Edição 487 | 13 Junho 2016

Raízes históricas dos direitos humanos na conquista da América: o protagonismo de Bartolomé de Las Casas e da Escola de Salamanca

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Fernanda Bragato

“Os debates sobre o problema da escravização e da matança dos povos indígenas e do domínio de suas terras foram provocados pela falta de consenso na sociedade espanhola da época sobre a própria legitimidade da conquista. As discussões ocorreram tanto nos territórios americanos (com os freis dominicanos Montesinos e Bartolomé de Las Casas), como na Universidade de Salamanca, na Espanha, onde esses discursos se consolidaram. A discussão oriunda dos efeitos da colonização foi um fenômeno especificamente espanhol, já que ele não ocorreu, ao menos com a mesma intensidade, em nenhuma das outras potências colonizadoras como Portugal, Inglaterra, Holanda e França. O debate que se construiu durante essas disputas constituem, hoje, importante referencial histórico para a afirmação dos direitos humanos e aporte fundamental para compreender o seu significado no contexto contemporâneo”, aponta Bragato.

Fernanda Frizzo Bragato é graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestra e doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, tendo realizado pós-doutorado na University of London (School of Law - Birkbeck College), Inglaterra. Atualmente, é professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Direito e coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos.

 

Eis o artigo.

 

Introdução

Fato amplamente negligenciado na construção do dicurso dos direitos humanos deu-se durante a colonização e a conquista hispânicas da América, onde, na Espanha do século XVI, eclodiram inúmeros conflitos e lutas políticas em torno da legitimidade da conquista das terras recém-descobertas e do direito dos europeus de submeter os povos indígenas à escravidão. As narrativas das primeiras ocupações dão conta da sistemática exploração dos índios americanos e do sentimento de superioridade europeu que a tornaram possível. Ocorre que tais práticas provocaram as primeiras reações políticas e filosóficas contra a negação da dignidade humana de que se têm provas documentais no ocidente, o que levou à formulação de novos discursos amparados em uma ideia substancializada de pessoa humana, a partir, sobretudo, dos ensinamentos cristãos. 

Os debates sobre o problema da escravização e da matança dos povos indígenas e do domínio de suas terras foram provocados pela falta de consenso na sociedade espanhola da época sobre a própria legitimidade da conquista. As discussões ocorreram tanto nos territórios americanos (com os freis dominicanos Montesinos  e Bartolomé de Las Casas ), como na Universidade de Salamanca, na Espanha, onde esses discursos se consolidaram. A discussão oriunda dos efeitos da colonização foi um fenômeno especificamente espanhol, já que ele não ocorreu, ao menos com a mesma intensidade, em nenhuma das outras potências colonizadoras como Portugal, Inglaterra, Holanda e França.  

O debate que se construiu durante essas disputas constituem, hoje, importante referencial histórico para a afirmação dos direitos humanos e aporte fundamental para compreender o seu significado no contexto contemporâneo (RUIZ, 2007, p. 60; BIELEFELDT, 2000, p. 147). As celeumas em torno da legitimidade dos recém-chegados europeus para submeter os povos indígenas à exploração e à servidão, gestadas na luta social e nos conflitos políticos do século XVI, não podem ser subestimadas quando se pretende pensar o fundamento dos direitos humanos em sua versão contemporânea. Por essa razão, o presente artigo objetiva apresentar uma visão histórica dos direitos humanos, que desafia aquela que costuma compreendê-los como mais um produto liberal da Revolução Francesa . 

Embora se costume traçar uma trajetória linear que liga os direitos humanos, como hoje se os conhece, àqueles direitos consolidados no fim do século XVIII, especialmente na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América  e na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão , há profundas diferenças e descontinuidades. A versão liberal-moderna dos direitos humanos é o reconhecimento dos direitos naturais do homem, como formulados na teoria do contrato social. Surgiram no discurso político moderno como uma reivindicação por autonomia privada dos indivíduos frente ao Estado, em reação a um contexto histórico de governos absolutistas. A preocupação não era exatamente a extensão de direitos a uma vida digna a todos os seres humanos, mas garantias de exercício da liberdade a quem, pelas próprias forças, fosse capaz de exercê-la. Os direitos nasceram como poderes do indivíduo que se sobrepõem à própria sociedade. Justamente por isso, Marx  sinalizaria para o caráter eminentemente burguês destes direitos e sua preocupação última com a proteção da propriedade (Marx, 1970, p. 41-46).

Considerando que a ideia contemporânea de direitos humanos está muito além da mera relação Estado e indivíduo, o presente artigo propõe o resgate dos aportes filosóficos elaborados a partir do contexto da conquista da América. Assume-se, com isso, a posição de que as implicações éticas da colonização hispânica da América têm mais a contribuir para a compreensão dos direitos humanos do que os debates centrados na sua versão liberal. 

 

1.- O contexto da colonização e da conquista da América 

A conquista hispânica da América foi produto da convergência de vários fatores que, em 1492, resultaram na expedição de Cristóvão Colombo  rumo à descoberta das chamadas “Índias Ocidentais”, onde se iniciou a colonização hispânica. Dentre os fatores que impulsionaram tanto os propósitos de expansão, quanto a conquista da América e a subjugação de seus povos, destacam-se a Bula Inter Caetera  do Papa Alejandro VI , de 1493 (JOSAPHAT, 2000, p. 21; POUMARÉDE, 2004, p. 116). Esse documento religioso reconhecia aos reis espanhóis o direito de conquista e de evangelização dos infiéis nas Índias Ocidentais, equivalendo a uma proposição do direito das gentes para legitimar a conquista (IGLESIAS, 2004, p. 198). 

