Edição 207 | 04 Dezembro 2006

Retorno religioso

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IHU Online

Nesta semana, a Teologia Pública entrevistou o Professor honorário do Instituto Católico de Paris, Claude Geffré. A entrevista foi concedida por e-mail.

IHU On-Line - Nos últimos anos observamos um grande aumento dos estudos das religiões. Como o senhor avalia isso?

Claude Geffré
- Ao menos na Europa, pode-se falar há três ou quatro décadas de um retorno do religioso. Ele coincide com certa crise da modernidade se, por modernidade se entende uma razão convencida de si mesma e em conflito com toda tradição e toda fé religiosa. No final do século XX, vários pensadores denunciaram a deriva da razão magnificada pelo Aufklärung , uma razão que se esgota na sua porta instrumental, uma razão que teve como saída fatal as diversas formas de totalitarismo. E, nos países como a França, constatam-se os limites de uma sociedade completamente secularizada e de um laicismo militante e anticlerical que era um tipo de quase religião republicana. Está-se em busca de um laicismo aberto que compreende que o “religioso” é uma dimensão intrínseca da cultura. Se, fala-se à vontade de pós-modernidade, é justamente para designar a pesquisa de uma racionalidade mais fundamental que não seja redutível nem à racionalidade conceptual nem à racionalidade formal das ciências. A ordem do razoável, que é da ordem da ética e do político não está em oposição fatal com o religioso. Mas fala-se das sociedades da América do Norte ou da América do Sul. Estas jamais conheceram uma completa secularização, comparável à da Europa. É por isso que é impróprio falar de um retorno ao religioso. Seria mais apropriado tentar evocar um despertar do fundamentalismo. Ele coincide com o sucesso das igrejas evangélicas pela reação contra a excessiva permissividade moral das sociedades modernas, para conjurar a ameaça do terrorismo internacional e da exploração de nosso meio ambiente.

IHU On-Line - Que conceito de religião orienta sua reflexão enquanto teólogo? Como o senhor fundamenta este conceito e que conseqüência tem isto para pensar as religiões no atual contexto sociocultural?

Claude Geffré
- A palavra e a noção de “religião” têm uma origem ocidental. A palavra remonta a Ciceron (relegere) e a Lactance (religare). E é certo que a noção de religião para designar uma dimensão estrutural da vida dos indivíduos e das sociedades originou-se de uma utilização corrente a partir do século III sob a influência do cristianismo. Não existe uma palavra para designar a religião nas línguas indo-européias. E muitas sociedades, na África e na Ásia ignoravam a palavra e a noção de religião. A noção de religião pressupõe, na verdade, uma distinção clara entre o sagrado e o profano, distinção que deve muito à noção de criação que é inerente ao monoteísmo judeu-cristão. Mas, se é verdade que a noção de religião não é universal, não é cair no europeocentrismo utilizar hoje a palavra “religião” para designar bem além da civilização ocidental, seja os fenômenos religiosos, seja o próprio registro da vida individual. Como teólogo, recuso uma definição puramente sociológica ou funcional da religião e sou tentado a discernir em todo ser humano um registro próprio que não é redutível aos domínios do político, da ética ou da estética. Há em todo ser humano uma capacidade fundamental ou uma abertura a um absoluto transcendente que foge à imanência da consciência e da história. Mas pode-se falar de experiência religiosa sem que este absoluto seja determinado como um Deus pessoal. Pode-se tratar do Deus otiosus das religiões africanas, da Realidade suprema além dos fenômenos como no hinduismo, do Vazio como no budismo, ou do Tao chinês.

IHU On-Line - O que o motivou, como teólogo cristão, a tratar da questão das religiões – no livro Avec ou sans Dieu? - em diálogo com o filósofo Regis Debray?

Claude Geffré - Na obra, Avec ou sans Dieu ?, aceitei dialogar com o filósofo agnóstico Régis Debray, porque, como mediólogo, ele está muito preocupado em mostrar a permanência do fenômeno religioso nas sociedades modernas. Nisso, ele mantém sua distância em relação ao cientismo e ao laicismo de certo número de representantes das Luzes que ainda confundem o religioso com certo obscurantismo. Além disso, encarregado pelo ministério francês da Educação nacional de um relatório sobre o ensino do fato religioso na Escola, quis mostrar a importância do “religioso” como parte constitutiva da cultura em geral. E, contrariamente à mentalidade dominante dos professores do ensino público, que professam uma neutralidade absoluta em matéria religiosa, sobretudo no caso do cristianismo, ele provou que não somente era possível, mas necessário ensinar o Fato religioso sem cair no confessionalismo ou apologética. Tratava-se, segundo seus próprios termos, de substituir um laicismo de incompetência por um laicismo de inteligência. Mas apesar do título de nossa obra comum, nosso diálogo não diz diretamente respeito à questão do ateísmo. Estamos os dois convencidos da importância do fenômeno religioso na vida das sociedades e dos indivíduos, mas divergimos sobre a natureza da religião. E é por isso que o verdadeiro título de nosso livro poderia ter sido também: La réligion avec ou sans Dieu ?

