Edição 487 | 13 Junho 2016

Entre o tratamento e o aprimoramento humano

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Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

Marcelo de Araujo reflete sobre as implicações que há em utilizar técnicas ou medicamentos para aprimorar e tornar ainda mais potentes aptidões humanas

O sul-africano Oscar Pistorius, antes de se envolver no assassinato de sua namorada, suscitou polêmica entre os maratonistas de competições olímpicas. Com as duas pernas amputadas quando ainda bebê, ele faz das suas próteses extensões do corpo. Pelos resultados que alcança, deixa as competições de paratletismo e passa a disputar com atletas “normais”, não amputados. Não demorou, porém, para que suas próteses passassem a ser vistas como vantagem sobre os demais atletas. Essa história de Pistorius revela o momento em que o homem supera a barreira do tratamento e se inscreve no aprimoramento. É nesse instante que o filósofo Marcelo de Araujo, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, insere sua reflexão. Assim como algumas drogas, as próteses surgem para corrigir, ou tratar, deficiências em seres humanos. Porém, logo se abre outro horizonte, o de aprimoramento. “‘Tratar’ uma pessoa significa fazer com que ela tenha um rendimento físico ou cognitivo similar ao de uma pessoa normal. ‘Aprimorar’ significa elevar o rendimento físico ou cognitivo de uma pessoa saudável a um nível superior ao considerado normal”, explica o professor.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Araujo reconhece a legitimidade em buscar esse tratamento. Entretanto, complexifica: “é claro que as pessoas são livres para buscar tratamentos para cuidar de suas enfermidades, e que o Estado tem alguma obrigação de proporcionar certos tipos de tratamento. Mas as pessoas devem também ter o direito de buscar aprimoramento? E seria obrigação do Estado garantir o aprimoramento de seus cidadãos? Essas são algumas das questões morais que o debate sobre aprimoramento humano envolve”. É claro que essas questões são parte de uma discussão. Afinal, ainda há dúvidas sobre a eficácia de drogas para tratamento em situações de aprimoramento. “Não há ainda um conhecimento sistemático sobre a efetiva capacidade que elas teriam de proporcionar algum tipo de melhoramento cognitivo”, pondera Araujo.

Marcelo de Araujo possui graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, doutorado em Filosofia pela Universität Konstanz, da Alemanha, 2002. Atualmente, é professor de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e professor adjunto de Filosofia do Direito da UFRJ. Sua pesquisa filosófica se concentra nas áreas de ética, filosofia política e filosofia do direito.

 

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Qual a questão de fundo que está por trás do debate em torno das smart drugs?

Marcelo de Araujo - Acredito que haja várias questões envolvidas no debate sobre smart drugs. Uma questão básica diz respeito à liberdade de acesso a drogas que, possivelmente, teriam a capacidade de aumentar a capacidade cognitiva das pessoas: a capacidade de se manter focadas sobre um problema durante várias horas de trabalho, a capacidade de memorizar melhor um determinado conteúdo etc. O problema é que algumas drogas conhecidas como smart drugs, como por exemplo Ritalina  (metilfenidato) e Stavigile (modafinil) , não foram criadas para funcionar como smart drugs. Elas foram criadas para o tratamento de distúrbios como hiperatividade e narcolepsia. Mas quando usadas por pessoas que não sofrem de hiperatividade e narcolepsia, aparentemente, e segundo o relato de muitas pessoas, essas drogas teriam a capacidade aumentar nossa capacidade cognitiva. 

Ninguém negaria que pessoas realmente diagnosticadas com hiperatividade ou narcolepsia devam ter acesso a essas drogas. Mas pessoas adultas, que não sofrem de hiperatividade ou narcolepsia, deveriam também ter o direito de adquirir livremente essas drogas, ciente dos riscos envolvidos? Acredito que sim, mas todo o problema é saber quais são de fato os riscos envolvidos. Como essas drogas não foram criadas para funcionar como smart drugs, não há ainda um conhecimento sistemático sobre a efetiva capacidade que elas teriam de proporcionar algum tipo de melhoramento cognitivo.

E mais importante ainda: não há ainda estudos sistemáticos sobre seus efeitos de longo prazo sobre o organismo humano. Talvez uma forma de lidar com o problema relativo à falta de informações sobre a eficácia e segurança de algumas substâncias conhecidas como smart drugs seria estimular o debate sobre esse tema e incentivar a pesquisa científica sobre drogas que, aparentemente, teriam a capacidade de melhorar nossas faculdades cognitivas. 

Doping

Outra questão envolvida no uso de smart drugs é a pergunta sobre se elas não seriam uma forma de doping. Se smart drugs se mostrarem de fato eficazes e seguras, seria moralmente aceitável, por exemplo, que um estudante obtivesse uma nota superior à nota de outros estudantes porque ele ou ela fez uso de smart drugs durante os estudos? Algumas pessoas compararam o uso de smart drugs nas universidades ao doping nos esportes.

No entanto, essa comparação me parece equivocada. Muitas pessoas já usam, por exemplo, café para se manter acordadas e focadas nos estudos, sem que isso seja visto como um problema. 

Pressão social

Uma outra questão envolvida no uso de smart drugs é a seguinte: pessoas que, em princípio, não teriam nenhum interesse em usar essas drogas poderiam acabar sofrendo uma pressão social para usá-las também, se a maior parte das outras pessoas fizerem uso de smart drugs para, por exemplo, terem um rendimento maior nos estudos ou no trabalho. Em outubro deste ano essa questão foi formulada, por exemplo, por um comitê da UNESCO formado por filósofos, juristas, cientistas e representantes de Estados. Há um trecho do documento da UNESCO que afirma o seguinte: "Isso [o aprimoramento humano] introduz o risco e novas formas de discriminação e estigmatização daqueles que não podem arcar com os custos de tal aprimoramento, ou simplesmente não querem recorrer a ele".

Embora o documento da UNESCO tenha especificamente em vista o "aprimoramento humano" (human enhancement) por meio de manipulação do genoma humano, o problema levantado se aplica também, a meu ver, ao uso de drogas para aumentar a nossa capacidade cognitiva. Por outro lado, é importante notar que outras tecnologias já têm se mostrado capazes de exercer alguma forma de "pressão social" nas últimas décadas, sem que seja claro se isso é moralmente condenável. Por exemplo: um estudante que, nos dias de hoje, não possui um computador, ou acesso à internet, certamente estará em desvantagem frente a outros estudantes. Ele ou ela terá menos acesso às informações indispensáveis à sua área de formação, e estará também excluído da rede de comunicações imprescindíveis à prática da pesquisa científica.

É claro então que há uma "pressão social" para que todos os estudantes façam uso de computadores conectados à internet, e é claro também que algumas empresas como Google, Apple ou Microsoft lucram muito com isso. Mas disso não se segue, a meu ver, que a disseminação do uso de computadores e de tecnologias para comunicação tornou a nossa sociedade mais injusta. Se um dia smart drugs se tornarem realmente seguras e eficazes, é possível que muitas pessoas acabem se sentindo "forçadas" a fazer uso delas, da mesma forma que muitas pessoas se sentem hoje "forçadas" a ter, no mínimo, um número de celular e um endereço de e-mail para poder se candidatar a um emprego. Contudo, não me parece claro que esse "estar forçado a" represente uma grave forma de opressão ou um tipo de injustiça social.


IHU On-Line – De que forma as smart drugs se relacionam com as discussões sobre o "pós-humanismo" e o "transumanismo"?

Marcelo de Araujo – O uso de smart drugs é descrito no debate filosófico contemporâneo como um tipo específico de "aprimoramento cognitivo" (cognitive enhanacement). E o "aprimoramento cognitivo", por sua vez, é um capítulo específico de um debate filosófico mais amplo: o debate sobre "aprimoramento humano" (human enhancement). Há diferentes modalidades de "aprimoramento humano": aprimoramento de nossas capacidades físicas, de nossas capacidades cognitivas, ou talvez até mesmo, como já sugerem alguns filósofos, de nossas capacidades morais. 

Na busca pelo "aprimoramento humano", diferentes tipos de tecnologias podem ser empregadas: próteses que tornam as pessoas mais fortes e velozes, drogas para aumentar a capacidade de concentração e memorização, ou operações cirúrgicas para melhorar a visão acima do que seria considerado normal.  Mas as pessoas "aprimoradas" continuariam sendo seres humanos. Elas seriam apenas mais fortes, mais inteligentes e teriam uma visão melhor do que a de outros seres humanos.

Entretanto, algumas pessoas já se perguntam também se não seria possível, no futuro, criar outras capacidades, se não seria possível modificar a natureza humana e ingressarmos numa era "pós-humana" em que as pessoas se tornariam "transumanas".  Esse parece um cenário de ficção científica, sem dúvida. Mas diferentemente de smart drugs, cujo efeito é provisório, algumas tecnologias já podem ser integradas ao corpo humano como, por exemplo, as próteses auditivas do tipo "coclear". Já é possível também implantar no cérebro sensores que permitem a uma pessoa ativar "por pensamento" um braço mecânico.

Interface Cérebro Máquina - ICM

Esse tipo de tecnologia é conhecido na literatura científica como ICM (interface-cérebro-máquina).  A ICM foi usada com sucesso em 2012 em uma mulher que sofrera um acidente vascular cerebral que a deixou paralisada do pescoço para baixo.

Miguel Nicolelis , cientista brasileiro radicado nos EUA, publicou em 2009 na revista Nature um artigo sobre o uso de ICM em macacos.  Agora imaginemos um cenário em que as pessoas tenham cada vez mais, integradas em seus corpos, sensores, próteses, chips etc. E acrescentemos a esse cenário uma interação cada vez maior das pessoas com máquinas dotadas de inteligência artificial: até que ponto as pessoas ainda preservarão a sua identidade como "seres humanos"?

Edição do genoma humano

Mas, talvez, as tecnologias que se mostrem mais relevantes para o debate sobre "pós-humanismo" e "transumanismo" sejam aquelas que permitem a "edição" do genoma humano. Em Abril de 2015, cientistas chineses publicaram um artigo em que afirmam ter empregado CRISPR-Cas9, um novo método para edição de genoma, em 86 embriões humanos.  Os embriões usados no experimento eram "não viáveis", o que significa que não poderiam se desenvolver e formar um feto. O experimento tinha como objetivo investigar a possibilidade de curar doenças congênitas tais como beta-thalassemia , Tay-Sachs , fibrose cística, hemofilia etc.

A simples possibilidade de que, no futuro, essa mesma tecnologia possa vir a ser usada para modificar o genoma humano e criar seres humanos "aprimorados", ou seres "transumanos", já foi suficiente para gerar um grande debate entre filósofos, cientistas e representantes de Estados sobre a moralidade da edição do genoma humano. Trata-se de um debate ainda em curso, mas que, aparentemente, ainda não teve muitos reflexos no Brasil.


IHU On-Line – Retomando um pouco a questão de fundo que orienta o debate moral acerca do tema, o que é considerado, atualmente, aprimoramento/melhoramento humano? O que de fato isso significa?

Marcelo de Araujo – O debate sobre aprimoramento ou melhoramento humano (human enhancement) parte de uma distinção básica: a distinção entre "tratamento" e "melhoramento" (ou "aprimoramento"). "Tratar" uma pessoa significa, de modo geral, fazer com que ela tenha um rendimento físico ou cognitivo similar ao de uma pessoa normal, ou seja, uma pessoa mais ou menos da mesma idade, e que não tenha nenhum problema físico ou cognitivo. "Aprimorar" (ou "melhorar"), no sentido relevante para o debate filosófico, significa elevar o rendimento físico ou cognitivo de uma pessoa saudável a um nível superior ao considerado normal.

É claro que nem sempre é inteiramente claro o que deve ser considerado normal, mas a distinção é, a meu ver, um bom ponto de partida para a discussão. Se uma pessoa sofre de Alzheimer e tem a sua capacidade cognitiva prejudicada, isto é, se ela tem, por exemplo, problemas de memória, então ela pode ser "tratada". O tratamento tem como objetivo permitir que ela tenha basicamente a mesma capacidade cognitiva de pessoas de sua faixa etária que não sofrem de Alzheimer ou outro tipo de doença semelhante.

Aprimoramento ou melhoramento, por outro lado, consiste em buscar um rendimento cognitivo ou físico acima do rendimento considerado normal. Isso geralmente é feito com as mesmas tecnologias, ou com os mesmos medicamentos usados para fins de tratamento. É claro que as pessoas são livres para buscar tratamentos para cuidar de suas enfermidades, e que o Estado tem alguma obrigação de proporcionar certos tipos de tratamento. Mas as pessoas devem também ter o direito de buscar aprimoramento? E seria obrigação do Estado garantir o aprimoramento de seus cidadãos? Essas são algumas das questões morais que o debate sobre aprimoramento humano envolve.


IHU On-Line – Como a nanotecnologia e biotecnologia diferem de tecnologias já seculares de melhoramento de nossas limitações físicas, como, por exemplo, o uso de próteses e até mesmo de óculos?

Marcelo de Araujo – Próteses e óculos são tecnologias antigas, e que vão se tornando cada vez mais sofisticadas. Contudo, próteses e óculos não são exatamente tecnologias para "melhoramento", pelo menos não no sentido em que a palavra "melhoramento" (enhancement) vem sendo usada no debate filosófico contemporâneo. Próteses e óculos têm uma função "restaurativa" ou "corretiva". A ideia é que próteses e óculos permitam que as pessoas que sofrem de algum tipo de limitação motora ou visual possam ter um desempenho tão bom (ou quase tão bom) quanto o desempenho das pessoas que não precisam usar óculos ou próteses.

Entretanto, no debate filosófico contemporâneo, a palavra "melhoramento", como mencionei anteriormente, designa o uso de tecnologias que nos permitem ter um desempenho superior àquele considerado normal. Não se trata, portanto, de simplesmente restaurar ou corrigir o desempenho de um órgão natural que não está funcionando como deveria. Trata-se de fazer com que um órgão natural perfeitamente saudável possa ter um desempenho superior ao desempenho considerado normal.

A despeito de toda a sofisticação que próteses ou óculos possam ter contemporaneamente, trocar membros naturais por membros artificiais ainda não é realmente uma opção atrativa. Contudo, a meu ver, é apenas uma questão de tempo até que próteses e órgãos artificiais se tornem de tal modo sofisticados e integrados ao corpo humano que muitas pessoas possam seriamente se perguntar se não prefeririam colocar uma prótese no lugar de um braço ou perna saudáveis.

Homem máquina

Um cenário como esse foi muito bem descrito em uma obra de ficção recente intitulada O Homem Máquina (2011), do escritor australiano Max Barry.  O livro conta a história de Charles Neumann, um engenheiro que perde uma perna num acidente em seu laboratório. Depois de receber sua primeira prótese ele começa a fazer modificações e aperfeiçoamentos na prótese até que ele desenvolve uma versão tão boa que ele resolve amputar a outra perna para ter duas pernas artificiais. Depois ele amputa também uma mão, e depois o braço, e assim por diante. O livro, embora seja uma obra de ficção, levanta muitas questões filosóficas relevantes para o debate contemporâneo sobre o melhoramento humano.

Veja, por exemplo, essa passagem: “ter uma perna só é incômodo — falei. — Ou você usa um substituto artificial que tenta imitar a perna real, o que é praticamente impossível e limita você às capacidades da prótese, ou você constrói uma prótese realmente boa, mas então está preso a uma perna biológica que não consegue manter o mesmo ritmo. É como um carro que usa a perna do motorista como uma das rodas. Em algum momento a biologia simplesmente fica ridícula.”  