Foi sob o signo da expansão cristã e sob o pretexto da necessidade de evangelização dos infiéis, que a Igreja Católica conferiu ao Estado Espanhol o título que o legitimou a impingir aos povos indígenas da América toda sorte de humilhações e despojo (BRUIT, 1995, p. 100). Nas Bulas e Decretos Papais do Século XV, tanto os Reis Espanhóis, quanto Portugueses, eram, em nome da Igreja, amplamente legitimados a conquistar novas terras, atacar, combater, subjugar e espoliar lugares e pessoas, contanto que fossem infiéis. Os infiéis eram, para eles, tanto os que criam em outra religião, quanto os que jamais tivessem ouvido a prédica do evangelho, como era o caso dos indígenas americanos (JOSAPHAT, 2000, p. 24). 

O processo de ocupação e subjugação dos índios iniciou-se, na América, por meio da prédica do Evangelho, na medida em que a Igreja supunha um poder universal e extensível a todos, mesmo que nem todos reconhecessem a sua autoridade. A recusa da prédica tornou-se motivo suficiente para legitimar a prática de guerra contra os chamados infiéis e a consequente redução dos povos indígenas à escravidão. Foi nesse contexto que se desenhou a ocupação espanhola da América (JOSAPHAT, 2000, p. 58).

Além da força das armas e do Evangelho, que levou ao esbulho dos territórios dos povos autóctones, à sua alienação material e cultural e à sua inferiorização jurídica pelo confisco de seus direitos, os conquistadores valeram-se, ainda, de instrumentos jurídicos para legalizar e legitimar a colonização (POUMARÉDE, 2004, p. 110). 

A questão da legalização da escravidão foi uma questão oscilante desde o início da conquista até meados do século XVI, diante da necessidade de organizar uma sociedade de tipo ocidental na América e de sustentar os colonos espanhóis. Nos primeiros anos, foi o uso escravo da força de trabalho indígena que respondeu a essa necessidade. Essa prática era legitimada pelo Direito das Gentes , que reconhecia o direito de escravizar os que fizessem guerra contra os espanhóis ou de comprar índios já escravos. 

Mas foi a escravização de índios resignados que abalou a legitimidade dessa prática, levando à sua extinção em 1530. Quatro anos mais tarde, foi restabelecida e, em 1542, abolida definitivamente (BRUIT, 1995, p. 26). A solução definitiva foi a institucionalização das encomiendas, que deram ao repartimiento sua conformação jurídica. Cada cessionário recebeu, por um lado, uma concessão de terras e, por outro, um lote de índios para trabalhar. Os índios possuíam o status de súditos da Coroa, mas eram confiados a um colono espanhol, denominado encomendero, que tinha sobre eles poderes públicos delegados, podendo forçá-los ao trabalho, mas, em contrapartida, deviam protegê-los, evangelizá-los e pagar-lhes um salário para manter a ficção jurídica de sua liberdade. Todavia, esses institutos de direito colonial foram paulatinamente reduzidos à obrigação dos índios de pagar tributos a seu respectivo encomendante. 

O sistema de encomiendas legalizou uma exploração brutal dos índios. Nesse sentido é a observação de Todorov  (2003, p. 193-5), segundo o qual que não foram apenas as guerras que provocaram o extermínio dos índios; o número de mortes em consequência delas foi relativamente pequeno em comparação com aqueles devidos aos maus-tratos. Ocorre que os maus-tratos tiveram lugar justamente onde os índios já se encontravam dominados e as relações, de certa forma, reguladas juridicamente. Os maus-tratos consistiam basicamente nas condições de trabalho impostas aos índios no sistema de encomiendas e que também implicavam o labor nas minas. O regime de trabalho era exaustivo, reduzindo a expectativa de vida de um mineiro, na época, a 25 anos de idade. 

O mesmo resultado era obtido pela escravização e pela obrigação de pagar altos impostos, o que levou à impossibilidade de subsistência de muitas famílias e à inviabilização da continuidade da vida comunitária em muitos povoados. Note-se que a utilização quase que integral do trabalho indígena para a empresa colonial acarretou também a impossibilidade de manter as lavouras e de produzir alimentos, levando populações inteiras à fome. Paralelamente a isso, reduziram-se drasticamente os índices de natalidade, em uma sociedade em que os homens morriam muito jovens e o ritmo de trabalho era insuportável. Todo esse quadro teve como efeito um verdadeiro genocídio e, por conta disso, movimentos e reações no seio do Estado Espanhol adquiriram força, resultando na produção de novas verdades sobre as circunstâncias da conquista (IGLESIAS, 2004, p. 198).

 

2.- Reações às práticas cruéis contra os indígenas americanos

Desse contexto de desintegração da cultura autóctone e de desaparecimento de muitos povos indígenas, irromperam intensos debates, tanto na Espanha, quanto nas próprias colônias. Questões como o conceito de senhorio universal do Papa, por meio do qual se repartiam terras e se concediam títulos aos reis espanhóis para dominar a América, assim como a situação de inferioridade político-jurídica dos índios, constituíram alvos de contestação dos defensores da causa indígena (IGLESIAS, 2004, p. 21). 

As primeiras reações aos abusos perpetrados pela colonização hispânica vieram dos missionários dominicanos, encarregados da missão evangelizadora nas novas terras. O sermão de 1511, proferido pelo Padre Montesinos como reprovação ao modus operandi espanhol, provocou reações de muitos religiosos, que passaram a se sensibilizar com as condições aviltantes impostas aos indígenas. Ao mesmo tempo em que o missionário denunciava as práticas de escravidão, opressão e extermínio dos índios pelos colonos, apelava a uma ética universal que tomasse em conta a dignidade da pessoa humana, pressuposto do respeito e da solidariedade entre os seres humanos. Para tanto, conclamava seus ouvintes à obrigação evangélica de amar os índios como a eles mesmos, remetendo-os ao mandamento cristão do amor ao próximo. 

Além disso, Montesinos questionava a legitimidade do poder do Estado Espanhol e afirmava o primado do direito, apontando para o direito dos índios, como direitos naturais dos seres humanos e, portanto, como normas supremas da política colonizadora do Novo Mundo (JOSAPHAT, 2000, p. 31). Ao questionar a autoridade, a justiça e o direito dos espanhóis de ocupar a América e de subjugar os índios, Montesinos suscitou o problema do fundamento jurídico da colonização. Porém, a reação imediata dos colonos aos sermões foi negativa. Sentindo-se ameaçados pelas denúncias de Montesinos, passaram a exigir a retratação e a punição do pregador, sob o pretexto de que suas palavras frustravam a colonização e ofendiam a autoridade do rei espanhol (JOSAPHAT, 2000, p. 53-55). 

A despeito disso, as denúncias de Montesinos marcaram o início das reações contra a exploração indígena. Como observa Bruit , sua ousadia “não apenas estremeceu a consciência de Las Casas, mas todo o império espanhol. Era a primeira vez que se questionavam os títulos da Espanha na América e a incipiente sociedade colonial ficou escandalizada”. O sermão, proferido em 1511, teve, como principal consequência, a discussão e a aprovação das Leis de Burgos de 1512 (BRUIT, 1995, p. 60). 

Tratava-se de uma primeira codificação de direito colonial, que se preocupava em proteger os índios, reconhecendo sua liberdade e tentando regulamentar seu trabalho e sua vida no sistema de encomiendas. Ao encomendero foram instituídas algumas obrigações, com o intuito de limitar o uso escravo da mão de obra indígena. Entretanto, na prática, não passou de uma ficção jurídica que legalizava a escravidão, pois o trabalho, apesar de remunerado, era compulsório (POUMARÉDE, 2004, p. 115). As leis de Burgos  estavam longe da perfeição e, no que tinham de positivo, foram, muitas vezes, contornadas, se não violadas e esquecidas, colocando em xeque a continuidade da conquista (JOSAPHAT, 2000, p. 57). 

Diante disso, o próprio imperador Carlos V  ordenou a instauração das Juntas de Valladolid , em 1550, formada por membros do Conselho das Índias  e dos Conselhos Reais, cuja discussão girou em torno da licitude das guerras contra os índios e da sua sujeição à evangelização cristã. Nesses debates, surgiram as teses chamadas revisionistas, debatendo argumentos e razões sobre a conduta que devia ser observada em relação aos habitantes do Novo Mundo e nas quais esteve sempre imbricada a questão da legitimidade dos títulos de conquista (IGLESIAS, 2004, p. 192). 

Seus protagonistas foram dois grandes homens de seu tempo. Juan-Ginés de Sepúlveda  era historiador oficial de Carlos V, um intelectual humanista de sólida erudição. Encarnava a mentalidade generalizada de sua época, personificando a ideologia do ufanismo e da dominação, da conquista, da colonização e da afirmação da superioridade espanhola. Em seu livro, Democrates Alter, exaltava os valores nacionais e militares. Do outro lado, Las Casas tinha a superioridade de um saber experimentado, que viveu o que os intelectuais da conquista construíram em suas teorias e doutrinas. Sua diferença residia no convívio direto com os índios na América (JOSAPHAT, 2000, p. 142-3). As ideias de Las Casas transcenderam seu tempo e tiveram o mérito de antecipar o que, futuramente, seria o alicerce sobre os quais se afirmaram os direitos humanos: liberdade, direitos individuais, soberania dos povos para governar-se, consenso da maioria para governar (BRUIT, 1995, p. 124).

 

3.- Os debates de Valladolid e a Escola de Salamanca

Nos debates de Valladolid, tanto Bartolomé De Las Casas, quanto Ginés de Sepúlveda intervieram de forma ativa.  A tese favorável à dominação, defendida por Sepúlveda, baseava-se na atribuição aos índios de práticas de idolatria e canibalismo responsáveis por dotar-lhes de uma natureza bárbara e servil, razão pela qual a sua sujeição era o meio mais eficaz para obter sua persuasão e evangelização (IGLESIAS, 2004, p. 201). Mas as discussões tinham como pano de fundo, além das controvérsias entre ambos, a fervente luta das ideias defendidas por Francisco de Vitória  e Domingo de Soto . Castor Ruiz analisa, com propriedade, a gênese desse movimento que se erigiu contra os abusos da conquista:

A urgência do genocídio que estava acontecendo demandava a construção de novas verdades que desconstruíssem o discurso legitimador da conquista e possibilitassem a implementação de uma nova prática emancipatória a favor dos povos indígenas. O conflito de poder, curiosamente, não se dá entre duas forças que querem usufruir a conquista. O questionamento sobre a validade da conquista não foi provocado por grupos que visavam a interesses econômicos, políticos ou de dominação. A origem “subversiva” destes discursos está no impacto que a contemplação da alteridade negada provocou em algumas pessoas e setores da sociedade espanhola da época. Foi o compromisso solidário com as vítimas que motivou uma prática crítica contra os dispositivos de poder da conquista. A dor das vítimas funcionou como estopim “humanista” para a produção de novos discursos e novas práticas a favor da dignidade humana. Discursos e práticas que viriam a ser o embrião da moderna teoria dos direitos humanos (RUIZ, 2007).

Ginés de Sepúlveda não punha em dúvida a pertença dos índios à espécie humana, porque afirmar sua humanidade era condição para a pretendida evangelização. No entanto, para justificar o uso da força, rebaixou-os à categoria de sub-homens, gente perversa, bárbara e cruel, dada às práticas de canibalismo e sacrifícios. As formas de vida e algumas práticas indígenas eram consideradas, pelos conquistadores, como verdadeiras injúrias a Deus. A utilização desse argumento era tão poderosa que serviu para justificar, inclusive, a prática de guerra mesmo que na ausência de resistência à evangelização. Da mesma forma, tais práticas culturais possibilitaram que Sepúlveda fosse buscar em Aristóteles o argumento de autoridade para sustentar a propensão natural dos índios à escravidão (POUMARÉDE, 2004, p. 118). Assim manifestou-se Sepúlveda, afirmando a inferioridade humana dos gentis:

A esta lei estão submetidos os homens e os animais. Por isso, as feras se amansam e sujeitam-se ao império do homem. Por isso, o varão impera sobre a mulher, o homem adulto sobre a criança, o pai sobre os filhos, quer dizer, os mais poderosos e mais perfeitos sobre os mais débeis e imperfeitos. Isso mesmo se verifica entre os homens; alguns, por natureza, são senhores, outros, por natureza, são servos. Os que excedem em prudência e em gênio aos demais, ainda que não em força corporal, são por natureza senhores; pelo contrário, os tardios e preguiçosos de entendimento, mesmo que tenham forças corporais para cumprir todas as obrigações necessárias, são por natureza servos e é justo que o sejam, pois está sancionado pela lei divina. Porque está escrito no livro dos Provérbios: aquele que é néscio servirá ao sábio. Tais são as gentes bárbaras e inumanas, alheias à vida civil e aos costumes pacíficos. E será sempre justo e conforme ao direito natural que tais gentes se submetam ao império dos príncipes e nações mais cultas e humanas, para que, sob suas leis e suas virtudes, deponham a barbárie e se reduzam à vida mais humana e ao culto da virtude (SEPÚLVEDA, 1941, p. 85).

Para Sepúlveda, a natureza bárbara e servil dos índios forçava-os à escravidão e qualquer resistência legitimava a investida violenta da guerra, que era justa por natureza. A condição de superioridade humana conferia aos espanhóis o poder de imperar sobre os índios do Novo Mundo, todos bárbaros, torpes e incultos. A sua barbárie era atribuída à carência de razão natural, pois eram homens de pouca capacidade e de perversos costumes, como idolatria, antropofagia, abortos e crimes sexuais. A escravidão e a guerra tinham, como maior objetivo, não os obrigar à conversão à fé cristã, mas forçá-los a afastarem-se dos crimes e idolatrias. Quanto à evangelização, apesar de Sepúlveda considerar vã a imposição da fé pela força, alegava que existiam dois caminhos para a conversão dos bárbaros: o da prédica pura e simples, apesar de seus obstáculos e dificuldades, ou a subjugação pelas armas, em que, na condição de vencidos, seriam obrigados a fazer aquilo que lhes era ordenado (BRUIT, 1995, p. 132-6).

Já a convivência de Bartolomé De Las Casas com os índios e o testemunho da crueldade imposta pelos conquistadores tornaram-no o grande porta-voz da causa indígena. Em seus relatos, retratou as misérias de que padeciam os gentis, descrevendo a condição de animais a que se encontravam reduzidos, bem como a sua quase dizimação em poucos anos de conquista hispânica (LAS CASAS, 1986, p. 438). Também inspirado por Aristóteles , para quem todas as coisas obedecem ao desenvolvimento da natureza que, por sua vez, é orientada a um fim, que é a eudaimonia , e que o homem é um animal político, cujo progresso depende do curso da natureza, Las Casas considerava que o natural era uma propriedade universal única, imutável, inalterável, mesmo frente ao pecado, e que constituía a essência das coisas. Assentado na premissa de que o natural era comum a todos os seres humanos, Las Casas fundamentou o princípio da igualdade, independente de seu grau civilizatório . Logo, para Las Casas, o pecado da idolatria e dos sacrifícios humanos não alterava a essência humana dos indígenas (BRUIT, 1995, p. 91).

