Edição 483 | 18 Abril 2016

O momento político atual do Brasil e as esquerdas latinoamericanas hoje

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João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin

Para Bernardo Gutiérrez, “é urgente que a esquerda latino-americana se torne ecologista”

Depois de mais de uma década de governos “progressistas” em alguns países da América Latina, muitos movimentos sociais “foram cooptados pelo Estado”, “perderam energia” e “ficaram estagnados em estéticas, relatos e mitos do passado”, dialogando “mal com o novo”. Em contrapartida, o “DNA ancestral colaborativo latino-americano e algumas cosmovisões como o ‘Buen Vivir’ convivem com as dinâmicas tecnopolíticas, a cultura de rede e o hacktivismo” e tentam reorientar o sentido do que seria uma agenda “progressista” para a América Latina, diz o jornalista Bernardo Gutiérrez à IHU On-Line

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gutiérrez frisa que “mecanismos orientados ao bem comum como a minga kichua, o tequio náhuatl mexicano ou o ayni aymara da Bolívia renascem na era da rede” e é neles que é possível enxergar “o grande potencial narrativo e organizacional da América Latina”.

Gutiérrez participou de uma série de coberturas jornalísticas acompanhando os governos progressistas latino-americanos e faz uma análise da condução política de alguns governantes, pontuando que neste momento “a esquerda latino-americana deveria estudar a decadência e os erros cometidos pelo PT” para “evitar o rumo neodesenvolvimentista do Brasil” e “ter claros os limites da inclusão pelo consumo sem direitos”. Para ele, o “ponto crucial” a ser perseguido pela esquerda latino-americana é a ecologia, já que os governos desenvolvimentistas das esquerdas “tiveram uma nula sensibilidade ambiental”. 

Bernardo Gutiérrez González é jornalista, escritor e pesquisador hispano-brasileiro residente em São Paulo. Escreve sobre política, sociedade e cultura brasileira e latino-americana, movimentos sociais, processos tecnopolíticos e redes. No ano passado apresentou a pesquisa latino-americana Nuevas Dinámicas de Comunicación, Organización y Agregación Social. Reconfiguracines tecnopolíticas, para OXFAM (Comitê de Oxford para Alívio da Fome) e dirigiu o projeto Wikipraça, para a Prefeitura de São Paulo. Acompanhou o desenvolvimento dos governos progressistas latino-americanos, do zapatismo à chegada do Evo Morales ao poder, passando pelo lulismo.

Nos últimos anos, participa, escreve e pesquisa sobre tecnopolítica e sobre o ciclo de protestos aberto pela Primavera Árabe. Acompanhou de perto e por dentro as jornadas de junho e sua evolução, sendo um dos editores do livro JUNHO: potência das ruas e das redes. Ao mesmo tempo, nos últimos dois anos e meio, ficou envolvido no projeto equatoriano Buen Conocer/FLOK Society, uma tentativa de mudança de matriz produtiva do país, baseada no Buen Vivir e nas tecnologias livres.

A íntegra da entrevista foi publicada em Notícias do Dia, de 13-04-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, sob A esquerda na América Latina: dos militantes clássicos à mobilização baseada em pautas concretas.

 

Eis alguns extratos da entrevista.


IHU On-Line - Como percebe a América Latina hoje em termos políticos? E em termos econômicos?

Bernardo Gutiérrez - Vivemos tempos de instabilidade política, de mudanças, mas há muitas falácias sobre as causas dessa instabilidade. É verdade que o grande capital, as elites globais e o governo dos Estados Unidos não pararam de manobrar contra os chamados “governos progressistas”; Wikileaks revelou isso recentemente. É um novo tipo de intervenção, mais sutil, que trabalha o simbólico e as relações econômicas dos atores regionais. Porém, é um exagero falar de “golpe” e “imperialismo”, como fazem os governos progressistas e os movimentos sociais de esquerda. Basear a economia na exportação de commodities, como quase todos os países do eixo progressista, tem um preço. A queda do preço do petróleo foi um duro golpe e a aposta do fracking no território americano não é casualidade. 

Os problemas econômicos da China, que afetam o continente todo, especialmente o Equador, também justificam a tormenta. Politicamente, a América Latina é mais poliédrica e complexa do que os dois bandos históricos gostariam. Então, existe uma instabilidade política, provocada em parte pela crise econômica e em parte por essas manobras das potências globais. Mas acho que o principal motivo é outro: existe um abismo entre a narrativa do bloco progressista e suas práticas políticas. Na maioria dos casos, esses governos abraçaram o capitalismo, apostaram tudo na inclusão pelo consumo. O consumismo virou a nova ideologia de consenso. Então, a instabilidade política vem principalmente da tensão entre as novas sensibilidades e práticas políticas da cidadania e esse relato de “esquerda” da era industrial ou pós-colonial. Ao mesmo tempo, as novas gerações têm valores tolerantes com o aborto e o casamento gay, enquanto a maioria dos governos progressistas é conservadora nisso. As tão faladas novas direitas são mais pragmáticas e estão sendo mais habilidosas no diálogo com as “novas gerações”. É a tormenta perfeita.


IHU On-Line - Com base no atual momento de governos progressistas da América Latina, é possível afirmar que a esquerda latina está no fim de ciclo? E o que se espera em termos de novo ciclo?

Bernardo Gutiérrez - Não é o fim do ciclo abrupto como a mídia e as direitas querem. É mais complexo. Não podemos falar de fim de ciclo de “governos progressistas” e de uma nova fase neoliberal. Por um lado, a maioria de “governos progressistas” tem abraçado o capitalismo, como horizonte e ferramenta transformadora. A inclusão pelo consumo, na maioria dos casos, não chegou da mão da inclusão pelos direitos. O nacional-desenvolvimentismo, baseado em grandes infraestruturas e na exportação de commodities, foi o modelo. Ao mesmo tempo, a famosa nova classe média do lulismo é mais working poor que classe média, falando sociologicamente. É uma classe baixa que não atingiu direitos e que desfrutou de algumas cotas de consumo, graças ao endividamento privado ou programas sociais do Estado. Por isso, falar de “governos progressistas ou de esquerda” é inexato. Foram conservadores em questões morais e capitalistas na essência, com programas de inclusão social importantes. A exceção é a Venezuela. 

Mas temos outro lado: o legado dos “governos progressistas” é visível, inegável. Seria injusto falar que esses governos faliram, deram em nada, foram um fracasso. A inclusão social de milhões de pessoas é fato. Abrir a participação em vários níveis da política, do orçamento participativo a processos legislativos, também é destacável. Tem um legado quase intocável em algumas questões. Macri não vai ter como desfazer a “memória histórica” da Argentina. Ninguém no Brasil vai eliminar o programa Bolsa Família. Até as cotas nas universidades têm um consenso elevado.

 

Novas conquistas

Hoje se fala muito do final do ciclo da esquerda, juntando elementos assimétricos como a perda de força do Maduro no congresso venezuelano, o referendo que Evo Morales perdeu na Bolívia ou a chegada de Macri na Argentina. Mas não se fala que essas vitórias da oposição são incompletas. Ao mesmo tempo, há várias viradas progressistas em alguns cantos da América Latina. No Chile, a luta dos estudantes conseguiu a educação superior gratuita e a legalização do aborto. O surgimento do partido Revolución Democrática a partir dos estudantes é novidade. Na Colômbia, Alianza Verde ganhou o Estado de Nariño, com uma proposta de bem comum, participação e sustentabilidade. No Paraguai, do movimento dos Indignados nasceu o Despertar Ciudadano, que disputa o poder nas cidades e tem valores progressistas. No México apareceram vários fenômenos na política representativa, como Wikipolítica, que já elegeu seu primeiro deputado, ou o Movimiento Ciudadano, que já governa 80 prefeituras. Andrés López-Obrador, eterno candidato da esquerda, lidera todas as pesquisas com seu novo partido, MORENA. O Uruguai continua o caminho progressista. 

Tudo é menos linear e dicotômico do que parece. As velhas esquerdas usam o argumento do “golpe” para tentar salvar o que resta delas e as novas direitas se escondem em campanhas de marketing. Não está fácil para ninguém. Além disso, esses novos fenômenos, wikipolíticos e de rede, não podem ser explicados só desde a esquerda.


IHU On-Line - Quais os limites do pensamento desenvolvimentista quando se propõe instituir a “economia do bem comum”? O que podemos apreender desse movimento acerca da experiência do governo equatoriano?

Bernardo Gutiérrez - O pensamento desenvolvimentista é mais prática do que pensamento. Nem chega a ser ideologia. Acho que é práxis da real politik de alguns países. O primeiro limite é o próprio planeta Terra, que está morrendo. O desenvolvimentismo é totalmente contrário ao bem comum, aos “commons” do inglês, ao “procomún” da língua espanhola, ao comum do português. O desenvolvimentismo cria políticas públicas top down, disponibiliza recursos públicos no setor privado, sem nenhum tipo de controle, transparência ou participação. No Brasil, o cenário é mais complexo ainda, pois o poder público, com empréstimos do BNDES, apostou pela fusão de empresas e pela construção de gigantes multinacionais brasileiras. No Brasil, o desenvolvimentismo é também subimperialismo. Se o desenvolvimentismo abrisse a porta a pequenas cooperativas e gestões comunitárias, poderia ter algum sentido. 

Tem um ponto crucial para essa nova era latino-americana: a ecologia. Os governos desenvolvimentistas das esquerdas latino-americanas tiveram uma nula sensibilidade ambiental. O Brasil foi um dos piores. Não é possível que o neoliberalismo global defenda nisso exatamente o mesmo que o bloco progressista latino-americano. Joan Martinez Alier fez um texto inspirador: “A aversão e o desprezo antiecologista de Rafael Correa, Alvaro García Linera, Cristina Kirchner, dos presidentes Lula e Dilma Rousseff, cobra agora um preço alto que beneficia o neoliberalismo. Por isso, de uma vez, é urgente que a esquerda latino-americana se torne ecologista”.■

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