Há uma questão filosófica importante aqui: o que esperamos de uma prótese, que ela imite a "anatomia" de pernas e braços naturais, ou que ela realize as mesmas "funções" dos membros naturais? Se o objetivo for imitar a anatomia do corpo humano, então as próteses com certeza sempre serão piores do que o modelo que tentam copiar. Mas se uma abordagem funcional for privilegiada, então as próteses podem um dia se tornar melhores do que braços e pernas naturais. Isso ocorrerá se elas se mostrarem capazes de desempenhar melhor as mesmas funções que pernas e braços naturais desempenham, ainda que no final elas já não se pareçam muito com nossas mãos e pernas naturais.

Anatomia e funcionalidade

A decisão sobre qual abordagem deve ser privilegiada, se é a "abordagem anatômica" ou a "abordagem funcional", é, a meu ver, uma questão cultural. Na cultura do início do século XX, a abordagem funcional foi bastante criticada, sobretudo nas artes visuais do período entreguerras. Filmes como Metropolis (1927), de Fritz Lang , podem ser interpretados como uma crítica à abordagem funcional. Há uma passagem desse filme em que um cientista, mostrando sua mão artificial, pergunta o seguinte: "Não vale a pena perder uma mão para criar o homem-máquina (Maschinen-Menschen) do futuro?" 

No início do século XX a figura do "homem-máquina" foi bastante criticada. Mas agora, quase cem anos depois, parece-me que as pessoas têm uma postura diferente. Basta ver, por exemplo, a declaração dos usuários das próteses da artista Sophie de Oliveira Barata . O que atrai muitas pessoas, que passaram por uma amputação, a usar as próteses que ela desenvolve é o fato de as próteses não serem a imitação de partes do corpo humano. As próteses que Sophie cria não despertam nas outras pessoas piedade pelo usuário da prótese, mas antes curiosidade e fascínio.  Talvez, em uns dias, elas exerçam até mais do que curiosidade e fascínio, mas inveja também. É claro que, até agora, ninguém deve ter resolvido amputar uma perna ou um braço saudáveis para ter uma prótese no lugar. Mas com o desenvolvimento de novas tecnologias, essa pode se tornar uma opção atrativa para muitas pessoas no futuro.

 

IHU On-Line – Que dilemas éticos emergem com as novas possibilidades de melhoramento humano?

Marcelo de Araujo – Um dilema ético consiste em conciliar o interesse das pessoas que gostariam de fazer uso de tecnologias para melhoramento com o interesse das empresas que disponibilizarão essas tecnologias. Parte do problema consistirá em impedir que a busca pelo aprimoramento agrave desigualdades sociais já existentes. O mercado para próteses e medicamentos é restrito às pessoas que sofrem de algum tipo de doença, transtorno ou distúrbio. Mas isso não impede laboratórios de faturar milhões nesse mercado, e de prolongar da forma mais lucrativa possível as patentes sobre seus produtos.

O mercado para "melhoramento" é ainda mais amplo, pois se estende a qualquer pessoa saudável que queira, ou se veja "forçada", a aprimorar suas capacidades físicas e cognitivas. Aqui, novamente, uma obra de ficção pode talvez ilustrar de modo bastante vívido o dilema ético que o melhoramento humano envolve. No livro O Homem Máquina, a que me referi anteriormente, os executivos da empresa em que Charles Neumann trabalha se dão conta de que o engenheiro não era louco por ter amputado a própria perna para colocar uma prótese no lugar da perna saudável. Os executivos percebem que existe um mercado milionário de produtos médicos para pessoas saudáveis:

"Mas qual é o problema da área médica? O mercado é limitado a pessoas doentes. Imagine: você investe 30 milhões no desenvolvimento da maior válvula arterial do mundo e aí chega alguém e cura doenças cardíacas. Seria um desastre. Não para as... não para as pessoas, obviamente. Quero dizer para a empresa. Financeiramente. Sabe, esse é o tipo de risco comercial que deixa o pessoal lá de cima nervoso na hora de fazer grandes investimentos de capital. Mas o que você está falando, o que você disse no hospital... é uma área de produtos médicos para gente saudável. É isso que está empolgando o pessoal lá de cima." 

O dilema ético aqui é não permitir que o projeto de melhoramento humano se torne apenas um instrumento para melhoramento dos lucros de empresas que, literalmente, teriam patente sobre partes do corpo humano. Mas esse não é um problema insolúvel. O sequenciamento do genoma humano foi marcado por uma corrida entre, de um lado, um grupo reunindo vários centros de pesquisa que trabalhavam com financiamento público, sobretudo do contribuinte americano, e, do outro lado, a empresa privada americana CELERA . O que estava em questão na época não era simplesmente saber a quem caberia o crédito de ter concluído primeiro o sequenciado do genoma humano. O que estava em questão era a "patente" sobre o genoma humano. Era esse o objetivo explícito da empresa privada CELERA, que havia entrado na disputa. Na época, coube então ao governo americano intervir no conflito e garantir que o genoma não se tornasse propriedade de uma empresa que teria um poder sem precedentes para explorar comercialmente nossa identidade genética. 

Aprimoramento cognitivo para o mercado de trabalho

Um outro dilema ético diz respeito à conciliação dos interesses de trabalhadores e empregados. Se tecnologias para aprimoramento cognitivo se tornarem eficazes, seguras, e baratas no futuro, pode surgir a pressão de empregadores para contratar apenas pessoas que estejam dispostas a, por exemplo, fazer uso de medicamentos para se manter mais focadas e produtivas. E as pessoas que tiverem alguma contraindicação para o uso de smart drugs, elas não poderiam ficar à margem do mercado de trabalho, estigmatizadas como menos produtivas do que as demais? Esse é também um problema que deverá receber atenção da sociedade civil e dos legisladores conforme o debate sobre melhoramento humano for avançando.


IHU On-Line – Quais sãos os riscos e as potencialidades do melhoramento/aprimoramento humano? Estamos à beira da emergência de uma nova espécie?

Marcelo de Araujo – Não, acho que ainda estamos muito longe de uma era pós-humana. Por outro lado, a concepção que temos de nós próprios como "seres humanos" não é fixa. Durante muito tempo acreditou-se, por exemplo, que os neandertais eram ancestrais do homo sapiens. O que se sabe hoje, porém, é que durante algum tempo, há cerca de 35 mil anos, neandertais e homo sapiens tiveram de compartilhar o mesmo ambiente na Europa.  Há poucos anos, foi constatado inclusive que houve no passado miscigenação entre neandertais e homo sapiens, e que a maior parte dos seres humanos ainda tem genes de neandertais. 

Neandertais não eram seres humanos, mas eles também não eram completamente diferentes de nós. Há indícios que sugerem, por exemplo, que eles tinham alguma forma de cultura, que adornavam o próprio corpo e que celebravam algum tipo de ritual para enterrar os mortos. Se, no futuro, surgir uma sociedade pós-humana, haverá então uma série de problemas sobre como seres humanos se relacionarão com os seres "pós-humanos". Esse parece um cenário de ficção científica, mas é um cenário que, como se descobriu recentemente, de fato já ocorreu em algum momento no passado, quando neandertais e homo sapiens tiveram de interagir entre si. ■

 

Leia mais...

- O que significa ser humano se faculdades cognitivas e físicas forem aprimoradas? Entrevista com Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 472, de 14-09-2015.

 

- Política e moralidade na teoria dos contratos sociais. Entrevista com Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 436, de 10-03-2014.

 

- Os algoritmos e os desafios às novas configurações acadêmicas. Artigo de Marcelo de Araujo, publicada na revista IHU On-Line, número 482, de 04-04-2016.

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