IHU On-Line - Resumidamente, em que consiste sua abordagem hermenêutica das religiões?

Claude Geffré
- Como mediólogo, Régis Debray se interessa antes de tudo pela religião como laço social. É a religião que favorece a coesão e o dinamismo do grupo humano. Seja ele benéfico ou maléfico, é o sagrado que caracteriza a vitalidade de toda sociedade humana. É a tese que é subjacente em seu grande livro que tem justamente por título, O fogo sagrado. Como teólogo e hermeneuta, interesso-me, sobretudo pelas religiões na questão do sentido. Abordo então as religiões com base em seus textos fundadores e de suas tradições interpretativas. E, se considero também necessárias suas práticas, seus rituais e sua liturgia, interesso-me pela intencionalidade religiosa que revela ou manifesta esta proliferação de gestos sagrados.

IHU On-Line - Como o senhor situa o lugar e/ou a função da religião na vida dos indivíduos e da sociedade? Considerando a especificidade de sua posição como teólogo, o que o senhor faz questão de enfatizar como acordo e desacordo entre seu pensamento sobre as religiões em relação e o pensamento de Régis Debray?

Claude Geffré
- Interrogar-se sobre a função da religião na vida dos indivíduos e das sociedades, é limitar-se a uma abordagem sociológica e psicológica da religião. É - o que me parece - a abordagem de Régis Debray mesmo se ele afirma ser um discípulo de Durkheim. Ele se interessa primeiramente pela utilidade social da religião. Eu prefiro me situar do ponto de vista de uma antropologia religiosa que se interroga sobre a irredutibilidade da dimensão religiosa do fenômeno humano. Isso não revela nem o ter, nem o poder, mas o valer, em questão de sentido, mas não se trata de questões sem respostas. É mais precisamente a resposta a um apelo que vem de fora e precede-nos sempre. Mesmo se a religião é necessariamente um fenômeno coletivo, não posso dissociar a religião da experiência religiosa, pois não há experiência religiosa – ao que me parece - sem experiência de certa gratuidade, comparável à experiência de um amor incondicional ou à experiência da beleza da natureza ou de uma obra de arte. Régis Debray vale-se de um conceito homogêneo do religioso através do tempo e do espaço. Sou mais sensível a um conceito diferenciado do religioso, segundo as épocas, as áreas culturais. Nas sociedades arcaicas, as sociedades sem Estado, a religião era um poderoso fator de coesão social e o homem religioso sentia-se sempre em dívida com relação aos poderes religiosos invisíveis. A história era como confiscada pela natureza plena de sagrado. A noção de criação na religião bíblica e a da encarnação de Deus no cristianismo favoreceu a emergência de um homem livre e responsável por sua história. Esta dessacralização do mundo que coincidiu com o sucesso do monoteísmo judeu-cristão nos convida a não definir exclusivamente a religião como fator de coesão social. Este movimento conduzirá no Ocidente a uma separação do poder religioso e do poder civil e mesmo a um fim do controle da vida dos indivíduos pela religião dominante. Isso, porém, não conduziria ao fim da religião como crença religiosa. Era mais precisamente uma busca da religião de outra forma, definida como uma relação não-alienante com um Deus pessoal.

IHU On-Line - Que caminhos o senhor aponta para a superação da violência e da dificuldade de comunicação entre as religiões no mundo de hoje?

Claude Geffré
- A história religiosa da humanidade demonstra-nos que houve muito seguidamente uma ligação entre a religião e a violência. Hoje ainda, constatamos que uma grande religião como o islã pode conhecer uma deriva que chega a ponto de legitimar uma violência assassina em nome de Deus. Seguidamente denunciou-se a intolerância das religiões monoteístas na medida em que elas se reclamam de uma verdade revelada por Deus. Elas produzem o fanatismo religioso e o exclusivismo com relação aos membros das outras religiões. Todas as religiões, contudo, de fato, podem tornar-se violentas desde que elas sejam instrumentalizadas pelo poder político a serviço de uma terra, de uma raça, de uma etnia ou de uma nação. O diálogo inter-religioso tal qual existe já no começo do século XXI deve conduzir a uma conversa entre as próprias religiões ao invés de estarem a serviço de seus próprios interesses e de um espírito de conquista procurem uma emulação recíproca no serviço das grandes causas que solicitem a consciência humana universal: a defesa e a promoção dos direitos do meio ambiente do homem no mundo que está sob a ameaça de um caos ecológico. Não se trata de sonhar com um tipo de super-religião mundial que sacrificaria as riquezas particulares das diversas tradições religiosas, mas de salvaguardar sua própria identidade ao mesmo tempo que manifesta seu respeito e sua estima pela verdade dos outros. Não é cair no relativismo reconhecer que nenhuma religião, nem mesmo o cristianismo, não pode ter a pretensão de totalizar todas as riquezas de ordem religiosa disseminadas na pluralidade das vias religiosas.

IHU On-Line - Como o senhor vê as relações entre ciências e religiões? Que implicações isso tem para a ética?

Claude Geffré
- A credibilidade das grandes religiões do mundo está de fato abalada pelos novos resultados dos saberes científicos sobre a origem do universo e do fenômeno humano. Mas, cada vez mais, convém não confundir a originalidade de um ensino religioso em relação aos dados do saber cientifico. É precisamente o erro do fundamentalismo de procurar na Bíblia uma resposta sobre a origem e o fim do cosmos ou sobre a aparição do homo sapiens. Os textos bíblicos não nos fornecem uma resposta sobre a natureza do Big Bang original ou sobre a origem da vida. Eles contêm uma mensagem essencialmente religiosa. É o Papa João Paulo II que, diferentemente dos criacionistas americanos, afirmava que a teoria da evolução era muito mais que uma simples hipótese científica. Justamente é o próprio de uma abordagem hermenêutica da Escrita, distinguir bem a permanência de uma mensagem religiosa ou ainda uma revelação que interpela o homem atual e, também as “representações do mundo” que acompanham esta mensagem ao mesmo tempo que estas “representações” não fazem mais parte do credível disponível do homem moderno. Não é somente próprio de nossa representação do universo. É igualmente verdade de nosso saber inédito sobre as leis da reprodução humana, sobre a sexualidade, sobre as relações do homem e da mulher etc... Será necessário levar em conta no futuro de uma interpelação recíproca entre as exigências de uma técnica secular. Existe na verdade certo consenso da consciência humana universal sobre o que é propriamente contrária ao humano verdadeiro. E as religiões que não respeitam as aspirações da consciência humana são convidadas a uma reinterpretação criadora de seus textos fundadores e de suas tradições.

IHU On-Line - Que aproximações entre religião, arte e política o senhor considera importantes na cultura atual?

Claude Geffré
- Na cultura moderna, a consideração do fator religioso é uma vantagem importante na paz social. Os decididores políticos devem respeitar a liberdade religiosa de seus concidadãos. Deve ser possível promover uma cidadania que assume um pluralismo religioso e cultural cada vez maior. Este pluralismo deve enriquecer uma sociedade civil que, antes de ainda fazer apelo a um Estado-providência da prova de criatividade na área do serviço dos mais necessitados e dos excluídos de nossas sociedades modernas sob o signo do perfil e da obsessão da conquista. Além disso, ante os conflitos intermináveis que ensangüentam o Oriente Médio, é de responsabilidade histórica de os homens políticos denunciarem os fanatismos religiosos, de fazerem ouvir a voz da razão, de lembrarem as exigências do direito internacional e de praticarem a arte do compromisso. Não há paz entre os povos sem justiça e não há justiça sem perdão. Enfim, não se deve jamais esquecer as relações estreitas entre a religião e a arte caso se queira salvaguardar o imenso patrimônio cultural da humanidade. O fogo sagrado das religiões esteve na origem de uma formidável explosão de formas simbólicas na área da escultura, da pintura, da arquitetura. É fato nas artes primitivas nas civilizações mais antigas; é fato em Sumer e no Egito; é fato nas grandes religiões do Extremo-Oriente; é fato no Ocidente da Idade-Média latina e no Renascimento. É sempre o caso das formas mais abstratas da arte sacra contemporânea. No domínio da literatura, da ficção e do cinema, a liberdade de expressão e então de crítica das crenças e das práticas religiosos tornou-se total. Esta critica pode estar no limite da blasfêmia. Tal limite não pode ser superado se ele fere gravemente a sensibilidade de tal grupo religioso e compromete a ordem pública de uma sociedade democrática sob o signo da pluralidade religiosa.

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