Edição 207 | 04 Dezembro 2006

A psicanálise e o monoteísmo

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

IHU Online

O filósofo e psicanalista francês Pierre-Christophe Cathelineau é membro da Associação Lacaniana Internacional. Ele concedeu a entrevista que segue, por e-mail, para a IHU On-Line, contribuindo para o debate sobre a relação entre Freud e a questão religiosa. Confira :

IHU On-Line - Quais são as relações entre a psicanálise e os monoteísmos?

Pierre Cathelineau
- A psicanálise se interessa primeiramente pelas origens do monoteísmo, como o próprio Freud havia feito com Moisés, uma vez que ele constitui a base lógica da relação do sujeito com o Outro em nossa civilização. A partir do monoteísmo, o real é UM e é neste UM que o sujeito tem simplesmente relação com o Real. Um estudo mais detalhado permite mostrar que o judaísmo, o cristianismo e o Islã se distinguem, como identidades religiosas, pelo sentido que eles concedem ao real, ao simbólico e ao imaginário. A psicanálise deve levar em conta estas singularidades, ainda que para ouvir os sujeitos que se apropriam destes monoteísmos e da significação dos fenômenos comunitários.

IHU On-Line - Em que sentido a psicanálise de Freud pode nos ajudar na compreensão das guerras em nome das religiões?

Pierre Cathelineau
- O delírio coletivo (e estruturado) que constitui toda religião resulta de uma identidade seguidamente fechada em si mesma. Nela, o sujeito encontra o apoio para sua identificação. Ela o faz imaginar que é esta identidade e nada além. Ele se imagina, então, pertencer à multidão de crentes que divide com ele esta identificação. A análise da psicologia das massas, segundo Freud, é ainda atual. A partir disso, ele orgulha-se de “sua pequena diferença” e encontra-se pronto a combater e a destruir, de forma paranóica, tudo o que lhe parece estranho, como se rejeitasse na periferia de sua comunidade tudo o que era Outro nele.
De qualquer forma, o fato identitário simplesmente contradiz uma propriedade do significante, salientada por Lacan: um significante é diferente dele mesmo e a identificação não saberia satisfazer-se da estase em um sentido petrificado. Esta estase ainda é constitutiva das identidades religiosas em particular, e nega o fato de que o sujeito tem, em sua última instância, relação com a diferença absoluta, e não mais com sua identidade. Somente a cura analítica permite chegar a esta conclusão aidentitária.

IHU On-Line - Quem é Deus para Freud? Como definir Deus pelos olhos da psicanálise?

Pierre Cathelineau -
Deus é o significante que na revelação permitiu situar o Real com o Um, mas nesta permissão deixando o sujeito crer que o Outro era realmente habitado por um sujeito todo-poderoso, onisciente etc. A cura analítica restitui ao Outro a dimensão de uma falha, do obstáculo que é a própria castração. No final de uma análise, o Outro e o sujeito se descobrem ateus, uma vez que este Outro está vazio. Isso não invalida o saber que decorre das revelações sucessivas dos monoteísmos. São os textos dos quais ainda somos capazes de falar.

IHU On-Line - Deus e Freud se encontram em campos opostos?

Pierre Cathelineau
- Dizer que eles estão em campos opostos é caricatural. Lacan fazia um trocadilho sobre Deus, passando de Deus a Dizor e a Dizer. No monoteísmo, Deus deixa sua marca no campo da palavra e do dizer pela experiência dos textos sagrados. Freud não se enganou tentando por uma exegese da Bíblia dar uma interpretação metapsicológica do monoteísmo judeu. Ele tinha a intuição de que, nesta interpretação, apostava-se igualmente o destino da psicanálise. Em seu último livro, e sem dúvida o mais importante, ele diz que o Pai sempre é Estranho. É uma maneira de situar a alteridade do Outro para o sujeito que não pode ser mais radical. A psicanálise tem lições a tirar da reflexão sobre os textos sagrados, mesmo se as conclusões são atéias.

IHU On-Line - Qual a contribuição de Lacan, como defensor das idéias de Freud, para a discussão sobre religião e psicanálise?

Pierre Cathelineau
- A que eu digo mais alto: “Sou o que segue”. Eis uma maneira de situar o Real da qual a própria psicanálise continua tributária...

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar outro comentário sobre o tema?

Pierre Cathelineau
- O estudo dos textos sagrados não é nada mais do que o estudo do Texto que constitui uma das tramas de nosso subconsciente. É onde surgem as questões da dívida, da falta, da lei, do desejo, do sexo, do amor etc. Veja a Bíblia. Uma entre outras, mas sem dúvida a mais essencial, pois o outro texto, alternativo, é o das escrituras científicas. O código genético é uma boa referência para pensar o desejo? De tais considerações não impede de se ser ateu, mas com rigor, com base em interpretação dos textos.  

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição