-Line – O que a “santíssima trindade” do Bela, recata e do lar diz a respeito do ideal de virtude pública?

Leandro Karnal - Que existe um projeto político nesta expressão, uma crítica velada a outra mulher menos bela, não recatada e não do lar e que a mulher do lar ou da rua continua sendo alvo da manipulação maldosa e detratora.  


IHU On-Line – Em que medida a fofoca nos conduz a um processo civilizacional e em que medida nos transporta à barbárie?

Leandro Karnal - Há casos de calúnias que resultaram em tragédia, como o da escola Base em São Paulo, citado no livro. Aqui o grande risco da fofoca e do seu poder de destruição. Multiplicamos o calibre das nossas línguas, mas temos esquecido que o corpo humano continua frágil.  


IHU On-Line – Qual a relação entre o humor e a detração? Como a maledicência abriu os portões de Auschwitz?

Leandro Karnal - Esta é uma frase clássica. O humor, com frequência, é preconceituoso e registra os medos e preconceitos da sociedade. Aristófanes  ironizava filósofos e a própria democracia, reclamando do comportamento ousado das mulheres, por exemplo. Molière  atacava os burgueses para defender a aristocracia. A maioria da piadas contém homofobia, misoginia, racismo ou outros preconceitos. Sim, o humor pode ser uma arma política boa como as charges de Belmonte,  ou Millôr.  Porém, com frequência, o humor  malévolo tem um grande potencial de magnificar ódio e preconceito. 


IHU On-Line – Como separar a detração da crítica? Como ser crítico sem cair no terreno da maledicência?

Leandro Karnal - Difícil. Teoricamente, a crítica tem como mira a  verdade e não é pessoal ou não contém imputação ao sujeito. A maledicência é pessoal e subjetiva. A Igreja medieval tinha a bela ideia de odiar o pecado e amar o pecador. A rigor, quando eu deixo claro que um texto contém erro e que meu objetivo é melhorar e atingir a verdade, estou no campo da crítica. Quando eu recrimino o outro como analfabeto ou burro, estou no campo da detração. Nós, brasileiros, somos mais sensíveis à crítica do que os europeus em geral, por exemplo. No Brasil, criticar um texto ou uma ação é sempre visto como inimizade. Trata-se do homem cordial, ou seja, do indivíduo que mede tudo pelo coração. 


IHU On-Line – Como pensar a sociedade a partir de uma relação que não seja a das paixões tristes, como o medo, a inveja e o preconceito?

Leandro Karnal - A dimensão trágica da existência faz parte estrutural do nosso ser. Somos a aspiração com Bom e ao Belo e somos dotados das paixões tristes. Nossos “afetos desordenados”, para utilizar uma expressão inaciana,  são constituidores de muitas coisas. Muito consenso via boa educação e coerção proporcional para barrar excessos parecem ser uma fórmula que DIMINUI, mas não elimina estas paixões. O preconceito terminará com o último homem. Até lá, é convidado indesejado em todas as mesas. A consciência crítica de si e boa formação ajudam a identificá-lo, e até controlá-lo, mas não o eliminam. 

 

Leia mais...

- “Os jesuítas foram os primeiros do clero católico a entender a modernidade”. Entrevista especial com Leandro Karnal publicada na revista IHU On-Line, nº 458, de 10-11-2014. 

- "Uma educação significativa parte do paradigma do aluno, mas constrói outro paradigma". Entrevista especial com Leandro Karnal publicada nas Notícias do Dia, de 04-05-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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