O dominicano não aceitava a imposição forçada do Evangelho aos índios, reconhecendo-lhes a liberdade de se recusarem a ouvi-lo. Para Las Casas, os caminhos da colonização limitavam-se a apenas um: o da evangelização, que, por outro lado, não poderia ser imposta contra a vontade, pois a jurisdição do Papa sobre os infiéis não era igual a que tinha sobre os cristãos. Sobre esses, entendia que se tratava de uma jurisdição em ato, podendo ser exercida a qualquer momento, ao passo que em relação aos infiéis se tratava de uma jurisdição in habitu, ou seja, se dava mediante sua vontade e consentimento. Com isso, Las Casas esvaziava a autoridade dos Reis Espanhóis em todos os casos em que os índios se recusassem a ouvir ou a aceitar o Evangelho, pois a eles reconhecia dignidade, enquanto indivíduos, e soberania, enquanto povo. O domínio só podia ser consequência do reconhecimento e da aprovação da nova religião por parte dos índios, pois a descoberta não dava nem à Igreja, nem aos Reis de Castela, nenhum direito sobre os gentis. A concessão aos colonos espanhóis de direitos sobre os índios foi amplamente deslegitimada pelos argumentos de Las Casas (BRUIT, 1995, p. 115). 

As ideias sustentadas por Las Casas inseriam-se na linha das ideias dos eminentes intelectuais da Escola de Salamanca, entre eles, Francisco de Vitória e Domingos de Soto, as quais formam parte de uma importante contribuição para a construção histórica dos direitos humanos. Para seus contemporâneos, para os séculos seguintes e até hoje, Vitória e Las Casas construíram uma visão global e uma crítica profunda do processo de colonização (JOSAPHAT, 2000, P. 279). Na Universidade de Salamanca, criaram-se novos significados para o poder do Papa e do Rei. Questionou-se, de um lado, a legitimidade do poder papal ou temporal para impor a servidão e a evangelização aos povos autóctones e, de outro, discutiu-se profundamente capacidade de autogoverno dos indígenas, ou seja, se eles possuíam ou não capacidade para fazer uso da razão. Estas questões desencadearam acirrados debates filosóficos, que resultaram em discursos alternativos, no intuito de desconstruir a legitimação da dominação europeia sobre os povos indígenas (RUIZ, 2007). 

Francisco de Vitória foi um professor universitário e, desde sua cátedra de filosofia, envolveu-se na polêmica nacional e internacional sobre a legitimidade da conquista espanhola, assumindo a defesa dos indígenas (RUIZ, 2007). Na perspectiva da ordem racional e do direito natural, Francisco de Vitória refutava todos os títulos em que se baseava a Coroa Espanhola para submeter as populações bárbaras das Índias Ocidentais, desfazendo o feixe de legitimações da colonização (JOSAPHAT, 2000, p. 280). 

Em suas Relecciones, Vitória (1974, p. 37-58) enumerou sete títulos, a seu ver ilegítimos, a partir dos quais os espanhóis respaldavam a prática de subjugação dos “bárbaros do Novo Mundo”, a saber: senhorio universal do Imperador sobre o Mundo, autoridade civil ou temporal do Papa sobre o Mundo, o direito de descobrimento, obrigação dos bárbaros em receber a fé de Cristo, os pecados dos bárbaros, a eleição voluntária dos reis espanhóis pelos gentis e a doação especial de Deus daquelas terras aos reis espanhóis. Todos esses títulos foram rejeitados por Vitória, pois ele pressupunha que “ni el pecado de infidelidad ni otros pecados mortales impiden que los bárbaros sean verdaderos dueños o señores, tanto pública como privadamente, y no pueden los cristianos ocuparles sus bienes por este título” (VITÓRIA, 1974, p. 33).  

Ademais, considerava que “antes de la chegada de los españoles eran ellos verdaderos señores, pública e privadamente” (VITÓRIA, 1974, p. 36). Vitória não considerava os índios uma espécie de sub-homens, equivalentes às crianças ou aos dementes, pois o que os diferenciava dos espanhóis era apenas o exercício peculiar da razão, ou seja, um uso a seu modo (VITÓRIA, 1974, p. 35). Interessante observar que os mesmos pretextos da conquista examinados e deslegitimados por Vitória foram, por Sepúlveda, considerados válidos (CARRO, 1944, p. 55).

Porém, Vitória entendia que, a despeito da ilegitimidade dos títulos comumente invocados pela Coroa Espanhola, a colonização apoiava-se, ainda assim, em títulos legítimos. O primeiro derivava do ius comunicationis, ou seja, o direito natural dos indivíduos de ir e vir para todos os lugares (JOSAPHAT, 2000, p. 280; POUMARÉDE, 2004, p. 120). Em suas Relecciones, Vitória expressa esse ponto de vista:

El primer título puede nombrarse de la sociedad y comunicación natural. Y acerca de esto aí la primera conclusión: Los españoles tienen derecho de recorrer aquellas provincias y de permanecer allí, sin que puedan prohibírselos los bárbaros, pero sin daño algunos de ellos (VITÓRIA, 1974, p. 60).

Em razão do direito de comunicação natural, Vitória não reconhecia aos índios o direito de impedir a ocupação dos espanhóis e, caso isso acontecesse, reconhecia o direito dos espanhóis, fundado no direito das gentes, de “cargar sobre ellos todo el peso de la guerra, despojarlos e reducirlos a cautiverio, destituir a los antiguos señores y estabelecer otros nuevos; pero moderadamente y según la calidad del asunto y de las injurias” (VITÓRIA, 1974, p. 65). Portanto, ninguém poderia impedir os espanhóis de manter relações comerciais com os índios e de usufruiur o que ganhassem com seus esforços (POUMARÉDE, 2004, p. 120). Os demais títulos, havidos por legítimos, segundo Vitória, desenvolviam os aspectos práticos deste primeiro, desdobrando-o como um princípio de reciprocidade na prática do livre intercâmbio e do livre comércio (JOSAPHAT, 2000, p. 281). Dentre esses, destaca-se o título da “propagación de la religión cristiana”, em favor da qual “los cristianos tienen derecho de predicar y de anunciar el Evangelho en las provincias de los bárbaros” (VITÓRIA, 1974, p. 65). 

Partindo do conceito de guerra justa, Vitória admitia o uso da força, caso os bárbaros impedissem os espanhóis de anunciar livremente o Evangelho, mas rejeitava o uso da mesma para obrigar os índios a aceitarem a conversão, ao contrário de Las Casas, que refutava a prédica do Evangelho aos índios, caso os mesmos não quisessem ouvi-la (BRUIT, 1995, p. 99). A fé, portanto, legitimava, segundo Vitória, a sujeição dos bárbaros aos espanhóis, o que configurava, segundo assevera Josaphat, uma lastimável contradição de Vitória, que, fugindo aos princípios do direito natural de que foi pioneiro, aceitou e justificou que o Papa, em favor da fé, pudesse converter à força os infiéis (JOSAPHAT, 2000, p. 281). Não obstante esse entendimento, Vitória se empenhou em construir um discurso filosófico que respaldasse o direito dos índios, por meio do que ele chamou de direito de gentes, um direito positivo que tivesse, como base, o respeito aos direitos naturais, universais e invioláveis aos quais devia reportar-se qualquer forma de direito positivo (RUIZ, 2007).

Domingo de Soto, eminente discípulo de Vitória, também desempenhou importante papel na desconstrução do discurso legitimador da dominação da Coroa Espanhola sobre os índios. Além de sua participação como membro nas Juntas de Valladolid, Soto, influenciado por Francisco de Vitória, contribuiu, significativamente, no questionamento da legitimidade das conquistas do além-mar, construindo sua doutrina sobre a concepção de poder político. A questão-chave de sua obra cingia-se à legitimidade e ao alcance dos títulos de dominação nos territórios conquistados. Em um primeiro momento, Soto entendia que o direito de pregar o Evangelho e o direito à legítima defesa, frente aos que impedissem tal pregação, seriam títulos legítimos de intervenção. Porém, fora dos casos de uma guerra defensiva, Soto não vislumbrava qualquer direito que justificasse a privação dos bens dos índios e a submissão dos mesmos ao poder da Coroa (CARRO, 1944, p. 60). Acreditava que nenhum título legítimo respaldava a evangelização forçada, porém não condenou severamente a conquista (IGLESIAS, 2004, p. 196).

Soto não admitia que se obrigassem os infiéis a abraçar a fé, pois a Bula Inter Caetera não legitimava a dominação dos índios, visto que nem de direito, nem de fato, estavam submetidos à jurisdição cristã, ou seja, sobre eles o Papa não tinha jurisdição (IGLESIAS, 2004, p. 206). De modo que o título de conquista sobre os indígenas americanos era ilegítimo diante da impossibilidade de o Papa outorgar aos reis espanhóis um poder que não possuía (CARRO, 1944, p. 66). Ainda que Soto não visse na Bula Papal um fundamento válido para a conquista, nem por isso negava a licitude da conquista, pois admitia como legítimos o direito a pregar o Evangelho e de defender aos que opusessem a tal pregação. Para Soto, a conquista não podia ser o objeto de um direito direto e absoluto, mas legitimado apenas quando a razão e as condições de evangelização lhe fizessem necessárias (IGLESIAS, 2004, p. 214).

Foram significativas as contribuições de Las Casas e dos intelectuais de Salamanca para o processo de valorização e de reconhecimento da alteridade dos índios, veiculadas como reação a um processo cruel de exploração e aniquilamento desses povos promovido pelos efeitos de colonização perpetrada em nome da evangelização. Bruit resume, em sete pontos, as linhas gerais de pensamento da escola de Salamanca:

1. Todos os homens são especificamente iguais por serem criaturas de Deus. Os direitos e deveres naturais dos homens são independentes de sua cultura, religião, cor e regime político. Todos os direitos e deveres são inerentes e consubstanciais à natureza humana, devido à qual não há desigualdade entre cristãos e infiéis.

2. O homem é um cidadão do mundo e em nenhum lugar deve ser considerado estrangeiro; pode imigrar e estabelecer-se em outros territórios, portanto, os índios podem vir à Espanha e os espanhóis para a América.

3. A liberdade e a independência dos povos é comum a todos. Os infiéis são tão livres e independentes como os cristãos. E os índios não perderam nenhum direito com a chegada dos espanhóis.

4. A conquista prévia não é lícita, nem ao menos para propagar a fé cristã. A evangelização terá de fazer-se com os métodos pacíficos e não se pode forçar os índios a aceitarem a fé.

5. O Papa tem a suprema potestade espiritual e sua missão estende-se a todo o Universo, mas não tem poder temporal. O Papa não pode doar a América aos reis espanhóis, mas sim encomendar-lhes a obra missional.

6. As guerras feitas sem motivo justo não conferem nenhum direito.

7. No governo das Índias, deve procurar-se o bem dos súditos. O rei é para o povo e não o contrário (BRUIT, 1995, p. 98).

As teorias políticas, concebidas pelos juristas e teólogos espanhóis contemporâneos à conquista da América, foram de suma importância para o desenvolvimento de um discurso de legitimação da prática dos direitos humanos.

 

4.- O impacto dos debates hispânicos para o nascimento dos direitos humanos

As discussões das Juntas de Valladolid, em 1551, onde se investigou a possibilidade ou o dever de se recorrer às armas para preparar os caminhos da colonização, resultaram, de forma pragmática, na proibição das guerras de conquista como instrumento prévio para a evangelização (JOSAPHAT, 2000, p. 122). As prescrições foram instituídas nas chamadas Leis de Índias  que, embora tenham legitimado o fato da conquista, estabeleceram alguns limites para os conquistadores e direitos em favor dos povos indígenas (CARRO, 1944, p. 68). Em outros territórios da América, como nos territórios portugueses, não houve este tipo de experiência, razão por que a escravidão do índio era permitida e incentivada pela coroa portuguesa como uma prática legal (RUIZ, 2007).

Mesmo tendo surtido efeitos práticos, ainda que de pouca amplitude no que concerne à efetiva proteção dos índios, o que se destaca dos debates deflagrados pela Escola de Salamanca, sobretudo nas Juntas de Valladolid, é a sua singularidade e o seu conteúdo eminentemente ético, sem similares em qualquer outro império colonialista europeu. Os questionamentos em torno do direito dos espanhóis sobre os índios eram uma contestação ao direito do mais forte e a afirmação da alteridade do outro. Logo, esses debates contribuíram de forma decisiva para a afirmação dos direitos humanos e de seu caráter ético (NINO, 1989), ao defenderem o direito do estrangeiro, do pobre, do fraco e daquele que era qualificado ou desqualificado como infiel. 

A afirmação de que o índio não era menos humano que o conquistador europeu e, por isso, tão digno de respeito e consideração quanto qualquer outro povo da Terra, resultou de intensos debates e decorreu das concepções universalistas sobre a natureza humana. Segundo Frei Carlos Josaphat :

A audácia expansionista, em busca de ouro e da dilatação do império, em contraste com a estreiteza dos egocentrismos, dos etnocentrismos, dos racismos que desconhecem o outro e estigmatizam as diferenças, tal é o amplo contexto que marca a pré-história dos Direitos Humanos, bem no centro da aventura grandiosa dos descobrimentos, esse choque entre a capacidade de sair de si, de alargar suas próprias fronteiras, e a incapacidade de encontrar e acolher o outro assinala a carência do que há de essencial na convivência dos homens e dos povos. Ela estava a exigir a universalização do pensar, do sentir e do viver, da cultura e dos vínculos sociais que lhe dão consistência, fazendo-a partilhar uma civilização do consenso e da solidariedade  (JOSAPHAT, 2000, p. 22).

Os desdobramentos mais significativos destes debates ocorreram, posteriormente, nos séculos XVII e XVIII, na construção dos novos discursos sobre os direitos naturais, os direitos do cidadão e os direitos humanos. Esses discursos recolheram as reflexões, elaboradas pelos pensadores da Escola de Salamanca, sobre a natureza humana, o estado de natureza, os direitos naturais, o direito de gentes, sofrendo uma intensa elaboração até constituir o que pode ser considerado o discurso moderno sobre os direitos humanos (RUIZ, 2007). As principais questões que perpassaram o debate dos juristas e teólogos espanhóis do século XVI – legitimação do poder e conceito de guerra justa – modificaram profundamente a concepção sociopolítica dos direitos individuais e sociais, antecedendo, em vários séculos, as transformações político-econômicas que deram origem ao moderno conceito de sociedade e de homem. Francisco de Vitória foi um ferrenho defensor da tese segundo a qual a sociedade política era criação dos próprios homens, capazes de aplicar a lei natural intrínseca a eles mesmos. Essas discussões levaram às concepções de Estado de natureza, contrato social e Estado Civil que, mais tarde, foram esmiuçadas por Locke, Rousseau e Kant (BRUIT, 1995, p. 96).

Pensar a sociedade política, como resultado de uma criação humana e não como decorrência da vontade divina, e o governo e as leis, como produtos do consenso dos homens unidos em sociedade, abalou profundamente as bases da conquista da América e das guerras contra os índios. A legitimidade do título de conquista, representado principalmente pela Bula Inter Caetera, foi profundamente abalada pela nova verdade proposta pelos juristas e teólogos espanhóis que, primeiramente, reconheceram nos índios um igual e, após, reconheceram a sua capacidade e autonomia para formar sua própria sociedade política, sendo ilegítimo qualquer poder que não decorresse diretamente de sua vontade. Embora esse discurso não tenha sido capaz de conter a exploração política e econômica do Novo Mundo e tampouco o maior genocídio da história, ele constituiu uma tentativa de amenizar as práticas abusivas contra os índios, proscrevendo-se, de modo geral, os abusos e a exploração, com a não aceitação de guerras injustas e escravidão.

Os debates surgidos no contexto da colonização espanhola na América legaram decisivas contribuições para a afirmação do caráter ético dos direitos humanos. Ao mesmo tempo em que estes debates produziram substratos teóricos para deslegitimar as práticas de imposição de poder contra os indígenas, contribuíram para uma compreensão mais adequada sobre o fundamento dos direitos humanos contemporâneos. 

Direitos humanos, como hoje os concebemos, são o produto de uma tensão histórica entre detentores de poder, de um lado, e seres humanos invisibilizados na (e pela) história. São, portanto, o produto de lutas por reconhecimento de uma humanidade negada. O que os debates da conquista nos mostram é exatamente o fato de que para se negar direitos humanos, é preciso criar estratégias de inferiorização do(s) outro(s). Nega-se, portanto, a sua humanidade. Em Francisco de Vitória, o reconhecimento da alteridade se realiza a partir da reivindicação do poder natural de cada pessoa para se autogovernar (RUIZ, 2004, p. 265). Daí a importância de se retomar as contribuições da Escola de Salamanca, não somente pelo interesse histórico que suscitam, mas pela necessidade de se construir um discurso sólido de verdade que fundamente o reconhecimento dos direitos humanos na contemporaneidade.

 

Considerações finais

A partir da pesquisa realizada, conclui-se que é possível rediscutir o problema da legitimação ou fundamentação dos direitos humanos, a partir dos aportes filosóficos encontrados no episódio do processo de conquista da América, onde foi flagrante a utilização da violência contra os povos indígenas, caracterizada como uma brutal desconsideração de sua dignidade. Observou-se que as práticas violentas e, em muitos casos, dizimadoras, eram amplamente legitimadas pela premissa da inferioridade dos povos do Novo Mundo. 

Esse discurso constituiu-se como verdade, até o processo de deslegitimação sofrido com as teses então inovadoras dos padres evangelizadores e dos intelectuais de Salamanca, permeadas por elementos eminentemente éticos. Por outro lado, a rediscussão das bases dos direitos humanos mostra-se necessária diante da notória incapacidade dos mecanismos jurídicos de lidarem com a questão, demorando ou negligenciando na função de dar respostas para as violências cometidas contra os portadores de tais direitos. 

O estudo aprofundado da conquista da América consubstancia, assim, um importante aporte para a construção de uma visão ética e menos dogmática do tema, auxiliando na compreensão mais autêntica dos direitos humanos.

 

Referências Bibliográficas

BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2000.

BLASCO SOTO, María del Carmen. “Francisco Suaréz: su influencia juridica en el novo mundo”. PASIN, João Bosco Coelho (org.). Culturalismo Jurídico: São Paulo 450 anos: Seminário Brasil Espanha. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 2004. p. 191-220.

BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las casas e a Simulação dos Vencidos. São Paulo: Iluminuras, 1995. 

CARRO, Venancio Diego. Domingo de Soto y su doctrina juridica. 2. ed. Madrid: [s.n], 1944. 

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Jaime A. Classen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

HESPANHA, Antonio Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. 2. ed. Portugal: Publicações Europa-América, 1998.

IGLESIAS, Miguel Ángel Gonzáles. “Domigo de Soto: su pensamiento político. Las dificuldades planteadas com la conquista de América”. PASIN, João Bosco Coelho (org.). Culturalismo Jurídico: São Paulo 450 anos: Seminário Brasil Espanha. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 2004. 

JOSAPHAT, Frei Carlos. Las Casas. Todos os Direitos para todos. São Paulo: Loyola, 2000. 

KELLY, J. N. D. "Alexander VI".  In: The Oxford Dictionary of Popes. Oxford University Press Inc. Oxford Reference Online. Oxford University Press.  Birkbeck College.  22 March 2012.  

LAS CASAS, Bartolomé De. Historia de las Indias II. México: Fondo de Cultura Economica, 1986. 

MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Editora Moraes, 1970.

NINO, Carlos Santiago. Ética y Derechos Humanos. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1989. 

POUMARÉDE, Jacques. “Enfoque histórico do direito das minorias e dos povos autóctones”. ROULAND, Norbert. Direito das Minorias e dos Povos Autóctones. Brasília: Universidade de Brasília, 2004. 

RUIZ, Castor M. M. Bartolomé. Os direitos humanos no descobrimento da América: verdades e falácias de um discurso. Estudos Jurídicos. São Leopoldo, v. 40, n. 2, p. 60-65 jul./dez. 2007.  

______. Os Labirintos do Poder. O poder do simbólico e os modos de subjetivação. Porto Alegre: Escritos, 2004. 

SEPÚLVEDA, Juan Ginés de. Tratado sobre las justas causas de la guerra contra los indios. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1941. 

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 3. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003.

VITÓRIA, Francisco de. Relecciones del Estado, de los Indios y del derecho de la guerra. México: Porrúa, 1974.

 

Leia mais…

-Conflitos Guarani Kaiowá: descolonizar é preciso. Entrevista especial com Fernanda  Frizzo Bragato publicada na revista IHU On-Line, nº 477, de 16-11-2015.

- A construção permanente dos sentidos dos Direitos Humanos. Entrevista especial com Fernanda Frizzo Bragato publicada nas Notícias do Dia, de 16-11-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A diversidade cultural negada pela modernidade. Entrevista especial com Fernanda  Frizzo Bragato publicada na revista IHU On-Line, nº 431, de 04-11-2013.

- Obra de Douzinas aposta na construção do ser no outro. Entrevista especial com Fernanda  Frizzo Bragato e Ricardo Sanin publicada na revista IHU On-Line, nº 293, de 18-05-2009..

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição