Edição 486 | 30 Mai 2016

O conhecimento de si: vestuário e adornos como extensões da identidade

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Leslie Chaves

Para Renata Pitombo Cidreira, a potência da moda reside na construção da concretude da atitude corporal, a primeira expressão de nosso modo de estar no mundo

O self é compreendido pela psicologia como o conhecimento que o indivíduo tem sobre si próprio. Saber que é construído a partir dos aspectos valorativo, referente à autoestima, e descritivo, que diz respeito à autoimagem. É nesse segundo processo, em que se compõe a expressão mais imediata e perceptível de uma das faces da identidade de alguém, que a moda tem participação ativa. Conforme explica Renata Pitombo Cidreira, em entrevista por e-mail à IHU On-Line, “a primeira impressão que temos de alguém é do seu corpo vestido. Essa segunda pele que é a roupa é uma forma de expressão do indivíduo. Se compreendemos essa segunda pele como uma extensão do nosso corpo, como defende o sociólogo Marshall McLuhan, ela tem a capacidade de modelar nossa estrutura corporal, nossa dimensão sensível e nosso diálogo com o que nos cerca”. 

Para a pesquisadora, reside na constituição da atitude corporal “a força da moda, entendida enquanto modo de ser, pois ela é quem oferece ao ser a sua possibilidade concreta de apresentação, aparição encarnada num corpo. Dessa maneira, o modo como nos vestimos e nos adornamos vem revestido de valores que carregamos conosco e partilhamos com os outros”.

Renata Cidreira analisa como estão acontecendo as construções identitárias a partir da moda no cenário contemporâneo, em que o acesso à informação é intensificado pelo uso cotidiano das tecnologias de comunicação e informação, sobretudo da internet. “A internet e os blogs potencializaram a democratização da moda, permitindo a sua ressignificação no dia a dia do usuário. A partir de referências diárias na Internet, o consumidor tem um leque de opções para escolher o modo de se vestir que mais se adequar ao seu estilo de vida; assim, me parece que os processos de construção identitárias se multiplicam e se diversificam”, aponta.

Renata Pitombo Cidreira é graduada em Comunicação, com habilitação em Jornalismo, mestra e doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Também tem pós-doutorado em Sociologia pela Université René Descartes, Paris V-Sorbonne. Atualmente é professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, onde também lidera o grupo de pesquisa Corpo e Cultura. Entre sua produção bibliográfica destacamos as obras As Vestes da Boa Morte (Cruz das Almas: EDUFRB, 2015), A moda numa perspectiva compreensiva (Cruz das Almas: EDUFRB, 2014), As formas da moda (São Paulo: Annablume, 2013) e Os sentidos da moda (São Paulo: Annablume, 2005).


Confira a entrevista.


IHU On-Line - De que maneira a moda participa da construção da identidade de um grupo social e de um sujeito? 

Renata Pitombo Cidreira - A capacidade expressiva da moda é visível. A aparência corporal presentifica certos pertencimentos e determinadas adesões. A questão é que, na contemporaneidade, essas identificações são pontuais, efêmeras, como já mostrou Maffesoli  e outros autores que refletem sobre a identidade. Como bem observou Merleau-Ponty (1983) , a evidência sensível da pessoa é sua atitude corporal, sua dinâmica comportamental, seu modo de estar no mundo. Daí a força da moda, entendida enquanto modo de ser, pois ela é quem oferece ao ser a sua possibilidade concreta de apresentação, aparição encarnada num corpo. Dessa maneira, o modo como nos vestimos e nos adornamos vem revestido de valores que carregamos conosco e partilhamos com os outros.


IHU On-Line – De que modo o vestir-se e a moda podem ser compreendidos como atos de significação?

Renata Pitombo Cidreira - A primeira impressão que temos de alguém é do seu corpo vestido. Essa segunda pele que é a roupa é uma forma de expressão do indivíduo. Se compreendemos essa segunda pele como uma extensão do nosso corpo, como defende o sociólogo Marshall McLuhan, ela tem a capacidade de modelar nossa estrutura corporal, nossa dimensão sensível e nosso diálogo com o que nos cerca. A partir daí, comecei a perceber que a moda é um modo de comunicação e que pode revelar, manifestar gostos, valores, e até mesmo comportamentos e sentimentos.


IHU On-Line – Quais são as mudanças mais significativas ocorridas a partir da globalização e da troca de informações potencializada pela internet (e demais aparatos do sistema midiático) no processo de construção das identidades através da moda? 

Renata Pitombo Cidreira - Como se sabe o consumo dos bens culturais se exerce cada vez mais através de processos virtuais. Sites e blogs funcionam como mediadores e indicadores de consumo, e não seria diferente no mundo da moda. Assim, noticiar e criticar lançamentos, exposições, shows, performances, desfiles, coleções de moda on-line passa a ser um dispositivo a mais para o acesso à informação de moda. Os blogs de moda aparecem a partir de 2003 e viram um fenômeno mundial; a partir de 2006 se consolidam no Brasil, promovendo uma maior difusão do segmento e atraindo novos consumidores e amantes do universo fashion. A internet e os blogs potencializaram a democratização da moda, permitindo a sua ressignificação no dia a dia do usuário. A partir de referências diárias na Internet, o consumidor tem um leque de opções para escolher o modo de se vestir que mais se adequar ao seu estilo de vida; assim, me parece que os processos de construção identitárias se multiplicam e se diversificam.


IHU On-Line - Na moda, como coexistem e se processam simultaneamente as relações entre a busca por diferenciação e por identidade coletiva?

Renata Pitombo Cidreira - Um autor de que gosto muito, o sociólogo alemão Georg Simmel , faz questão de esclarecer que o sustentáculo da dinâmica moda situa-se num grande dualismo que perpassa, inclusive, outras instâncias essenciais da vida. Podemos afirmar, de acordo com o autor, que a moda se alimenta de dois lados contrários, mas ao mesmo tempo complementares: a imitação e a necessidade de originalidade, particularidade.

A moda é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de aprovação na sociedade; conduz o indivíduo pela via que todos seguem e cria um módulo geral que reduz a conduta de cada um a um mero exemplo de uma regra. Mas ao mesmo tempo satisfaz a necessidade de distinguir-se, a tendência à diferenciação (SIMMEL, 1905, p.112) .

Como já demonstramos em nosso livro A moda numa perspectiva compreensiva (Cruz das Almas: EDUFRB, 2014), religar e distinguir são as duas funções fundamentais que se encontram unidas indissoluvelmente na moda: permite ao indivíduo a segurança de não permanecer só em sua ação e, ao mesmo tempo, assegura a possibilidade de manifestação do gosto particular nos pequenos detalhes, satisfazendo a vontade de particularidade. È essa característica dual que lhe é própria que a identifica enquanto um produto das lutas entre classes sociais. Conforme assinala o autor, “as modas são sempre modas de classes, e (...) as modas de classe superior se diferenciam das de classe inferior e são abandonadas no momento em que esta começa a apropriar-se daquela” (id., ibid., p.112). Estabelece-se, portanto, um movimento circular interminável característico da moda.

A possibilidade de manifestação do gosto particular nos pequenos detalhes satisfaz a vontade de particularidade e é, em última instância, o que permite preservar a liberdade individual, sobretudo quando essa vontade de singularidade consegue ser mais forte do que a necessidade de reconhecimento e acolhimento do grupo social. De acordo com as observações de Simmel, a moda dá ao ser humano um esquema graças ao qual ele pode atestar, sem equívoco, algum lugar no universal, sua obediência em relação às normas que são próprias de seu tempo, de sua situação social, de uma esfera mais estreita, e um esquema com o qual ele se permite, em sentido inverso, concentrar cada vez mais nos seus efeitos interiores e essenciais da liberdade que procura na vida em geral.


IHU On-Line – Alguns estudiosos definem como apropriação cultural e criticam o uso de indumentárias características de determinadas identidades culturais, como os turbantes africanos e os trajes típicos chineses, por outros grupos “não integrantes” dessas culturas. De que maneira você avalia essa questão?

Renata Pitombo Cidreira - Em A Interpretação das Culturas (Rio de Janeiro: LTC, 1989) Geertz  defende a ideia de cultura como conjunto de mecanismos simbólicos que auxiliam na ordenação do comportamento humano. Tal acepção evidencia a natureza vinculante que a cultura estabelece entre o que as pessoas podem vir a ser e o que elas são realmente. Desse modo, podemos constatar que o equilíbrio entre unidade e diversidade pode estar no reconhecimento de padrões culturais como elementos definidores de uma existência humana. Como observa Geertz, “tornar-se humano é tornar-se individual sob a direção de padrões culturais” (p. 37).

Vislumbramos aqui a relação ambígua e escorregadia entre cultura e identidade, e mais: o reconhecimento de que a cultura é um conjunto de significações que são comunicadas pelos e entre os indivíduos de um dado grupo através de processos interativos. Essa abordagem, reconhecida como interacionista, acentua a importância da produção e circulação de sentidos que as interações entre indivíduos produzem, observando de forma bastante atenta para o contexto no qual se desenvolvem esses processos interativos. “A pluralidade dos contextos de interação explica a dimensão plural e instável de todas as culturas e também os comportamentos aparentemente contraditórios de um mesmo indivíduo” (CUCHE, 2002, p. 107) .

De todo modo, o que nos parece interessante reter é que a cultura é indissociável da aventura humana e que devemos concebê-la como o lugar da experiência. A experiência do ser humano, por sua vez, deve ser compreendida como abertura, possibilidade e transformação, pois esta é a dinâmica própria da humanidade em sua vitalidade. Logo, o que tentamos esboçar é a ideia de que a cultura não é do âmbito da identidade ou mesmo da realidade, mas da possibilidade. 

Assim, é preciso evidenciar a nuance entre cultura e identidade cultural. A cultura, vai argumentar Cuche, “depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas” (2002, p.176). De certo modo, podemos compreender que a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural.

Desse modo, me parece complicado afirmar que o uso de certas indumentárias características de grupos culturais por outros grupos “não integrantes” dessas culturas seja sempre inadequado ou deva ser criticado. O processo de ressignificação de elementos culturais é um traço da própria dinâmica movente da cultura e, por conseguinte, do próprio humano. O que deve ser observado é o modo como esses elementos são apropriados e de que forma a pessoa que as adota revela sua identificação com esses traços.


IHU On-Line – Em um de seus trabalhos, a moda é entendida como uma “instância imaginária e mítica”. Poderia falar um pouco sobre essa perspectiva?

Renata Pitombo Cidreira - O mito é um sistema comunicacional, é um modo de significação, é uma forma. Nesse sentido, entendo a moda como essa forma que condensa significações que em parte temos consciência e, em parte, não. Sempre revelamos algo que queremos, mas também algo que sem sequer pensamos em revelar, pois o processo significativo depende da interação que estabelecemos com os outros, que vão interpretar nossas formas de apresentação de diversas maneiras, às vezes, para além ou aquém do que intentamos. E gosto de pensar que a roupa e a nossa composição da aparência não é apenas simbólica, mas também imaginária, no sentido de que mantém relação com nossos desejos, com nossas pulsões... com o que não controlamos, mas que está latente em nós.


IHU On-Line – De que maneira a moda tem participado da construção da identidade de gênero, expressando, mais recentemente, uma fluidez nos usos de elementos considerados femininos e masculinos? 

Renata Pitombo Cidreira - A construção da aparência é um dispositivo importante na afirmação da identidade. Desse modo, o que escolhemos para cobrir e adornar nosso corpo é extremamente significativo e, desde muito cedo, começamos a fazer nossas escolhas vestimentares influenciados pelo nosso entorno, pela família em primeiro lugar, depois pelos amigos e pelo local de trabalho. Assim, vamos, pouco a pouco definindo nosso modo de aparecer e de ser. Já assistimos, na década de 1920, por exemplo, a uma abordagem mais masculina no modo de se vestir das mulheres, desde o corte de cabelo, até o uso de peças reconhecidas como do universo masculino. Coco Chanel  foi uma pioneira nesse sentido. 

Na atualidade, há um movimento muito intenso no que diz respeito à identidade de gênero, promovendo uma maior abertura para a exibição dos mais diversos modos de ser e, sem dúvida, a moda está sintonizada com esse processo. Coleções ditas sem gênero têm sido lançadas no mercado, com maior ou menor êxito, mas numa demonstração de atenção a este fenômeno.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição